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sexta-feira, 29 março, 2024

Os bilhões de euros de Bruxelas não são para as pessoas

“Histórico”! O adjetivo ainda hoje ecoa para saudar o acordo entre os membros da UE e que supostamente faz chover sobre as nossas cabeças os milhões que irão aliviar-nos dos males económicos da COVID-19. Este é o conto de fadas. A realidade, por isso, nada tem a ver com ele. Chegam milhões a “fundo perdido” e por empréstimo que vão custar caro aos contribuintes, não poderão ser aplicados onde verdadeiramente fazem falta aos cidadãos – na saúde e outras vertentes sociais – e que ainda aliviam os países ricos, ditos “frugais”, de boa parte dos encargos com o orçamento europeu. Este é o preço da “unidade”: austeridade, financiamento de empresas privadas em sectores que não estão diretamente ligados ao emprego e outros interesses sociais, novas amarras financeiras sem dividendos económicos onde são mais necessários, encargos aumentados com o orçamento da União. Por isso os mercados financeiros não cabem em si de contentes; ao passo que as pessoas terão mais do mesmo porque a “recuperação” não é para elas.

por Diana Johnstone [*]

Diana Johnstone.A crise do coronavírus foi um teste de solidariedade onde a União Europeia fracassou.

Quando se iniciou a pandemia, na Primavera passada, a regra entre os Estados europeus foi a de cada um por si. Tornou-se mais claro do que nunca que não existe “um povo europeu”, mas apenas um labirinto de regras e regulamentos económicos impostos aos povos, estando estes separados em cada um dos 27 Estados membros.

Foram precisamente as nações latinas como a Itália, a Espanha e a França – que já sofrem de super endividamento devido, em grande parte, a estarem presas a um sistema monetário, o do euro, totalmente fora do seu controlo – as particularmente atingidas pela COVID-19. As consequências económicas, com toda a probabilidade, serão devastadoras.

Dirigentes comprometidos com aquilo a que resolveu chamar-se “a construção europeia”, como o presidente francês Emmanuel Macron, ficaram cada vez mais alarmados com a situação de saúde pública. O descontentamento em relação à União Europeia cresceu a uma velocidade ainda maior, principalmente em Itália mas também na própria França.

Desde que foi eleito em 2017, com a promessa de obter a colaboração da Alemanha para uma União Europeia mais generosa financeiramente, Emmanuel Macron não chegou a lado nenhum. A insistência alemã na austeridade financeira manteve-se rígida apesar de a chanceler Angela Merkel admitir que, para salvar a UE, os pedidos de ajuda económica do Sul deve ser escutados. Finalmente acabou por concordar com Macron no patrocínio de um “esforço de recuperação” para apoiar países que sofrem perdas económicas devido à pandemia.

A falsa vitória de Macron

As principais despesas, porém, exigem a aprovação unânime dos 27 Estados membros da UE. Um projeto foi apresentado em Julho ao Conselho Europeu, que reúne os chefes dos governos da União Europeia.

O Conselho Europeu é presidido atualmente pelo político belga Charles Michel, que era primeiro-ministro interino da Bélgica desde que o seu governo entrara em colapso em Dezembro de 2018, devido à questão da imigração. Só a sua sucessora, Sophie Wilmès, conseguiu formar um governo efetivo em Março passado.

Aliás valeria a pena refletir sobre o facto de as instituições da UE, dominadas pelo conceito de federalismo que nunca foi posto à consideração dos povos dos Estados membros, estarem precisamente instaladas na Bélgica, onde os nacionalistas flamengos parecem mover-se inexoravelmente em direção à independência em relação à Valónia francófona.

O contraste entre as correntes germânicas e latinas na Europa tem raízes profundas. Assim como os flamengos se recusam a partilhar as despesas sociais com os valões “gastadores”, quatro nações ricas autodesignadas “frugais” – Holanda, Áustria, Dinamarca e Suécia – rejeitam, de facto, as propostas de mutualizar dívidas com as nações mediterrânicas.

Após quatro dias e quatro noites de disputas ferozes, ameaças e concessões, em 21 de Julho Charles Michel e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciaram um acordo que qualificaram como “histórico”. Pela primeira vez a Comissão foi mandatada para contrair dívida junto de bancos comerciais, a imagem do estilo capitalista da União. Os campeões do federalismo europeu, que tinham ficado ainda mais alarmados com a profundidade das divisões internas deixadas à vista do mundo, saudaram o acordo como um passo significativo rumo à sua meta dos Estados Unidos da Europa.

Aparentemente assim terá sido. Mas será que o processo acordado proporcionará a recuperação europeia?

Aspectos em questão

O “acordo histórico” de 21 de Julho inclui um orçamento regular da União Europeu a sete anos, no valor de um bilião (um milhão de milhões) de euros, financiado como habitualmente pelas contribuições dos Estados membros; e um pacote de “recuperação”, dito “de emergência” a mais curto prazo e no valor de 750 bilhões de euros, financiado pela Comissão. Esta soma é dividida entre 390 bilhões de euros em parcelas a fundo perdido e 360 bilhões de euros em empréstimos a países que demonstraram ter sofrido declínio económico devido à crise de saúde pública. A Itália destinam-se 172 bilhões e a Espanha 140 bilhões.

Aspecto #1. Sendo Macron um dos principais campeões deste acordo poderá reivindicá-lo como uma grande vitória política. Os empréstimos no total de 750 bilhões de euros terão de ser reembolsados até 2058 e, de acordo com cálculos complexos, a parcela de França na amortização será de 82 bilhões de euros, contra benefícios de 39 bilhões de euros – um valor que não é assim tão superior aos 29 bilhões destinados à Alemanha, país que não sofreu tanto com a COVID-19. A vitória política de Macron chegou, portanto, com um preço muito elevado para os contribuintes do seu país.

Se replicarmos a situação portuguesa em relação à francesa isso significa que os 13 bilhões a receber por Portugal poderão implicar reembolsos da ordem dos 27 bilhões, mais do dobro.

Aspecto #2. Esta suposta generosidade para com os países necessitados foi acompanhada de enormes favores financeiros aos países ricos, ditos “frugais”. As suas alegadas perdas por terem de contribuir para o reembolso do empréstimo contraído pela Comissão serão compensadas por consideráveis reduções nos montantes com que a Áustria, Holanda, Suécia, Dinamarca e Alemanha serão obrigados a contribuir para o orçamento da UE a sete anos, o que se refletirá automaticamente no aumento das contribuições dos países “ajudados” e que mais sofreram com a COVID-19 – a somar às amortizações dos empréstimos.

Aspecto #3. Os subsídios e empréstimos a ser distribuídos chegam amarrados a fortes sequelas decorrentes das condições impostas. Oficialmente, o esforço de recuperação “deve ter como alvo as regiões e os sectores mais atingidos pela crise”. Na prática, no topo da lista estariam as indústrias do turismo em Itália, Espanha e outros países. Mas não é assim que as coisas funcionam. Os países beneficiários não poderão optar por usar o dinheiro da maneira que considerarem mais adequada às suas necessidades. Pelo contrário, os planos têm de ser apresentados à Comissão e devem obedecer aos critérios impostos. Em particular, a “contribuição efetiva para a transição verde e digital” terá de ser “um pré-requisito para uma avaliação positiva”.

Moinhos e autómatos

O que isto significa, na verdade, é que o pacote de “recuperação” de 750 mil milhões não terá qualquer utilidade para responder às deficiências nas estruturas de saúde pública reveladas pela pandemia. Muito pelo contrário: as condições impostas implicam obedecer às exigências da União Europeia pela austeridade orçamental em detrimento das vertentes sociais.

 

Em vez disso, o financiamento será direcionado para projectos que a burocracia de Bruxelas considere necessários para aumentar a competitividade internacional das empresas da UE nos sectores encarados como estratégicos no crescimento capitalista do futuro: energias renováveis e inteligência artificial.

Isto significa mais subsídios para as empresas privadas que investiguem e invistam nesses sectores. Significa, sem dúvida, a multiplicação de moinhos de vento cada vez mais desprezados, cuja construção esvazia praias de areia para construir monstruosos pilares de cimento que ninguém saberá como descartar depois de se tornarem obsoletos (o que não levará muito tempo).

A inteligência artificial não fará nada pelas pessoas que perderam o emprego em Itália, Espanha ou Portugal. Pelo contrário, um dos efeitos mais notáveis da inteligência artificial é o da destruição de empregos, principalmente substituindo seres humanos racionais por autómatos estúpidos que serão capazes de responder a todas as perguntas menos aquela que a pessoa precisa de fazer.

É inegável que existe uma necessidade de uma transição energética a longo prazo. Mas essa não será a resposta à emergência imediata que os eurocratas afirmam estar a combater. Quanto à inteligência artificial, ninguém perguntou às pessoas se é isso que elas pretendem: e pode apostar-se, sem receio de errar, que se trata de um assunto que estará no final de uma hipotética lista de desejos.

O pacote de “recuperação” da União Europeia ilustra mais uma vez que esta não passa de um aparelho burocrático ao serviço do capital, principalmente do capital financeiro. As decisões são tomadas à revelia dos povos, em detrimento dos serviços públicos e de maneira a promover os projetos exigidos pelos poderosos lobbies financeiros. Não é de admirar que os mercados financeiros europeus tenham gostado do acordo.

Mas isso não faz absolutamente nada para libertar a Itália, Espanha, França, Portugal e outros da armadilha da dívida do euro. Por causa do euro, os países em dificuldades não podem recorrer aos seus próprios bancos centrais para financiar a recuperação. Estão na condição de só poderem aceitar caridade envolvida em amarras.

Em Itália, vários políticos estão a pensar em lançar um movimento para deixar a União Europeia. O sentimento favorável à restauração da soberania nacional está a crescer em França. Mas os países europeus ainda não conseguiram reunir energias para dar passos mais ousados e susceptíveis de garantir a sua sobrevivência. A finança e a burocracia governam enquanto a política continua adormecida.

Diana Johnstone em resistir.info:

 

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