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quinta-feira, 18 abril, 2024

O que o Cazaquistão não é

Destruições em Almaty.

Craig Murray [*]

O conhecimento do Cazaquistão no Ocidente é extremamente exíguo, particularmente entre a mídia ocidental, e muitas respostas aos acontecimentos têm sido completamente erradas.

A narrativa à direita é que Putin procura anexar o Cazaquistão, ou pelo menos as áreas de maioria étnica russa no norte. Isto é um completo disparate.

A narrativa à esquerda é que a CIA está a tentar instigar outra revolução colorida e colocar um regime fantoche em Nur-Sultan (como a capital é chamada agora). Isto também é um completo disparate.

A falta de flexibilidade intelectual entre os comentadores ocidentais presos nos confins das suas próprias guerras culturais é uma característica bem estabelecida da sociedade política moderna. Distorcer uma imagem dentro deste quadro não é tão facilmente detectável quando o público não faz ideia de como é a imagem normal, como no caso do Cazaquistão.

Quando se toma um táxi no Cazaquistão, meter a mala no porta-bagagens é muitas vezes problemático pois já estará cheia com um grande reservatório de GPL. As bagageiras de tejadilho são grandes no Cazaquistão. A maior parte dos veículos cazaques funcionam com GPL, o qual tradicionalmente tem sido um produto subsidiado da enorme indústria de petróleo e gás do país.

Os aumentos dos preços dos combustíveis tornaram-se, a nível mundial, um disparador do descontentamento público. As origens do movimento Coletes Amarelos na França residem no aumento dos preços dos combustíveis antes de se propagarem a outras áreas de indignação popular. O legado dos protestos contra os combustíveis no Reino Unido levou durante anos políticos covardes a submeterem-se a reduções reais anuais na taxa de imposto sobre os combustíveis, apesar das preocupações com as alterações climáticas.

A atual crise política no Cazaquistão foi agravada por movimentos de desregulamentação do mercado do GPL e de fim do subsídio, o que levou a aumentos agudos dos preços. Estes trouxeram as pessoas para as ruas. O governo recuou rapidamente e tentou restabelecer controles de preços, mas não subsídios aos produtores; o que teria levado as estações de serviço a vender com prejuízo. O resultado foi uma escassez de combustível que só veio agravar os protestos.

O Cazaquistão é uma ditadura autoritária com divisões extremas em riqueza e poder entre a classe dominante – muitas vezes ainda a velha nomenklatura soviética e as suas famílias – e todos os outros. Nenhuma oposição política é permitida. Infamemente, após um massacre de mineiros em greve, Tony Blair contactou o antigo ditador Nazarbayev oferecendo os seus serviços de relações públicas para ajudar a limitar as consequências políticas. Isto resultou num contrato de 4 milhões de dólares por ano para Blair ajudar as RP do Cazaquistão, um contrato no qual trabalharam ambos os favoritos da BBC, Jonathon Powell e Alastair Campbell.

Um dos resultados da gestão blariista na mídia quanto ao Cazaquistão foi que o Guardian, ao publicar telegramas diplomáticos dos EUA em cooperação com o Wikileaks, recusou-se a publicar relatórios da Embaixada dos EUA sobre a corrupção no Cazaquistão.

A ditadura cazaque é também um destino preferido de rebentos reais, o Príncipe Andrew e o Príncipe Michael de Kent.

Sempre considerei o Presidente Nazarbayev como o mais inteligente dos ditadores da Ásia Central. Ele permitiu muito mais liberdade econômica individual do que no vizinho Uzbequistão; os cazaques podiam construir empresas sem o medo de tê-las confiscado pelo capricho da família dominante, e as terras agrícolas coletivas eram dadas a agricultores nativos e a produção foi diversificada. Nos assuntos estrangeiros Nazarbayev habilmente equilibrou-se entre a Rússia, o Ocidente e a China, nunca se inclinando definitivamente numa direção. Os tecnocratas e académicos russos étnicos não foram expulsos do país. Não foi permitido à Gazprom obter o controlo econômico dominante.

Não estava em causa ser permitida a democracia ou ser dada voz a qualquer forma de oposição. A mídia permaneceram firmemente sob controlo estatal; o acesso à Internet foi restringido através de ISPs designados – creio que isso afrouxou posteriormente, mas não vou fingir conhecer os pormenores. Mas como em todos os sistemas sem responsabilidade democrática e com efetiva impunidade legal para a elite, a corrupção agravou-se, os sistemas tornaram-se escleróticos e a frustração e o ressentimento entre a população em geral construiu-se naturalmente.

A mudança do Presidente dois anos atrás, de Nazarbayev para Tokayev, não trouxe mudanças substanciais em quem dirige o país.

O aumento do preço dos combustíveis desencadeou protestos, e quando uma população que não via saída para a sua frustração viu a oportunidade de protestar, então a frustração popular irrompeu em dissidência popular. Contudo, sem líderes populares da oposição para a dirigir, isto rapidamente se tornou uma fúria incoerente, resultando em destruição e pilhagem.

Então, onde é que a CIA entra? Eles não entram. Estavam a tentar preparar um líder da oposição proibido (cujo nome me recordo como Kozlov, mas isso pode estar errado) mas depois descobriram que ele não estava disposto a ser o seu fantoche, e o esquema foi abandonado sob Trump. A CIA foi tão surpreendida pelos acontecimentos como todos os outros e não têm recursos significativos no terreno, ou um Juan Gaido para lançar.

Assim, onde é que entra Putin? Bem, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva é um clube de líderes autoritários ex-soviéticos. Curiosamente, o Uzbequistão nunca aderiu porque Karimov sempre se preocupou (com alguma justificação) que Putin pudesse querer destituí-lo. O pedido de ajuda do Presidente Tokayev é um sinal muito claro de fraqueza interna. Todos os países da CSTO têm interesse em desencorajar a agitação popular, pelo que não é surpreendente que tenham enviado tropas, mas em números que não podem fazer verdadeira diferença num país vasto como o Cazaquistão (que é realmente, grande)

E o que vai acontecer a seguir? Espero que o regime sobreviverá, mas em primeiro lugar nem eu nem qualquer observador que eu conheça prevíamos que isto acontecesse. A agitação será atribuída, de forma totalmente inverídica, aos terroristas islâmicos e ao apoio ocidental. A consequência real poderá estar na importante política global de pipelines da região, onde poderá haver uma mudança a longo prazo da China para a Rússia.

Haverá frustração tanto em Pequim como em Washington. Tokayev está agora endividado a Putin de uma forma que nunca estivera antes. Posso garantir que neste momento estão a decorrer reuniões de emergência ao mais alto nível entre o Kremlin e a Gazprom a fim de determinar o que querem para tirar partido da situação. Putin, como Napoleão poderia ter observado, é um general extremamente sortudo.

[*] Ex-diplomata britânico. Foi Embaixador no Uzbequistão (2002-2004).

O original encontra-se em www.craigmurray.org.uk/archives/2022/01/what-kazakhstan-isnt/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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