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quinta-feira, 28 março, 2024

Organizando o mundo para fome, doença e miséria

(Imagem: Reprodução)

Pedro Augusto Pinho*

Dois textos, separados por 140 anos, mostram como é complexa e difícil a conquista do poder pelo povo, mesmo para mínima participação. E como se armam os mais ignóbeis poderes, para que não exista a pequena, insignificante fresta que ilumine as pessoas dos seus direitos, de seus intransferíveis papeis participantes, e dos que se assumem decisores obrigatórios. Afastam aqueles que sofrerão as decisões: este mesmo povo que escolhe erroneamente seus representantes e que definirão os que serão beneficiados e os que sofrerão as consequências nefastas das soluções que adotam.

Um livro trata da reação à teologia da libertação, para manutenção e aprofundamento da escravidão mental numa época de mudanças tecnológicas e com um Papa que acreditava na pessoa e na liberdade humana, João XXIII.

“Moral majorities across the Americas: Brazil, the United States, and the creation of the religious right”, de Benjamin A. Cowan, foi lançado em maio passado nos Estados Unidos da América (EUA) e, surpreendentemente, comentado em O Globo, na segunda-feira (02/08/2021), por Miguel de Almeida (A criação da direita religiosa), e nos revela uma parte dos subterrâneos por onde se movem os inimigos do povo.

Perdoem-me os leitores, mas foi impossível deixar de recordar, diante desta denúncia, a peça do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) denominada: “En Folkefiende” (“Um inimigo do povo”, 1882), da qual transcrevemos curto diálogo, na tradução de Vidal de Oliveira, para Edições de Ouro (Ibsen, Seis dramas, RJ, 1966):

“Dr. Stockmann: Nós vivemos de um comércio de imundícies e de podridões! Nossa vida social só floresce mergulhando as raízes numa mentira!”

“O Prefeito: O homem que emite tão odiosas insinuações contra a sua própria cidade não pode ser senão um inimigo do povo”.

“Dr. Stockmann: Inimigo público, eu! Isso me pagará, tão certo como estou vivo!”

“Sra. Stockmann: Mas teu irmão está no poder, nada podes fazer”.

“Dr. Stockmann: Sim, ele tem o poder, mas o direito está comigo”.

“Sra. Stockmann: Oh! O direito… De que te serve ele se não tens o poder?”

Nesta peça, que é uma sequência de “Espectros” (Gengangere, 1881), Peter Stockmann, capitalista empreendedor, está revestido da autoridade de Prefeito, que no trecho transcrito é contestado pelo irmão, o Doutor Thomas Stockmann.

Peter não põe no sufrágio do povo, senão no próprio Estado, de quem ele se considera funcionário, o seu poder dirigente. E espera, inclusive dos jornalistas e administradores do oposicionista “Mensageiro do Povo”, apenas atávica submissão, um imanente espírito, que remonta aos mais priscos sentimentos religiosos, de aceitação das ordens, da incontestável obediência.

Qualquer remoque, simples ironia, já é vista como conspiração, detração inaceitável ao poder, para quem o humilde eleitor contribuiu com seu voto, muitas vezes com supersticioso temor. Um poder que os pobres, aquela imensa maioria dos eleitores, não ousa encarar, uma divindade surgida de seu próprio ato, celebrado como liturgia, que sai das urnas, ainda mais quando de impossíveis conferências.

Aspectos exteriores de poder, imaginações, religião, grandes e mesquinhos interesses, intimidação, tradições percorrem esta peça, que traz não a luta da verdade e do falso, mas do lucro e da perda.

“Afinal o que tem o Doutor?”

“Pediu um aumento de salário que foi recusado”. Como sabe o poder se defender? E quão verossímil faz parecer a mentira!

E, assim, Thomas Stockmann conclui diante da esposa e da filha “Ouçam com atenção o que lhes vou dizer: o homem mais forte que há no mundo é o que está mais só”. Onde Otto Maria Carpeaux vê em Ibsen a própria condição da tragédia, a dramaticidade da vida humana e a ausência da revolta, da luta mas fechada num infindável diálogo interior. Nenhuma articulação para reverter a situação que humilha e se não mata o corpo, amesquinha a alma!

Entrevistado para revista Pesquisa FAPESP, de julho de 2021, assim se expressou Benjamin Cowan: “um grupo de conservadores, indivíduos e organizações, civis e militares, que se encontraram em uma rede transnacional de ideias, desempenhou papel central, e até então pouco conhecido, na execução de um projeto cultural e reacionário, dentro do regime militar brasileiro. No livro, tendo como pano de fundo a Guerra Fria, abordo a relação entre conservadorismo, anticomunismo e assuntos morais. Mostro que foram muito estreitas as relações entre ativistas moralistas e a conceituação de anticomunismo no Brasil, especialmente na época da ditadura [1964-1985]. Durante a pesquisa ficou claro como uma série dessas ideias, originadas na década de 1930, ganhou força no governo dos militares. Mais especificamente, como ideias retrógradas se tornaram centrais na concepção do pensamento militar. Isso explica parte da perseguição ao comunismo naquele período”.

“Estava presente ali a ideia de guerra cultural, que via o comunismo como algo que operava por meio da cultura, do sexo e dos costumes. Teóricos, que designei de tecnocratas morais, médicos, advogados, políticos e teólogos desempenharam diversos papéis, na sociedade e no governo, e se uniram ao redor da ideia de que o comunismo estaria ligado à luta mais antiga e mais eterna, entre o bem e o mal – entendido e materializado em armas culturais, como a pornografia, as drogas e até peças de roupa, como a minissaia”

E, adiante na entrevista, esclarece sobre esta importantíssima questão cultural:

“o ressurgimento da direita deriva de uma história de ativismo conservador que uniu brasileiros, norte-americanos, católicos, protestantes, conservadores seculares, oportunistas autoritários, entre outros. A semelhança entre o atual presidente do Brasil e Donald Trump, por exemplo, vem do trabalho desenvolvido no passado por ativistas brasileiros e norte-americanos que deliberadamente estabeleceram uma pauta mais sobre temas identitários do que ideológicos. O que a oposição ao aborto tem a ver com o porte de armas e o tamanho do Estado, em relação a programas de bem-estar social? Esses ativistas entenderam a importância da construção de uma plataforma que apelaria a uma certa massa e por isso constituíram esses vínculos. Minha pesquisa em arquivos religiosos, não só do Brasil e dos Estados Unidos, mas também da Itália, mostra o aborto como tema capaz de aglutinar muita gente. Em arquivos da Casa Publicadora das Assembleias de Deus, encontrei uma menção a Carl McIntire [1906-2002], um pastor radicalmente conservador, que não havia recebido muita atenção da historiografia, mas que foi muito importante no desenvolvimento da direita radical nos Estados Unidos. Ao pesquisar no Princeton Theological Seminary, onde estão seus arquivos, acabei descobrindo que McIntire cooperou com evangélicos no Brasil. Ele começou tentando construir uma associação de igrejas evangélicas conservadoras nos anos 1950. Em resposta à modernidade teológica e ao ecumenismo, com o International Council of Christian Churches [ICCC], McIntire buscou estruturar uma rede global de instituições e espaços em que conservadores evangélicos pudessem se reunir, trocar ideias e influenciar políticas culturais”. (https://revistapesquisa.fapesp.br/benjamin-a-cowan-o-brasil-e-a-nova-direita/).

Muito mais profundo do que a alienação dos bens nacionais, que sempre permanecerão aqui, ou do desfazimento do Estado, que sempre poderá ser reconstruído, é a invasão das mentes, que sem um sólido, consistente e permanente sistema educacional e de comunicação, irá despersonalizando, descontruindo as características culturais brasileiras.

E foi assim que entendemos a porta fechada na cara do político probo, sério, nacionalista, Roberto Requião, por arrivistas inconsequentes, jejunos de ações que beneficiem o povo paranaense, mas que tomaram de assalto o partido que teve um tempo importante e transformador há muito, porém, há mais de três décadas, já perdido, transfigurado: o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), depois Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).

E nem é único a repetir a doutrinação estrangeira, o interesse do lucro alienígena, a colonização cultural e econômica brasileira. Pergunto onde encontramos como prioridade absoluta para a efetiva, verdadeira, insofismável realidade de nosso País, neste século XXI, a precedência da Questão Nacional? E se não temos por princípio e base a Questão Nacional, o que iremos erigir? Um mausoléu às fábulas do passado, as irrealidades das ameaças comunistas num país que clama e exclama por Deus a qualquer pretexto, em todas as situações.

Tristes são as perspectivas brasileiras, sem Requião e outros, poucos, líderes nacionalistas que esperamos e necessitamos para nos conduzir!

*Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.

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