Em tempos de crise global da democracia liberal, complexifica-se o cenário para manutenção do Partido dos Trabalhadores (PT) na Presidência da República
João Montenegro*
Le Monde Diplomatique
O retorno de Donald Trump superradicalizado ao poder nos EUA mexe, novamente, com o Zeitgeist, ventando favoravelmente à extrema direita na América Latina – não é por acaso que a bolha bolsonarista na internet já esteja convocando manifestações pedindo “fora Lula”.
Mas o que eu gostaria de destacar como potencial motivador do destronamento do PT em 2026 ou adiante (seja pela via eleitoral ou golpe disfarçado de impeachment) é algo que, em tese, é positivo: a “mania” que o partido tem de praticar políticas de pleno emprego.
Segundo dados mais recentes do IBGE[1], o desemprego no Brasil encerrou o terceiro trimestre de 2024 em 6,4%, próximo aos níveis de 2014 – antes da então presidente Dilma Rousseff ser praticamente arrastada para fora do Palácio do Planalto pelas turvas águas da Operação Lava Jato. A partir daí, foi ladeira abaixo – ou melhor, acima –, com os índices permanecendo em dois dígitos entre 2016 e 2022.
A contínua queda dos níveis de desemprego no país desde o retorno de Lula, em 2023, já levou economistas liberais e o próprio ex-presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, a alertarem, sem cerimônia, que é recomendável conter essa “festa danada”, como diria o ultraliberal Paulo Guedes.
O pretexto é o combate à inflação, que, uma vez fora de controle, “afetará principalmente os mais pobres”. Mas o pano de fundo da austeridade, isto é, a política do dinheiro caro (altas taxas de juros), é a ameaça do pleno emprego ao próprio sistema capitalista.
Para entendermos o porquê, é preciso voltar à Europa dos anos de 1920, quando houve uma reação das burguesias inglesa e italiana aos ganhos de direitos e aumentos salariais obtidos pelos trabalhadores após a Primeira Guerra Mundial, conforme explica a economista italiana Clara Mattei em A ordem do capital: Como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo (Ed. Boitempo).
Tais avanços se deram à medida que, para estabelecer uma economia de guerra, otimizando a produção, os países envolvidos no conflito adotaram modelos que se assemelhavam mais a uma economia planificada (característica do socialismo) que de mercado. Isso levou os trabalhadores – então empoderados pelo emprego máximo da mão de obra – a começarem a questionar elementos basilares do capitalismo, como a propriedade privada e as relações assalariadas, que os submetiam à exploração burguesa.
Diante disso, a fim de recolocar o capitalismo “nos trilhos”, a burguesia contratou economistas acadêmicos para, segundo Mattei, inventar a austeridade, dando-lhe um verniz científico e disseminando-a a partir das conferências de Bruxelas e Gênova, em 1920 e 1922, respectivamente.
Sob o mantra de “mais trabalho, menos consumo”, o objetivo público, como hoje, era conter a inflação. Porém, o que se pretendia, de fato, era viabilizar a coerção da classe trabalhadora com a redução dos investimentos (refletindo o aumento da taxa de juros) e a elevação do desemprego, enfraquecendo os sindicatos e diminuindo o poder de barganha dos trabalhadores.
Para assegurar que o capitalismo não seria ameaçado, no contexto de então, liberais se aliaram ao governo fascista de Benito Mussolini para manter a classe trabalhadora em seu “devido lugar”, por meio de prisões e assassinatos de líderes sindicais. Não chegou a esse ponto na Inglaterra, mas os britânicos criaram leis proibindo greves, por exemplo.
Enquanto isso, os “acadêmicos da austeridade” divulgavam o receituário do que seria uma economia pura, matemática, sem nenhum tipo de interesse político ou particular (como se isso fosse possível), para justificar as duras medidas pretendidas e estimular a “independência” dos bancos centrais nacionais, como parte do processo de separação da economia da política – e, portanto, da democracia.
Esses mesmos economistas levaram tais ensinamentos a países periféricos, como o Brasil e a Índia, pregando a austeridade como paradigma quase que platônico. Somente dessa forma, alegavam, que seria possível forçar homens menos virtuosos (os trabalhadores) a poupar , canalizando os recursos para o homo economicus, isto é, o homem burguês, que fará os investimentos necessários para movimentar a economia.
“O empresário é parcimonioso, um pensador, um calculador, é este homem real que mais se assemelha ao abstrato homem retratado por economistas, que não se alvoroça como um maricas (sic) diante da dificuldade iminente”, escreveu Umberto Ricci, conselheiro de Alberto de Stefani, ministro das finanças no gabinete de Mussolini.
Vejam bem: não é incidental que o Golpe de 1964 tenha ocorrido quando Jango prometia reformas de base, como a agrária e outras de interesse da classe trabalhadora. Nem que a Lava Jato tenha derrubado um governo que vinha praticando políticas de pleno emprego (tendo a Petrobras como vetor de geração de postos de trabalho e investimentos nacionais e internacionais).
Como observado por Michael Kalecki, a disciplina nas fábricas é mais apreciada pelos líderes empresariais do que os lucros: “Seu instinto de classe lhes diz que o pleno emprego duradouro não é sólido do ponto de vista deles e que o desemprego é parte integrante do sistema capitalista “normal”[2]
Não será, portanto, total surpresa se um novo grande escândalo de corrupção estourar durante esta ou uma eventual próxima administração petista para, outra vez, criminalizar o partido e abrir espaço para novos “outsiders”.
Entre os candidatos está o pavoroso esquema do Orçamento Secreto, que, convém lembrar, foi instituído na gestão de Jair Messias Bolsonaro – a mesma em que foi aprovada a “independência” do Banco Central do Brasil.
*João Montenegro é jornalista e mestre e doutorando em Economia Política Internacional pela UFRJ.
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