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sábado, 12 outubro, 2024

O Médico e o Monstro

Imagem: Paramount e Arquivo/AFP

Luiz Gonzaga Belluzzo e Manfred Back

Mercado financeiro e especulação não são opostos, apenas modos de existência do capitalismo

“O Sr. Hyde é o outro oculto no médico, o outro que, por obra de um experimento químico inventado e ingerido pelo próprio Dr. Jekyll, surge como uma figura grotesca, simiesca, um monstro moral, resultado da transformação que se processa no Dr. Jekyll ao testar em si mesmo a droga por ele criada.

Esse ‘outro’ nascido da mutação sofrida pelo Dr. Jekyll não é, contudo, um outro externo, um outro que se apresenta diante do Dr. Jekyll como alguém pronto a confrontar o médico ou passível de ser confrontado ou mesmo destruído por ele. Em nenhum momento o Dr. Jekyll e o Sr. Hyde se veem frente a frente; não são duas pessoas, e sim dois modos de ser de uma mesma pessoa.” (Robert Louis ­Stevenson, O Médico e o Monstro: O ­Estranho Caso do Dr. Jekyll e Sr. Hyde).

O mercado financeiro, o Doutor Jekyll, e a especulação, o Senhor Hyde, são dois modos de existência que convivem e se esbatem nos espaços inexoravelmente monetários do capitalismo. No mundo positivista dos economistas, o “real” e o monetário estão apartados no modelo IS-LM — IS (Investimento-poupança) e LM (Demanda e oferta de moeda). O mundo bonzinho da “economia real” comandaria a vida perversa da economia monetária. Nesse universo da “objetividade científica”, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Mas no mundo da economia capitalista monetário-financeira “uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa”.

Dr. Jekyll, a finança, sem Mr. Hyde, a especulação, não tomou o experimento químico, a droga da realidade, consubstanciada na forma geral da riqueza, o dinheiro. Ganhar dinheiro depende da taxa de retorno – investindo em bens ou recomprando ações – caras-pálidas! Grita a tigrada: especulação é um problema moral a ser combatido! Mate o monstro Hyde, sobra o médico Jekyll. Santa ingenuidade!

Na Teoria Geral, Keynes disparou:

“Em minha obra Treatise on Money, observei que, quando as ações de uma empresa são cotadas muito alto, de modo que essa mesma empresa possa aumentar seu capital emitindo novas ações em condições favoráveis, os resultados daí decorrentes são os mesmos que se ela conseguisse obter empréstimos a uma taxa reduzida de juros”. (Keynes, ­Teoria Geral, Capítulo XII.)

Em artigo publicado no Project ­Syndicate e reproduzido no jornal Valor, Joseph Stiglitz despertou os leitores para as proezas mentirosas de Donald Trump:

“Trump não hesitou em reivindicar o mérito pelo crescimento que se seguiu. Mas, enquanto ele e os republicanos do Congresso reduziram os impostos para corporações e bilionários, a prometida onda de investimentos nunca se materializou. Em vez disso, houve uma onda de recompras de ações, que estão a caminho de ultrapassar 1 trilhão de dólares no próximo ano”.

Assim como o sistema bancário é capaz de criar moeda bancária através do crédito, os cursos de Economia são capazes, endogenamente, de criar visões deturpadas. A capacidade de criar moeda é proporcional à capacidade de criar miopia econômica! A miopia, as crenças e os dogmas tecem o véu que obstrui a compreensão das relações umbilicais entre as dimensões fiscal e monetária do capitalismo, tais como as peripécias do médico e do monstro.

O sistema bancário cria moeda bancária e os cursos de Economia criam visões deturpadas

Em 1694, é criado o Banco da Inglaterra, cujo capital, subscrito pelos fundadores, é imediatamente emprestado ao Estado. A grande inovação, uma nova forma de financiar a dívida pública, com duas­ nobres intenções: a primeira, financiar a guerra e o exército, e a segunda, canalizar a massa de dinheiro tanto para fins bélicos quanto para desenvolver um mercado financeiro e de capitais. Incentivar o crédito e criar o mercado secundário de ações, para financiar as empresas inovadoras. Isso não impediu especulação, fraudes, manipulações de preços, informações privilegiadas e notícias falsas. Combater os abusos é importante, porém não inibe a especulação. A droga que faz o médico e o monstro serem a mesma pessoa é ganhar dinheiro! Todo santo dia, em qualquer instituição financeira, nas reuniões matinais, é a mesma pauta: qual a nossa posição? Qual o caixa? E o que vamos fazer hoje?

Vamos relembrar os ensinamentos de Jean-Jacques Rousseau no Discurso sobre Economia Política:

“Pode-se afirmar que é correta a distinção proposta no início entre economia pública e economia particular, e que as mesmas regras de conduta não convêm ao Estado e à família, que em comum têm apenas a obrigação de ambos os chefes de procurar a felicidade…

“…O comércio, a indústria e a agricultura são a boca e o estômago, que produzem a subsistência comum; as finanças públicas são o sangue que uma economia sábia, fazendo as funções do coração, reenvia a todo o corpo, distribuindo a comida e a vida; os cidadãos são o corpo e os membros que fazem movimentar, viver e trabalhar a máquina, de modo que qualquer ferimento que esta sofra em uma de suas partes, imediatamente uma sensação de dor seria levada ao cérebro por meio de uma impressão dolorosa, se o animal estiver em perfeito estado de saúde.

“A vida de um e de outro é o eu comum ao todo, a sensibilidade recíproca e a correspondência interna entre todas as partes. Se essa comunicação cessa, se a unidade formal é desfeita e as partes contíguas encontram-se numa simples relação de justaposição? O homem está morto ou o Estado desfeito”.

A experiência histórica demonstra a articulação estrutural entre o sistema de crédito, a acumulação produtiva e financeira, o consumo privado e a gestão das finanças do Estado, particularmente da dívida pública. Nas crises financeiras, o caráter essencialmente “coletivista” da economia monetária da produção, ou seja, do capitalismo, surge no naufrágio financeiro como a tábua de salvação dos mercados privados. As relações entre as finanças públicas, a gestão monetária e o setor financeiro privado não são “externas”, de mero intervencionismo. São orgânicas e constitutivas.

Publicado na edição n° 1319 de CartaCapital, em 17 de julho de 2024.

Fonte(s) / Referência(s):

Carta Capital

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