Recentemente, vários artigos académicos e reportagens nos media abordaram a afirmação do Banco Mundial de que, até 2025, a pobreza extrema no mundo, especialmente na Ásia, terá diminuído drasticamente. Seria maravilhoso se isso fosse verdade, mas não é. Essa afirmação é espúria, resultante de uma prestidigitação (legerdemain) estatística que o Banco e os governos vêm praticando há muitas décadas, ignorando todas as críticas. Durante meio século, eles subestimaram repetidamente os gastos da linha da pobreza, até que agora suas linhas de pobreza são tão incrivelmente baixas que não permitem a sobrevivência humana. O Banco declarou que 5,25% da população indiana vive em extrema pobreza, usando uma linha de pobreza de 62 rúpias por dia. O Niti Aayog chegou a uma taxa de pobreza global de 5% para 2022-23, aplicando linhas de pobreza de 57/69 rúpias por dia para a Índia rural/urbana. Essas quantias teriam comprado diariamente um pouco menos de 2,9/3,5 litros da água engarrafada mais barata, enquanto a linha de pobreza deveria cobrir todas as despesas diárias alimentares e não alimentares (médicas, serviços públicos, manufaturas, renda de casa, transporte). Todos, exceto os mendigos sem-teto, morrem antes de atingir esses níveis de gastos. Podemos esperar, no próximo ano, a afirmação de que a Índia alcançou o nível zero de pobreza extrema, quando já não houver de todo sobreviventes na linha da pobreza. A linha da pobreza real, na qual se pode atingir um nível mínimo de nutrição, é pelo menos três vezes superior à linha da pobreza oficial e pelo menos 65% da população cai abaixo dela.
O Banco Mundial tem enviado consultores a países em desenvolvimento a fim de treinar seus economistas no procedimento de estimativa da pobreza, no âmbito do seu “programa de capacitação”. A linha da pobreza da China foi definida com base em recomendações do Banco, tomando como referência a linha da pobreza de 1978, de 100 yuans por ano, atualizada para 1997, e acrescentando despesas não alimentares. A alegação da China de “pobreza zero” em 2019 utilizou uma linha de pobreza oficial de 8,8 yuan por dia, o que daria para comprar 2,1 litros de água engarrafada e nada mais. Não restaram sobreviventes neste nível de gastos artificial, nunca realmente observado, e este número zero de pessoas observadas foi interpretado de forma perversa como a conquista do “zero de pobreza extrema”. Imediatamente após, a linha da pobreza foi elevada para 11 yuans por dia para 2020. Analistas bem informados na China dizem que pelo menos um quinto da população é incapaz de gastar o mínimo necessário para a subsistência, que eles estimam em cerca de 1.000 yuans por mês, três vezes a linha oficial da pobreza. Portanto, não há nenhuma conquista real de 5% de pobreza na Índia e nem pobreza zero na China.
No entanto, mais recentemente, a China lançou um projeto massivo de envio de muitos milhares de pessoas treinadas, especialmente para áreas rurais, a fim de identificar fisicamente, com a ajuda das comunidades locais, as famílias mais carentes e tem feito grandes transferências para reduzir genuinamente e, finalmente, eliminar a pobreza. Em menor escala, Kerala, na Índia, seguiu uma política semelhante e, com suas fortes redes comunitárias e voluntários, teve êxito na identificação e reabilitação de famílias carentes.
O Banco Mundial usa as linhas de pobreza em moeda local de vários países pobres e simplesmente as ajusta para cima em relação ao poder de compra do dólar americano, calculando a média para obter sua atual linha de pobreza global de US$ 3 por dia. Ao aplicar esta linha a um país individual, digamos a Índia, faz o ajuste inverso e deflaciona a taxa de câmbio nominal rupia-dólar em cerca de 0,28 para chegar ao equivalente em rupias de 3 dólares, que é sempre muito próximo da linha de pobreza oficial indiana.
Por que todas as linhas oficiais de pobreza – construídas de facto artificialmente – dão resultados espúrios de declínio e acabam abaixo do nível de sobrevivência? Porque, durante muitas décadas, sob o conselho do Banco, as linhas oficiais de pobreza foram desvinculadas, sem qualquer explicação, da satisfação de qualquer padrão nutricional. Apenas a primeira estimativa da pobreza em cada país se baseou corretamente na obtenção de uma “linha de pobreza” que permitisse à população atingir um padrão nutricional específico; todas as estimativas posteriores foram incorretas porque simplesmente aplicaram um índice de preços de Laspeyres ao número inicial a fim de transportá-lo para anos posteriores, sem nunca questionar se a norma nutricional continuava a ser satisfeita. O índice de Laspeyres é ponderado em relação às quantidades, ou seja, o cabaz de consumo específico de artigos e quantidades de bens e serviços adquiridos na linha de pobreza no ano base é mantido constante e o seu valor é atualizado meramente pela variação dos preços.
Os anos base na Índia e na China foram 1973 e 1978, respetivamente, fazem agora 52 e 47 anos. Suponha-se que, ao fazer as suas primeiras estimativas de pobreza em 1973 e 1978, os governos da Índia e da China tivessem anunciado que estavam a usar o custo atualizado de uma cesta de consumo que vigorava nos anos de 1921 e 1931, respectivamente. Eles teriam sido ridicularizados. Mas hoje os governos e o Banco falam com desenvoltura acerca da pobreza atual com base numa cesta com meio século de idade, sem suscitar qualquer crítica, porque o público instruído não tem ideia do absurdo do procedimento de estimativa que utilizam.
Em 1973, na Índia rural, eram necessárias 49 rúpias por mês por pessoa para atingir uma norma nutricional de 2200 calorias por dia, e 56,4% das pessoas que gastavam menos do que isso constituíam a taxa oficial e correta de pobreza. Em 2011-12, para satisfazer a mesma norma nutricional, eram necessárias 1320 rúpias por mês e 66,8% das pessoas ficavam abaixo desse valor, um aumento significativo em relação aos 56,4% iniciais. Mas os estimadores oficiais abandonaram silenciosamente a norma nutricional após 1973 e simplesmente indexaram o valor do ano base, dando 816 rúpias como a linha oficial da pobreza, com 25,7% das pessoas abaixo dela, em comparação com as 1320 rúpias corretas e 66,8%. A ingestão calórica era obviamente muito mais baixa na linha oficial da pobreza, tornando espúria a alegação de declínio da pobreza, uma vez que os pobres estavam a ser contabilizados abaixo de um padrão nutricional em declínio e não constante. Da mesma forma, a linha de pobreza urbana correta de 1973, de 56,6 rúpias por mês, satisfazendo a norma de 2100 calorias, deu uma taxa de pobreza de 49%, que em 2011-12 aumentou substancialmente para 62%, com o mesmo padrão de 2100 calorias exigindo um gasto de 2130 rúpias. A linha oficial de pobreza para 2011-12 era de apenas 1000 rúpias, resultando numa taxa de pobreza de apenas 13,7%, e permitindo apenas 1775 calorias diárias, um facto nunca mencionado.
Cada nova linha oficial de pobreza ao longo do tempo proporcionou uma ingestão nutricional cada vez menor, até que se chegou ao absurdo final (como eu previ num artigo de 2013) de uma linha de pobreza abaixo do nível de sobrevivência física. E a ausência de observações, porque ninguém sobrevive, é celebrada como pobreza extrema zero! Note-se que muitos países africanos começaram tarde a estimar a pobreza, os seus anos de referência não têm mais de uma década, e por isso registam níveis elevados, próximos dos níveis realistas de pobreza.
Assumir uma cesta de consumo fixa de meio século atrás, como na Índia, é equivalente a ignorar a pobreza, pois são precisamente as variações na disponibilidade de bens e serviços essenciais que produzem variações na cesta disponível, as quais são importantes para a questão de saber se a pobreza aumenta ou diminui. De serviços essenciais que deveriam ser fornecidos com fundos públicos, os cuidados de saúde, os serviços públicos e a educação passaram rapidamente para a esfera da prestação privada e sofreram aumentos acentuados de preços no âmbito das reformas orientadas para o mercado das últimas três décadas. Uma proporção crescente de todas as famílias não consegue arcar com esses custos mais elevados e manter seu padrão nutricional, uma vez que seus rendimentos não aumentaram adequadamente. O aumento da dívida das famílias na Índia é um indicador revelador. Famílias que não eram pobres inicialmente caíram na pobreza, enquanto as que já eram pobres sofreram um declínio nutricional ainda maior. Os dados de consumo da NSS na Índia mostram um declínio ao longo do tempo na ingestão média de energia e proteínas per capita, tanto nas áreas rurais quanto nas urbanas.
Se um atleta olímpico de salto em altura alegasse ter melhorado o seu desempenho mediante a baixa contínua do nível da barra, seria banido para sempre por trapaça; se um diretor de escola alegasse que a percentagem de reprovações havia caído drasticamente de 40% para zero, e se descobrisse que isso se devia à redução da nota mínima de 50 em 100 para 2 em 100, o diretor seria demitido. Mas parece que não existe nenhum organismo internacional que possa disciplinar o Banco para que siga um procedimento de estimativa lógico e ético e abandone o procedimento ilógico e desonesto que realmente utiliza, o qual reduziu a linha da pobreza na Ásia para um nível abaixo do nível de sobrevivência. O Banco já rejeitou o Relatório (2020) de Philip Alston, designado como Relator Especial das Nações Unidas sobre Pobreza Extrema e Direitos Humanos, que expressou preocupação com as linhas de pobreza irrealistas utilizadas pelo Banco. Sem dúvida, o Banco continuará a zombar dos pobres, dizendo-lhes que milhões deles foram “tirados da pobreza extrema”, quando, na realidade, cada vez mais famílias enfrentam custos médicos e outros custos crescentes, estão afundadas em dívidas e têm a nutrição reduzida.
Usamos cookies para personalizar e melhorar sua experiência em nosso site e aprimorar a oferta de anúncios para você. Visite nossa Política de Cookies para saber mais. Ao clicar em "aceitar" você concorda com o uso que fazemos dos cookies.
This website uses cookies to improve your experience while you navigate through the website. Out of these, the cookies that are categorized as necessary are stored on your browser as they are essential for the working of basic functionalities of the website. We also use third-party cookies that help us analyze and understand how you use this website. These cookies will be stored in your browser only with your consent. You also have the option to opt-out of these cookies. But opting out of some of these cookies may affect your browsing experience.
Necessary cookies are absolutely essential for the website to function properly. These cookies ensure basic functionalities and security features of the website, anonymously.
Cookie
Duração
Descrição
cookielawinfo-checkbox-analytics
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Analytics".
cookielawinfo-checkbox-functional
11 months
The cookie is set by GDPR cookie consent to record the user consent for the cookies in the category "Functional".
cookielawinfo-checkbox-necessary
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookies is used to store the user consent for the cookies in the category "Necessary".
cookielawinfo-checkbox-others
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Other.
cookielawinfo-checkbox-performance
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Performance".
viewed_cookie_policy
11 months
The cookie is set by the GDPR Cookie Consent plugin and is used to store whether or not user has consented to the use of cookies. It does not store any personal data.
Functional cookies help to perform certain functionalities like sharing the content of the website on social media platforms, collect feedbacks, and other third-party features.
Performance cookies are used to understand and analyze the key performance indexes of the website which helps in delivering a better user experience for the visitors.
Analytical cookies are used to understand how visitors interact with the website. These cookies help provide information on metrics the number of visitors, bounce rate, traffic source, etc.
Advertisement cookies are used to provide visitors with relevant ads and marketing campaigns. These cookies track visitors across websites and collect information to provide customized ads.