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sexta-feira, 6 dezembro, 2024

O papel transversal da cultura

Rememorando, em sessão histórica do plenário multilateral da Unesco em Paris, em 25 de outubro de 2005, cuja delegação do Brasil era chefiada pelo ministro Gilberto Gil. (Imagem: Ricardo Stuckert)
Por Jom Tob Azulay*/Le Monde Diplomatique

No momento em que iniciamos o novo governo, é única a oportunidade para que a rica e plural cultura brasileira desempenhe por meio de políticas públicas, articuladas a nível internacional, seu papel como expressão da Diversidade Cultural, contribuindo assim para o desenvolvimento sustentável do país

Na revisão das políticas públicas que vem sendo executada pelo Grupo de Transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, cumpre que nas novas diretrizes das políticas da Cultura sejam levadas em conta as concepções constantes da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, conhecida como Convenção da Unesco sobre Diversidade Cultural.
Rememorando, em sessão histórica do plenário multilateral da Unesco em Paris, em 25 de outubro de 2005, cuja delegação do Brasil era chefiada pelo ministro Gilberto Gil e da qual fazia parte o acadêmico Eduardo Portella, a Convenção da Diversidade Cultural foi aprovada por uma maioria de 148 votos a favor, dois contra (Estados Unidos e Israel) e quatro abstenções (Austrália, Honduras, Nicarágua e Libéria). Destinada a representar no século XXI o que a Carta de São Francisco de 1945 significara para a consolidação da paz internacional ao fim da Segunda Guerra Mundial, pela primeira vez equiparava-se a cultura à economia para fins da conquista dos objetivos de paz e de desenvolvimento, os quais, desde então, se tornaram faces da mesma moeda.
Consagrando a diversidade cultural como “patrimônio comum da humanidade, a ser valorizado e cultivado em benefício de todos” e como tal fator de democracia, desenvolvimento econômico, paz internacional, defesa do meio-ambiente e bem-estar social individual e coletivo, a Convenção da Unesco materializa a transversalidade da Cultura para a formulação e realização das políticas públicas.
Não obstante, desde 2005, quando a Convenção da Unesco foi incorporada ao ordenamento jurídico constitucional brasileiro, pouco se viu frutificar de suas disposições nas legislações de apoio à cultura no Brasil. Faltou-nos o essencial, isto é, o reconhecimento de que “as atividades, bens e serviços culturais possuem dupla natureza, tanto econômica quanto cultural, uma vez que são portadores de identidades, valores e significados, não devendo, portanto, ser tratados como se tivessem valor meramente comercial”, conforme prega o preâmbulo da Convenção.
A “dupla natureza” do produto cultural implica a elaboração de legislações específicas para a regulação da produção cultural que levem necessariamente em conta essa ambivalência da obra cultural. Caso nossas políticas culturais se inspirassem no que preconiza a Convenção da Unesco sobre Diversidade Cultural, muito se pouparia nos desgastantes procedimentos burocráticos relativos à legislação sobre a produção das obras de arte, tratadas restritivamente como bens econômicos de natureza estritamente material, segundo os mesmos critérios e procedimentos da lei das licitações públicas. Só o contábil vale, nada do que caracteriza o produto cultural além do seu custo econômico é levado em conta na aferição de sua adimplência e finalidade.
No momento em que iniciamos o novo governo, é única a oportunidade para que a rica e plural cultura brasileira desempenhe por meio de políticas públicas, articuladas a nível internacional, seu papel como expressão da Diversidade Cultural, contribuindo assim para o desenvolvimento sustentável do país. É, porém, necessário recuperar o tempo perdido pois nosso descompasso em relação ao que se evoluiu no resto do mundo na questão é flagrante. Em 4 de novembro de 2020, paralelamente à reunião do G20, que teve lugar em Riad, na Arábia Saudita, os ministros da Cultura do G20 realizaram uma reunião conjunta sobre “A ascensão da economia cultural: um novo paradigma”. Pela primeira vez as discussões políticas do G20 reconheceram a crescente contribuição da cultura para a economia global. Em uma mudança de paradigma acelerada pela pandemia de Covid-19, o G20 reconheceu a contribuição potencial da cultura em todo o espectro de políticas públicas para forjar sociedades e economias mais sustentáveis, nas quais a cultura é colocada no centro da discussão como um componente chave da recuperação econômica e social. “Repensar o futuro da cultura significa vê-la como muito mais do que um setor econômico. É uma necessidade abrangente, subjacente a todos os aspectos das nossas sociedades. Não é um custo, é um propósito. A cultura não deve ficar à margem dos esforços de recuperação, ela deve ser central para eles”, afirmou na ocasião Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco.
De certa forma tinha razão a delegada dos Estados Unidos na reunião de 2005 da Unesco, ao justificar seu voto contrário à Convenção da Diversidade Cultural afirmando que esta “tratava de comércio em lugar de cultura”. Sim, a diversidade cultural volta-se para a economia, mas também para o meio-ambiente, os direitos humanos, a educação, a cidadania e o bem-estar individual e coletivo de todos os seres humanos por intermédio do poder (soft power) intangível e imaterial da cultura, relegando a segundo plano “a ganância grotesca” do poder econômico ou bélico (hard power), parodiando recente declaração do secretário-geral da ONU António Guterres. Por essa razão, a Diversidade Cultural foi nomeada “a última das utopias do Ocidente”, na medida em que sintetiza a quintessência das ideologias que marcaram a história. O Estado brasileiro, em reconhecimento à extraordinária vocação para o desenvolvimento da diversidade cultural de nosso país, necessita atualizar-se em relação ao tratado que dezessete anos atrás subscreveu.
*Jom Tob Azulay é cineasta e diplomata aposentado, integrou a Delegação brasileira à Reunião da UNESCO sobre Diversidade Cultural de 2005.

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