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quinta-feira, 28 março, 2024

O PROSSEGUIMENTO DO GOLPE DE ESTADO MILITAR NO BRASIL

(SOBRE O MANIFESTO DOS CORONÉIS RESERVISTAS DO EXÉRCITO) 

 Roberto Bueno*

Quem escreve estas linhas mantêm firme e inarredável compromisso com os valores constitucionais que expressam os valores centrais da democracia brasileira. São eles em sua essência opostos aos termos da nota firmada por várias dezenas de coronéis da reserva do Exército brasileiro neste dia 23 de maio de 2020. O que se deduz do teor desta nota é a defesa da escalada política que aponta para a implementação de ditadura aberta no Brasil, que segue o seu imparável curso sob o auspicioso silêncio das principais autoridades do país, justo em um momento em que apenas a ação conjunta das instituições poderia servir como bloqueio eficiente.

Os reservistas do Exército que publicam a nota se autoidentificam como companheiros do Gen. Augusto Heleno (Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República / GSI), a quem a referida publicação vem em apoio, tendo em vista declaração deste último de que não cumpriria decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em caso de que fosse ordenada a entrega do telefone da Presidência da República, algo que sequer estava em causa na manifestação do questionado Min. Celso de Mello. Os signatários da nota o fazem na qualidade de pertencentes à turma Marechal Castello Branco, formados pela “Sagrada Casa” da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), turma de 1971.

Indiscutivelmente, o documento tem um objetivo explícito, a saber, defender o Governo através da explícita manifestação ao Gen. Augusto Heleno e, implicitamente, ao Presidente da República. Para isto não argumentam, mas se restringem a elencar falsas razões decoradas com adjetivos despropositados e, assim, dizem eles, que é “Desnecessário enumerar as interferências descabidas, ilegais, injustas, arbitrárias, violentas contra o Exmº Sr. Presidente da República, seus ministros e cidadãos de bem, enquanto condenados são soltos, computador e celular do agressor do então candidato Jair Bolsonaro são protegidos em razão de uma canetada, sem fundamentação jurídica, mas apenas pelo bel-prazer de um ministro qualquer”. A nota chama a atenção para supostas injustiças praticadas contra a figura que hoje ocupa a Presidência da República, vitimiza-o ao extremo, como se não se tratasse de homem poderoso e com enormes recursos. Mas há método e propósito ao fazê-lo e logo posicioná-lo como alguém que sofre “inúmeras “interferências descabidas, ilegais, injustas, arbitrárias, violentas”, retomando inclusive o célebre episódio da facada, questionando o teor das investigações, como se a Polícia Federal (PF) tivesse qualquer interesse em proteger ocultos culpados do ocorrido, conjunto de “injustiças” praticadas contra o Presidente da República que, ademais, são praticadas em desfavor de “seus ministros e cidadãos de bem”.

Em toda a nota subjaz um tom de intensa indignação coletiva dos coronéis reservistas signatários. Chama enormemente a atenção que ela não se manifesta relativamente a não adoção de políticas sanitárias adequadas para enfrentar a morte de milhares de brasileiros(as), senão ao contrário, apoiam a barbárie, o trato do povo brasileiro como rebanho de bovinos cujas vidas são indiferentes, enquanto que, por outro lado, reagem resolutamente em face de uma decisão que visa apurar nos limites da lei a possibilidade de ocorrência de um crime que envolve altíssima autoridade da República.

A nota dos reservistas é concebida de sorte a que em seus primeiros movimentos os signatários se postam na condição de observadores “tolerantes” do cenário político, como indivíduos dotados de uma virtude especial e que mobilizando-a em seus limites adicionados de olímpica paciência, a tudo assistem calados, “até mesmo” a violentas arbitrariedades, que exemplificam na busca e apreensão determinada pelo Min. Alexandre de Moraes na residência do Gen. Paulo Chagas – justamente mais um dos colegas da turma da AMAN que assina a referida nota – como se acaso esta turma detivesse alguma espécie de estranha imunidade perante a lei. Reclamam os reservistas a posse da profunda bacia das virtudes humanas, preenchida também por singular sapiência, o que lhes permitiria afirmar que “o silêncio dos bons vem incentivando a ação descabida dos maus, que confundem respeito e tentativa de não contribuir para conturbar o ambiente nacional com obediência cega a “autoridades” ou conformismo a seus desmandos”. Eles são, nada menos, do que “os bons”, nada menos, e sugerem entrelinhas e pretensiosamente, que eles contribuem imensamente para a vida nacional ao “não contribuir para conturbar o ambiente nacional”. Entre tantos atributos, logo, precisaríamos acrescentar mais um adjetivo à já extensa lista que lhes é própria: a modéstia!

O argumento-guia da nota dos militares parece sugerir que mesmo para os indivíduos virtuosos – dos quais eles são perfeita encarnação – há um limite infranqueável em sua posição de observadores, e que os desmandos e desordens que alegam estar a inundar o país são configuradores deste limite. Os reservistas posicionam-se como homens relutantes em intervir na cena pública, alegando desejo de preservar a ordem, posicionando-se como se fossem eles uma espécie de guarda pretoriana da sociedade civil, e aqui começamos a perceber, uma vez mais, a sua péssima educação (também militar), pois esta não é a sua posição, nunca foi, e nunca deverá ser.

Em sua nota os reservistas disparam letalmente contra um dos poderes constituídos da República, o Poder Judiciário e, em especial, contra o STF, afirmando que está composto por um “bando de apadrinhados”, e que, sublinham, acederam à Corte sem que a maioria deles tivesse logrado aprovação sequer em concurso para juiz de primeira instância. Enganação, notícia falsa ou, como nos correntes dias se prefere dizer, “Fake News”. Depois de tudo, dado o processo de escolha dos Ministros do STF previsto pela Constituição – a qual os militares juram respeitar, quer sejam reservistas ou da ativa –, é irrelevante o fato de que os candidatos tenham ou não sido aprovados em concurso para “juiz de primeira instância”, senão que são nomeados pelo Presidente da República após a devida aprovação por maioria absoluta do Senado Federal nos termos do art. 101, §ú, da C.F./1988. Os disparos dos coronéis sobre o STF pretendem intimidar as instituições democráticas, acoelhá-las, para logo encilhá-las para longo galope, de sorte a exercer o controle sobre a sociedade civil.

Os reservistas do Exército destacaram em sua nota o fato de que certos magistrados “perdoam e apoiam criminosos”, que os “põem em liberdade”, e que estão preocupados em “mostrar poder e arrogância à custa de pessoas de bem e autoridades legitimamente constituídas”, análise em que implicitamente pretendem cristalizar a existência de uma casta de indivíduos, a tal da “gente de bem”, sobre a qual nenhum juízo crítico é pertinente, nenhum processo eleitoral pode expor à derrota e, no limite, sequer a legislação pode aspirar incluir senão na condição de beneficiários e privilegiados. A lei simplesmente não pode se abater sobre eles, não pode alcançá-los, em suma, remete à velha estrutura do Brasil escravocrata em que os senhores pairam sobre o mundo.

Em outra passagem conexa os militares reservistas pretendem apresentar o cenário político nacional como falacioso, perpassado por atores mentirosos, instituições tendenciosas exercidas de modo arbitrário e por gente canalha e desonesta. É pouco? Em suma, a nota dos coronéis recheia a vida civil de todos os vícios que esta terra pode conter que, por suposto, não se encontram na caserna. A vida política civil também é usualmente alvo do desprezo, e assim, por exemplo, o diretamente apoiado pela nota, o Gen. Heleno, já teve oportunidade de confidenciar ao notável público as suas insuspeitadas habilidades como cantor – na oportunidade retomava o cancioneiro nacional e pregava no ar: “se gritar pega centrão, não fica um meu irmão…” –, e agora, eis que, deparamos todos nós com os mais de três milhares de militares que ocupam a administração pública. Como o Gen. Heleno e os coronéis signatários da tal nota avaliariam esta realidade? Acaso seria uma espécie virtuosa de centrão? Um tipo de centrão que apresenta as suas melhores credenciais quando ao pedir cargos descansa os fuzis à mesa? Seria um “grande centrão armado”? Onde está a indignação dos coronéis signatários da referida nota?

Os reservistas reclamam implicitamente a posição de reserva moral da nação, mas não mostram qualquer sinal de revolta em face da (já famosa) “reunião das hemorroidas”. Não há sequer remoto sinal de indignação com o amontoado inaudito de barbaridades que causaram espanto na imprensa de todo o planeta, exceto na moralidade dos coronéis da reserva do Exército brasileiro. Analisando de longe, ao que parece, a perspectiva destes reservistas é de que ali naquela impensável reunião apenas havia a frequência do que os coronéis qualificariam como “pessoas de bem”, como “autoridades legitimamente constituídas”, mesmo que todos tenhamos ouvido alto e bom som a defesa veemente, atenção, veemente, da formação de milícias intensamente armadas Brasil afora, algo que deixa o que pensar sobre o histórico interesse em controlar portos e fronteiras, assim como certos segmentos das polícias.

Quem poderia reclamar a posição de reserva moral da nação jamais poderia sair em defesa do grupo da hemorroida interessado em destruir as florestas brasileiras e dinamitar nobres bens como a sociedade de economia mista centenária como o Banco do Brasil, fundado no longínquo 12.10.1808 no Rio de Janeiro. Falta estofo aos que se propõem incendiar a nação como esporte de final de semana antes de fixar residência em Miami. São estes os que falsificam o real e enxovalham as instituições que a democracia brasileira criou através da Constituição de 1988, tal como é o caso dos frequentes ataques ao STF, desprezando os seus componentes e atribuindo-lhes falta de “nobreza, decência, dignidade, honra, patriotismo e senso de justiça”, com a ressalva de que, sem citar nomes, não se trata de crítica aplicável a todos.

A nota é concebida de tal forma que potencializa as suas nefastas consequências a cada mínimo período. Caráter inacreditável, os signatários atribuem às decisões do STF a qualidade de trazer ao “país insegurança e instabilidade, com grave risco de crise institucional com desfecho imprevisível, quiçá, na pior hipótese, guerra civil”, mas assim não avaliam, de forma alguma, nenhuma das declarações dos militares e do Governo que apoiam cegamente que, todas as semanas, vem a público conclamar seus seguidores para a radicalização e que o façam de forma armada. Em dia precedente ao da publicação da referida nota pelos reservistas ocorreu a publicação do teor da gravação da malfadada reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, e nela o Presidente da República simplesmente faz o chamamento e declara aos gritos e nervosamente que pretende “armar o país inteiro”, sob o cândido olhar dos generais presentes na reunião ministerial. Os reservistas que firmam a nota em apoio ao Gen. Heleno e ao Presidente da República insistem em fechar os olhos e não ver risco de guerra civil, mesmo com a população armada, e justamente quando os ânimos estão demasiado acesos. Pois mesmo assim, os reservistas querem atribuir ao STF o risco de tomar decisões que gerem guerra civil. A quem ponto pode alcançar a retórica ligeira e a irresponsabilidade quando casadas.

Em meio ao tenebroso mar construído por estas linhas, o texto dos reservistas lapida frase histórica, a saber, que “Aprendemos, desde cedo, que ordens absurdas e ilegais não devem ser cumpridas”. Notável, verdadeiramente notável a afirmação”. Especialmente ao considerar a fonte de onde emana,  precisamos analisar com atenção este trecho. A que vem a afirmação dos reservistas de que “Ordem absurda não se cumpre”. De ser levada a sério esta afirmação podemos deduzir logicamente que durante a ditadura não lhes pareciam absurdas aos hoje reservistas as ordens para torturar e matar cumpridas por muitos. Acaso a aguda sensibilidade dos reservistas hoje vicejante nada percebeu de absurdo nas monstruosidades ordenadas naquela época?

Cabe questionar vivamente os coronéis que hoje apresentam sua queixa histórica à decisão de encaminhar possível investigação de aparente ilícito – assim, portanto, sob condicionamentos distantes e até improváveis – por qual motivo à época da ditadura não divergiram das ordens emitidas para torturar e matar. Cabe hoje questionar aos coronéis por qual motivo hoje tanto estranham e expressam com tanto desembaraço e até agressividade a um mero encaminhamento do Min. Celso de Mello, ao titular da Procuradoria Geral da República (PGR), Augusto Aras, tendo por objeto o telefone do Presidente da República? Cabe questionar o motivo do descompasso das sensibilidades, posto que à época da ditadura esteve ela suficientemente entorpecida até mesmo ao cumprir as sangrentas ordens de tortura e morte de cidadãos brasileiros, incluindo crianças. O despertar da hibernação não ocorreu nem mesmo com a barbárie à sua frente ou com o sangue a empapar as suas mãos.

Rigorosamente, nenhuma das barbaridades pareceu motivo suficiente aos reservistas para enfrentar o regime, impingindo aos seus líderes o opróbrio e reagir com o desenho no de uma guerra civil, senão o contrário, dedicaram-se a torturar e assassinar aqueles que assim o pretenderam para libertar o país do jugo do reino do puro arbítrio. Sem embargo, aos reservistas hoje lhes parece suficiente para reuni-los em torno a classificação como gravíssima uma orientação judicial da Corte superior do país, quando esta aponta nada mais do que para a possível perícia no telefone da Presidência da República. É indispensável insistir junto aos coronéis acerca de quais teriam sido os motivos pelos quais as práticas da ditadura não lhes pareceram suficientemente agressivas a ponto de insuflar os ânimos e, como agora, chegar a apontar um futuro recheado por potencial “guerra civil”, mas sugerindo que, hoje, quando não está instaurada a realidade da tortura e da morte de homens e mulheres de forma sistêmica nas práticas do poder atacado (o STF), isto sim, paradoxalmente, merece tão aguda crítica e reação. Sendo assim, o que realmente está por trás da reação de militares da reserva à mera possibilidade de investigação da Presidência da República, passando a rechear o horizonte com a perspectiva da guerra civil?

Como um todo, o conteúdo da nota é lamentável, desrespeitosa em sua abordagem e sentido último, antidemocrática em seus propósitos, triste em seus termos, depressiva em suas escolhas e, essencialmente, golpista em sua orientação. Regozijar-nos-íamos se correta fosse a sua classificação de sua redação como um grande equívoco, e não como uma deliberada escolha racional de indivíduos que continuam presos ao Brasil da década de 1950 e à mentalidade da Guerra Fria. É precisamente esta a mentalidade de seus colegas de farda hoje no Governo, que revelam a sua extrema valia para os fins emasculação da soberania do Estado brasileiro e de brutal recolonização em prol dos interesses norte-americanos, e mesmo assim em sua fatídica nota os reservistas não hesitam em apontar o dedo e acusar magistrados de “vendilhões impatrióticos”. Continuam todos presos à doutrina da Escola das Américas (e afins), a famigerada escola de torturadores mantida pelos Estados Unidos da América do Norte (EUA) e que gestou os golpes e o inesgotável repertório de violências praticadas na América Latina, América Central e Caribe.

Mas qual é o conjunto de tão amplas virtudes e valores, dentre as quais a coragem, que habita estes homens fardados hoje na reserva, mas que apenas levantam a sua verve ameaçadora contra civis desarmados? Evitando a personalização, isto recorda aos valentões militares argentinos, sequestradores, torturadores e violadores que no enfrentamento com os ingleses na Guerra das Malvinas/Falklands em 1982 renderam-se em já aos poucos dias não sem antes expor a vida de milhares de jovens argentinos com praticamente nenhum adestramento militar. Por seu turno, os nossos foram à reserva sem dedicar tempo e apreciável esforço ao exercício profissional de defesa, e teria sido realmente melhor que jamais tivessem pego em armas quando o fizessem para desenvolver ainda mais as técnicas de trituramento dos corpos de seus compatriotas. Heróis de porões, melhor não tê-los. Valentões de bairro redatores de frágeis notas contra a democracia, melhor não conhecê-los. Ambos, destituídos do real valor de que carece a pátria para a sua defesa dos reais inimigos, e não de imaginários constituídos tão somente para tergiversar inconfessáveis interesses econômicos.

A real proteção do país e do Estado não pode estar formada senão pelo homem do povo, e as instituições armadas precisam dispor de estrutura que os capacite exclusivamente para a submissão à soberana ordem política, intervindo tão somente em caso de defesa da soberania nacional segundo a conceituação legal, eludindo assuntos políticos internos. Para tanto o magnânimo adestramento do homem do povo haverá de desenvolver-lhe as virtudes e infundir a coragem, mas mantendo e reforçando o seu ethos e apreço por suas raízes populares, o seu orgulho e amor pátrio. Este é o sentimento de nobreza de que se reveste a dignidade de uma força armada. A que vem, então, uma armada que serve para destruir os corpos de seus concidadãos em favor dos interesses de um país estrangeiro? A que vem, então, uma armada que opera em atenção aos comandos que vem de fora e despreza a sua própria gente? A que vem, então, uma armada que ameaça os poderes constitucionais legal e legitimamente investidos?

Como podem reservistas que guardam com frescor na memória toda a história da ditadura militar emitir nota política com o teor desta aqui analisada que alveja as instituições quando em seu passado recente observamos como tantos dedos indicadores fácil e flexivelmente se adaptaram a acionar os cães do que dirigiram-se acusadoramente aos próprios peitos. E assim, sob censura, ocorreram mortes, torturas, atropelamentos, sequestros, estupros, afogamentos, fuzilamentos, incinerações, enforcamentos… por Deus, por Deus… onde, em que recanto da alma humana podem ter ido buscar esconderijo o que resta de qualquer mínimo vestígio de constrangimento e pudor? Onde foram parar estes últimos resquícios de contenção moral de reservistas que trôpegos emergem das sombras para declarar em público que “aprenderam a não obedecer ordens arbitrárias”? Aprenderam? Como ousam afirmá-lo quando ainda ecoam os agudos gritos de torturados, violados e mortos dos porões da ditadura? “Aprenderam a não obedecer ordens arbitrárias” vandalizando gente e barbarizando corpos de formas que enrubesceriam o próprio diabo? Há testemunhos e provas documentais que ensejaram condenações judiciais que interditam o caminho destas almas ao espaço de paz e sossego. Como, então, podem vir a público e novamente expor estes cadáveres torturados e insepultos que bloqueiam as suas vidas institucionais? Como pode a serenidade alcançar certas almas quando após décadas de transformações continuam os corpos de centenas de homens e mulheres sem vida a soar o timbre de suas portas?

A serenidade evidencia sua ausência da nota tanto em seus aspectos formais e de articulação da estrutura do texto como de seu conteúdo. Assim, o ápice do documento não vem ao final, quando apenas reconhecem o óbvio, lamentando-se infantil e sub-repticiamente pela perda da juventude, do reflexo e vigor típico dos cadetes, dificultando o empunhar armas e desembainhamento de sabres, como se a razão a detivesse a pura força, e não a Razão. Pobres homens que suspiram pela força bruta como árbitro para estabelecer parâmetros para a convivência social, pobre sociedade que se encontra à mercê daqueles a quem o avanço na idade não representa progressos qualitativos, malgrado reclamem ostentar “na maturidade e na consciência, incólumes o patriotismo, o sentimento do dever, o entusiasmo e o compromisso maior, assumido diante da Bandeira, de defender as Instituições, a honra, a lei e a ordem do Brasil com o sacrifício da própria vida”. Reclamos meramente formais que em verdade enunciam novo equívoco.

Os ácidos críticos reservistas de alta patente para horizonte recheado por guerra civil sem expor a risco as suas provectas vidas, declaradamente inaptas para o enfrentamento físico, mas sim a da juventude brasileira que encarna o futuro do país. Sem hesitações e levianamente desenham horizonte pautado pela tragédia que nenhuma geração brasileira conheceu, mas seria erro supor que estão a sós na pilotagem desta nau errante, à distância de considerar seus sócios externos. Criticam superficialidades paralelamente ao desprezo das milhares de mortes ocasionada pela incúria do Governo ao qual emprestam apoio incondicional, enquanto expõem o pecado dos togados que se dedicam a “saborear lagosta e bebericar vinhos nobres”.

O ápice da nota dos oficiais de pijama está perdido no meio dela, expressando o quão intolerável é o encaminhamento do Min. Celso de Mello, concluindo incisivamente: “Chega!” Sim, os coronéis reservistas tomam a liberdade insustentável de imprimir um sonoro “chega” acompanhado do luxo de assomar-lhe um ponto de exclamação, em sentido inextricavelmente autoritário, típico dos valentões que pretendem ordenar como as instituições constitucionais devem funcionar, como se estivessem a tratar com os seus recrutas na limpeza do banheiro. Desfaçatez-mor com a nação e aos que lhes pagam o soldo.

Para os militares hoje em pijama é inaceitável a figura do ex-Presidente Luis Inácio Lula da Silva, a quem aplicam os epítetos de “ladrão”, “corrupto”, “condenado”. Trata-se de ex-Presidente do Brasil eleito e reeleito, que ao concluir o seu mandato contava com aproximados 87% de aprovação da população. Em face dos interesses em distanciar o Brasil de políticas que promovam o seu desenvolvimento, o ex-Presidente Lula foi escolhido como alvo prioritário para a perseguição política, articulação tecida pela casta brasileira aliada aos EUA. Os reservistas expõem a ojeriza ao desenvolvimento do país e o ódio ao povo brasileiro ao expor a sua crítica menor a que Lula transite pela Europa criticando o Brasil. A ideologia de direita e extrema-direita que coloniza as Forças Armadas não admite críticas, nem mesmo quando o criminoso é fotografado de arma em punho e vestes manchadas pelo sangue quente ainda a jorrar do cadáver. Nem assim. Isto explica em boa parte a tomada de posição da turma da AMAN de 1971, que preserva a herança dos piores dias de sua formação na ditadura militar.

Ainda que considerada no plano estritamente hipotético a veracidade das acusações e adjetivos com que os reservistas recobrem a figura pública do ex-Presidente Lula, cabe inquirir-lhes sobre onde, por Deus, onde, está a sua pressuposta honesta, genuína e intensa indignação moral contra aqueles que estupraram, amassaram crâneos, sequestraram pessoas, forjaram atropelamentos e suicídios e enforcamentos, que torturaram das mais diversas formas desde arrancar unhas a aplicar choques em todas as partes do corpo, contra aqueles que queimaram gente, que torturaram mulheres grávidas e torturaram crianças, que inseriram ratos em vagina de mulheres? Onde, senhores, onde, por Deus, onde, está este inflamado tom de indignação que demonstram contra o ex-Presidente Lula quando temos em causa violações praticadas até contra crianças a quem sequer a suspeita de culpa alcançava? Onde está a indignação moral dos reservistas contra substancial tropa de homens dementes e insanos, capazes de todas estas e muitas outras atrocidades mais que já foram comprovadas e alvo de condenação judicial, do que é exemplo a figura de Carlos Alberto Brilhante Ustra? Por qual motivo os senhores dispõe de indignação moral seletiva? Acaso argumentarão que era “guerra”? Não, senhores, não era, tecnicamente não era, mas, mesmo concedendo que fosse, o dever das Forças Armadas era aplicar o Tratado de Viena, e nesta condição, respeitar os direitos dos prisioneiros de guerra. A instituição e os senhores militares devem muitas desculpas, extremas, ao povo brasileiro, tanto pelo derramamento de sangue de ontem como agora renovado destes milhares de mortos, que se avolumam a cada dia em horizonte sem fim neste regime militar que maximiza as condições da morte derivada da pandemia associada à pobreza, somados, agora, à sofisticação sádica de assestar novo golpe contra as instituições democráticas do país em meio à tragédia.

Ao olhar para o passado observamos crimes sobre crimes, mortes e trucidamento de corpos de todas as formas que apenas os mais cruéis personagens das mais obscuras páginas da história humana puderam conceber. E hoje observamos quadro não menos desalentador, vergonha (inter)nacional de um regime que arremete contra o seu povo e que não é indiferente às mortes, senão que é delas copartícipe, na medida em que promove as suas condições de ocorrências, quer pela ação (más práticas públicas e ausência de campanhas de comunicação de massa) ou pela omissão (não comprar equipamentos e providenciar pessoal e condições sanitárias).

Hoje a nota dos reservistas alerta ao povo brasileiro de que vestem um pijama no corpo e mantém uma ideia golpista na cabeça. Estes são os companheiros de viagem de uma sofrida população, que se revelam prontos e dispostos a insuflar não apenas o descumprimento das regras de convívio democrático como já observamos desde o golpe de 2016, como também de patrocinar as condições efetivas para uma guerra civil, cuja deflagração é de interesse exclusivo dos Estados Unidos da América do Norte. A presente nota aponta para horizonte de conflagração armada que é de interesse dos que pretendem controlar o regime através das armas e não da política, através da força bruta e não pela lógica das urnas, pelo extermínio e não pelo diálogo com os adversários políticos, e disto é apenas uma prova parcial a ameaça do Presidente da República no dia 23 de maio de 2020 de que poderia vir a ordenar a prisão do Min. Celso de Mello.

O que está em curso no Brasil neste exato momento é uma nova etapa do golpe de Estado iniciado em 2016 e que interrompeu o legítimo e democrático mandato da Presidente Dilma Rousseff. Trata-se de uma nova fase estritamente militar de uma lenta e bem programada sucessão de passos para que seja instaurada uma sanguinária ditadura com o apoio e reconhecimento dos EUA. Roda nos ares do Brasil a foice brandida pela mão obscura e cega do neofascismo, cujas potenciais vítimas não excluem a ninguém embora os aliados assim o creiam.

*Professor universitário. Doutor em Filosofia do Direito (UFPR). Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC). Mestre em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM). Especialista em Direito Constitucional e Ciência Política (Centro de Estudios Políticos y Constitucionales / Madrid). Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direito (UnB) (2016-2019). Pós-Doutor em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM) 

 

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