Henrique Matthiesen*
Há trinta anos, O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, permanece como uma das obras mais grandiosas e comoventes da inteligência nacional. Escrito com a paixão de um homem que via o país como um projeto inacabado, o livro não é apenas uma análise antropológica — é um manifesto de esperança e dor, um retrato vivo do que somos e de como chegamos até aqui. Darcy, sempre entre o cientista e o poeta, entre o militante e o sonhador, lançou-se à tarefa monumental de compreender a alma do Brasil, não pela via da exaltação ingênua, mas pela consciência trágica de um povo que nasceu da violência, do encontro e da criação.
A frase que talvez melhor sintetize sua obra — “Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos” — é uma chave interpretativa poderosa. Nela, Darcy condensa a gênese do Brasil como um processo simultâneo de destruição e invenção. O entrechoque é o conflito fundacional: o choque das armas, das línguas, das crenças e dos corpos. Foi a ferida original da colonização que impôs o domínio português sobre os povos da terra e os africanos trazidos à força. O caldeamento, por sua vez, é a magia amarga da mistura — o processo pelo qual, da dor e da imposição, nasce algo novo. Não se trata de harmonia fácil, mas de fusão sob tensão. Darcy vê nesse caldeamento o nascimento de um povo que, ainda que gestado sob o signo da opressão, produz uma cultura única, vibrante e resistente.
O invasor português surge como figura ambígua: o dominador e o portador da matriz civilizatória europeia, que, ao impor sua ordem, também se transforma no contato com os “índios silvícolas e campineiros” e com os “negros africanos”. Os indígenas, primeiros habitantes, trouxeram o saber da terra, a cosmovisão comunitária, a familiaridade com o ambiente; os africanos, arrancados de seus mundos, trouxeram a força do trabalho, a fé e a resistência. Juntos, forjaram o que Darcy chama de “um povo novo”. Novo, porque se cria de um amálgama cultural sem precedentes; velho, porque nasce já colonizado, destinado a servir aos interesses da metrópole — um proletariado externo, como define o autor, gerador de riquezas exportáveis à custa do desgaste humano.
É nesse contexto que surge o conceito mais doloroso e, ao mesmo tempo, mais revelador de Darcy Ribeiro: a ninguendade. Ela representa a condição de não ser que marca os descendentes das populações miscigenadas — mamelucos, mulatos, mestiços —, que não pertencem plenamente a nenhuma das matrizes formadoras. São os “ninguéns” da história, rejeitados pelos colonizadores e desenraizados das culturas originárias. Essa ninguendade é o vazio existencial da colonização, a perda da etnia, da língua e da identidade. O brasileiro, nessa leitura, é um ser em trânsito, fruto de uma mestiçagem imposta, condenado a buscar sentido em meio à ruína das origens.
Mas Darcy, com sua visão generosa e humanista, vê nessa ninguendade não o fim, mas o começo de algo maior. O povo brasileiro, apesar de mutilado, reinventa-se. Da ausência de pertencimento nasce a potência criadora — o samba, a capoeira, o futebol, as festas populares, a fé sincrética. São expressões de uma identidade que, por não ter raízes puras, floresce no improviso, na invenção, na alegria resistente de quem transforma dor em arte. A ninguendade converte-se, assim, em brasilidade: uma forma de ser no mundo marcada pela criatividade e pela solidariedade, capaz de resistir e refazer-se infinitamente.
Darcy Ribeiro acreditava que o Brasil era uma “nova Roma tropical”, um projeto civilizatório original que ainda estava por se cumprir. Sua fé no povo brasileiro era inquebrantável. Ele via na mestiçagem, mesmo forçada, a semente de uma civilização singular, mais fraterna, mais aberta, mais humana. Trinta anos depois, O Povo Brasileiro continua a nos interpelar: somos, ainda, essa gente em busca de si mesma, tentando superar as marcas da colonização e transformar a ninguendade em potência criadora.
Darcy, com seu verbo apaixonado e sua alma de pedagogo da nação, ensinou-nos que conhecer o Brasil é um ato de amor e de coragem. E que, talvez, nossa maior riqueza esteja justamente nessa mistura caótica e luminosa que nos fez ser quem somos — um povo novo, nascido do entrechoque, do caldeamento e da esperança.
*Henrique Matthiesen é formado em direito e pós-graduado em sociologia