“Españolito que vienes / al mundo te guarde Dios.
Una de las dos Españas / ha de helarte el corazón”.
(Antonio Machado. Proverbios y Cantares. 1924)
Brasil, mostra a tua cara! – clamava Cazuza. São muitos os Brasis, mas dois deles mostraram sua cara no debate entre os candidatos presidenciais nesta sexta (28), à semelhança das duas Espanhas do poema de Machado. Lá, o poeta revela os seus temores sobre o destino das crianças espanholas ainda no ventre materno e pede para elas a proteção de Deus. O seu presságio tinha razão de ser, como comprovou a história da Guerra Civil Espanhola, com a esteira de violência armada e o ódio semeado pelo fascismo. Cabe aqui parafraseá-lo:
– Brasileirinho que vens ao mundo, Deus te proteja. Um dos dois Brasis pode aterrorizar teu coração”.
Qual país, afinal, vamos legar a brasileirinhas e brasileirinhos que estão vindo aí e prometem nascer? Qual Brasil vai pintar na eleição presidencial deste domingo: o da democracia ou o do fascismo? Quem vai ser o responsável por desenhá-lo a partir de 1º de janeiro? O “pintor do clima” que defende a pátria armada, traduzida nas granadas e tiros de fuzis disparados contra a polícia federal pelo aliado Roberto Jefferson? Ou o arauto da esperança, construtor da pátria amada, que quer pacificar o país em aliança com as forças democráticas?
O “pintor do clima” se inspira no movimento fascista de extrema-direita da Ação Integralista Brasileira fundada em 1932, com o lema “Deus, Pátria e Família”, que hoje justifica barras de ouro de propina para pastores em nome de Deus acima de tudo, rachadinhas e compra de imóveis com dinheiro vivo em nome da família e, em nome da pátria acima de todos, o acesso às armas, o extermínio de indígenas e os disparos contra agentes da Polícia Federal, .
O quadro do Brasil que o “pintor do clima” pretende desenhar segue o modelo da Espanha franquista e da Alemanha nazista chefiada pelo pintor de paredes.
O pintor do clima
General com três estrelas era o sonho do “pintor do clima”. Já Adolph Hitler queria ser pintor profissional e, aos 18 anos, fez
exame de admissão para a Academia de Belas Artes de Viena. Foi reprovado. Tentou no ano seguinte: levou pau, da mesma forma que o capitão brasileiro, expelido pelo Exército, nunca chegou ao generalato. Ambos frustrados na sua ambição pessoal. No caso de Hitler, a banca examinadora sugeriu que o “pintor medíocre” tentasse outro curso, o que exigia sua volta ao ensino médio. Ele desistiu de estudar, mas continuou pintando “desenhos prosaicos desprovidos de ritmo, cor, sentimento ou imaginação espiritual” na avaliação do crítico John Gunther.
Eleito anos depois pelo povo alemão, Hitler se tornou o führer e começou a pintar outra Alemanha bélica, racista, violenta, zambellizada, armada até os dentes, espumando ódio, responsável pela guerra total que, de 1939 a 1945, matou mais de 60 milhões de pessoas. Uma carnificina. Hoje, o eleitor alemão está profundamente arrependido. Chamado no poema de Bertold Brecht de “pintor de paredes”, Hitler, se vivo fosse, hoje perguntaria ao imbrochável “pintor do clima”:
– Você pinta o Brasil como eu pinto, digo, como eu pintei a Alemanha e o general Franco pintou a Espanha?
Afinal, qual Brasil foi pintado nesses quatro anos e qual o desenho futuro do país? Na Faculdade Nacional de Filosofia, na disciplina de História ministrada por Maria Yedda Linhares, fizemos leitura crítica de Os Dois Brasis, escrito pelo economista francês Jacques Lambert, publicado em 1957, no início do governo Juscelino Kubitscheck, com dados estatísticos da época sobre o desenvolvimento capitalista do Brasil e suas profundas desigualdades sociais, que só fizeram aumentar nos últimos quatro anos.
Ficou claro no debate as concepções diferentes de Brasil dos dois candidatos a presidente da República. Um deles, que não parava de andar, tropeçou duas vezes nas pernas e no verbo e acabou pedindo votos para ser eleito deputado federal. Orgulhou-se de haver liberado armas para seus seguidores, confundindo a bíblica Epístola com o grito de “é pistola” apontada por Carla Zambelli para um negro nas ruas de São Paulo. A escolha é, efetivamente, entre civilização e barbárie.
Pai da mentira
– O mundo inteiro está assustado como o Brasil vai bem na economia – delirou o “pintor do clima” com a língua presa, a veia do pescoço estufada e os olhos injetados. Em seguida jurou que seu governo preservou o “mioma” (e não o bioma) da Amazônia. É deplorável e vergonhoso ver um chefe de estado que não conhece as informações básicas sobre o país que governa, que mente para mascarar a sua ignorância, que nega os dados factuais comprovados e classifica como “mentirosos” os fatos que o contradizem, transformando uma epidemia mundial em “gripezinha”. .
A figura patética do pateta não parava de andar com as pernas abertas e fugia da discussão sobre os problemas do Brasil. Ele não tem freios morais, não tem limites para anunciar mentiras, seguindo a cartilha de seu guru Joseph Goebbels, chefe da campanha de Hitler, para quem “uma mentira repetida mil vezes se converte em uma verdade”. Dessa forma, no debate, o “pintor do clima” agiu como o “pintor de paredes”: criou e distorceu os fatos, como um recurso de sobrevida. O Coiso não dizia coisa com coisa.
Na maior cara de pau, repetia incessantemente como um disco furado, que no seu governo não havia corrupção. Não respondeu sobre as rachadinhas e a compra de imóveis com dinheiro vivo, sobre as políticas externas, educacionais e de saúde pública, sobre o salário mínimo, sobre o corte de 94% dos recursos do combate à violência contra a mulher. Quanto às toneladas de viagra compradas com dinheiro público e distribuídas aos militares “eram para tratar câncer de próstata”, assim como a cloroquina cura a covid.
Toda vez que era chamado para discutir os problemas do país, o “pintor do clima” saía de fininho ou de grossinho e invocava o fantasma do comunismo para assustar os ingênuos. Condenava Cuba e a Venezuela, pátria daquelas crianças vítimas da mente doentia que “pintou um clima”.
Se cai o Brasil
Foi outro o clima que pintou na quinta (27) no seminário “Darcy Ribeiro: pensamento humanista em tempos de barbárie” organizado pela Casa de Oswaldo Cruz, no Rio, para celebrar o centenário de nascimento de Darcy. O longa-metragem Segredos do Putumayo foi exibido e debatido com seu diretor, o cineasta amazonense Aurélio Michilles e com Wanda Witoto, a deputada do nosso coração que ainda não chegou à Câmara Federal com seus mais de 25 mil votos. No filme, um dos entrevistados menciona a ilha Hy-Brazil, registrada com esse nome em um mapa de 1325, antes de Cabral aportar em nossas praias.
Na mitologia irlandesa, esta ilha Brasil vivia escondida por uma névoa impenetrável, impedindo que fosse vista. A cada sete anos, a névoa se dissipava por apenas um dia e esse era o único momento em que se tornava visível. Esse lugar mitológico, mágico, sagrado, considerado a morada de fadas e divindades, era um local paradisíaco, onde as pessoas viviam alegres e felizes, sem cultivar violências e ódios.
Numa entrevista dada por Tom Zé ao Estadão, o músico diz que este mito ajuda a explicar o nome do nosso País, denominação sacramentada pelo pau-brasil. Assim como a Terra Sem Mal da mitologia tupi, o Brazil é um lugar que temos esperança de encontrar.
Qual o Brasil sairá das urnas neste domingo? O desenhado pelo “pintor do clima” ou aquele da mitologia irlandesa com o qual sonhamos e pelo qual lutamos? Parafraseamos outro poeta, o peruano César Vallejo, engajado na Guerra Civil Espanhola, que escreveu, em 1937, o poema “Espanha, afasta de mim esse cálice”:
Crianças do mundo inteiro, se cai o Brasil – digo, por assim dizer – andem, crianças do mundo, e busquem reerguê-lo.
P. S. Essa crônica é dedicada à lucidez e à inteligência de Marlene Silva e Rosângela do Carmo, que buscam reerguer o Brasil nocauteado. Ah, também à Maia, à Ana, à Vitória e à Solzinha que, com o peito adesivado, aprenderam a mudar a posição da mão para inverter o sinal da arminha.