Não estando em Brasília, não poderei me despedir do amigo Samuel, nem abraçar sua querida companheira, minha amiga Maria Maia.
Mas posso e devo escrever algumas linhas mal traçadas sobre Samuel Pinheiro Guimarães, que outros louvarão com maior densidade intelectual. Na hora de sua passagem, o que desejo é que ele ainda seja plenamente reconhecido como um dos maiores diplomatas de seu tempo, como um intelectual público de primeira grandeza e como um mestre para gerações de jovens diplomatas.
Para sua legião de amigos, fica a lembrança do homem que tão bem combinava doçura e energia, sempre atento às circunstâncias que cada um vivia, que tinha sempre uma palavra, um conselho, uma luz a oferecer. Quando queria nos recomendar um caminho, ele baixava a voz e, quase sussurrando, dizia: “Acho que você devia…..”
Samuel não colecionou passagens por postos diplomáticos importantes, e isso é o de menos em sua trajetória. Os punhos de renda nunca o seduziram. O que lhe importava, na diplomacia, era a eficácia da ação no plano internacional, de modo a garantir a prevalência do interesse e da soberania nacionais, com vistas ao bem estar de nosso povo.
Foi como secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores (2003-2009), nos dois primeiros governos Lula, que ele alcançou o ponto alto de diplomacia da ação, formando dupla com o chanceler Celso Amorim.
A política externa altiva e ativa deste período tem muito de Lula, de Celso e também de Samuel. Logo no começo deste período a Alca (Aliança de Livre Comércio das Américas) foi removida das relações bilaterais com os Estados Unidos como proposta nefasta aos interesses do Brasil e do subcontinente Sul. Samuel a combatia desde o governo FHC, o que lhe valeu perseguição e ostracismo, até que veio o governo Lula.
A outras frentes multilaterais ele imprimiu sua marca e deu contribuição, tais como o fortalecimento do Mercosul, a criação da Unasul e outras ações a favor da integração latino-americana, que lhe era tão cara.
Como intelectual, Samuel teve uma intensa produção de textos, livros e conferências, em que se destaca o livro “500 anos de periferia”, obra fundamental para a compreensão de conceitos binários como Colônia e Metrópole, Terceiro Mundo e Primeiro Mundo, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, relações Norte e Sul.
Algumas destas expressões já perderam a força mas continuam representando basicamente a mesma coisa: como é que os países ricos condicionam a vida dos países mais pobres, impondo dependências, obediências e expoliações.
Outra obra importante foi “Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes”, que lhe valeu o Troféu Juca Pato de Intelectual do ano em 2006. Nela tratava de soberania e integração, mas também de temas ainda não tão candentes, como Amazônia e Meio Ambiente, Direitos Humanos e inclusão.
Na Secretaria de Assuntos Estratégicos, que ele ocupou em 2011, não conseguiu levar adiante suas principais propostas. E da mesma forma, renunciou ao cargo de Alto Representante para o Mercosul: a pressa que ele tinha em avançar com a integração não encontrou correspondência nos governos dos quatro países do bloco.
Uma terceira dimensão de Samuel é a de mestre.
Como professor do Instituto Rio Branco, ajudou a formar gerações de jovens diplomatas, inspirando-lhes o sentido republicano da profissão, ajudando-os a compreender a complexidade do mundo em que iriam atuar. Mesmo fora do instituto, como Secretário-Geral estava sempre empenhado em promover seminários e debates para os quadros da casa, tratando de fazer circular no Itamaraty o hábito de pensar, discutir e questionar.
Em 2017, quando da formatura da turma Berta Lutz do Rio Branco, da qual fez parte meu filho Rodrigo, os alunos criaram uma figura nova no ritual, a de professor homenageado, com a qual distinguiram Samuel, o que lhe deu grande alegria.
Tendo sido tudo isso, ele era afável e desprovido de arrogâncias. Nos últimos tempos, já com a saúde debilitada, estava sempre com Maria (que é cineasta, poeta e escritora) nos círculos culturais de Brasília. A arte e a cultura lhe interessavam tanto quanto a política e a diplomacia mas evitava pontificar, só falando quando era chamado.
Nestes saraus e encontros de Brasília estará sempre faltando ele. Mas fica um legado imenso, que ainda será melhor valorizado e conhecido. Será criado agora o Instituto Samuel Pinheiro Guimarães, proposta que seus muitos amigos lhe apresentaram em vida e ele aprovou.
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