-Seja irmã de um escritor, e viva para sempre. Seja a irmã deficiente (por assim dizer) que quer loucamente ser escritora – e escreve seus repentes de “encantários”, “bijutelíricas” e devaneios letrais numa linguagem toda própria – e seja eternizada numa obra-prima pelo irmão consagrado escritor. Das duas uma? Dos dois, um livro para chorar, sentir, repensar a vida, se encantar com a mãe – fiquei fã – Dona Ruth Guimarães da Academia Paulista de Letras, um pilar (em todos os sentidos, até os desconhecidos e inomináveis) do Clã marcado.
-O escritor de renome, autor, Joaquim Maria Botelho, irmão da Rovana, surda-muda, pelas palavras as vezes serena e as vezes estrambólicas e ainda assim datadas, dela, ao seu jeito todo peculiar, pelas notáveis costuras das pinceladas memoriais dele, juntando lágrimas e afetos, véus e parecenças, lonjuras e intimidades, fervor e lavraturas, vai semeado a ‘almanau’ da irmã determinada, com sua fé-coragem, resiliência – coragem é milagre? – o bojo do núcleo parental, o esteio da mãe, bandeira e luz, as sépias do pai, os outros irmãos deficientes, e a morte costurando, cerzindo, purgando, cortando, – abençoada seja a matriarca Dona Ruth! – e assim a narrativa lastra-se e lavra-se e você se encanta. Periga chorar. Fica um cravo de lágrima, de dor, de amargura, depois de esperança, de garbo afinal, pela notável resistência de Rovana vivificada e, agora, irmã eternizada do escritor consagrado, co-autor dessa história de tenacidade, de galhardia, que, sim, merecia ser contada, e, bem contada, e que virou livraço da Editora Pasavento.
-Rovana, irmã de Joaquim, nasceu surda-muda pela Síndrome de Alport, mas que mesmo assim aos 12 anos aprendeu a ler e escrever, e criou uma linguagem toda particular para se comunicar, registrar sua visão de mundo, desabafar, falar de amor e até xingar os irmãos pelas brigas na infância e marotices de percurso e defesa. Imagino o autor procurando por folhas soltas – cadernos, datas, memórias, acontecências, os percalços tantos das quantas buscas – entendimentos possíveis, reviçando memórias, tocando feridas, perdas, ausências, silencitudes-andaimes, e ainda assim se escrevendo, pontuando, clarificando, dando datas, nomes, situações, conflitos, idas e vindas, verbos, entendimentos próprios, e, querendo ou sem querer, também implicitamente até nos volteios da linguagem evocando a mãe, sustentáculo, base primordial, em que, nas entrelinhas li-senti ser de uma grandeza linda, firme e forte, eio-central da família sobrevivendo apesar de tudo, dos percalços, lutos, lutas, reagindo com forças que não são desse mundo, e sendo referência do núcleo todo, do qual o próprio autor herdou luz e traz a verve como consagrado profissional de renome, de currículo fora de série, e que ainda assim por isso mesmo, conta de seu sangue, corta na própria pele do íntimo, diz de sua lágrima, de sua dor, de seus espelhos e de suas grandezas sobrevivenciais de meio e de releituras da difícil vida e ainda de ter que resistir, sobreviver. Ufa! Um livro para se ler e se reaprender a ser gente, a ser forte, a ser e sobreviver para muito além do ser. Rovana brilha, Rovana fala, Rovana vive.
Fincou pé, saudade-livro, historial e presença. Bravo!
-Surda muda – mas não se submetendo a isso – Rovana quer se comunicar, precisa, deve, se impodera de algum vinculo qualquer (espiritual?), palavra, eio, e tenta, fura a pele do impossível, e revela-se, cresce, aparece, emerge, e passa a escrever aqui e ali seu entendimento limitado ou não dessa dura e difícil barra pesada de viver, de sua realidade pedindo palco, por ser como é, por ser como se sente, por precisar regurgitar seus pontos de vagidos existenciais, dizer a que veio, fazer-se presente, compreendida, dentro de seu entendimento e assim extravasar o que sente de tudo e com todos, nervosa ou braba, impaciente ou com dificuldades, mas com um atrevido espírito guerreiro, buscando livramento, uma marruda e sensível leonina querendo trocar as cascas e soltar a cigarra que a vidamorfose de um evolução propicia, faz e acontece em si, em torno de si, do torto que seja de si, nas palavras entrecortadas ao seu modo e como lampejos de se assinar existente, residente, ser estar e permanecer…
O livro/romance/diário/(documentário) de Rovana é também assim e por isso mesmo uma espécie de biografia da difícil vida delazinha, com momentos de impactos, travessuras, mais as conciliações, a ternura de ajustes daqui e dali, do próprio irmão narrador, numa linguagem que parece a própria personagem principal, Rovana, contando pra você na linguagem lá dela, mas que você abarca, segue, agrega, entende, e se emociona… Ela ainda vive nesse livro, que, aliás, daria um belo filme, como, por exemplo e medida as proporções, o Diário/Milagre de Anne Sullivan. E depois, dizia Hannah Arendt, “Toda dor pode ser suportada, se sobre ela pode ser contada uma história”
O livro diz de quase meio século da vida difícil de Rovana, ultrapassando limites do ser de si, se entrosando na marra, se impondo, a criança que sempre foi aqui e ali se adultizando dentro de um flanco sobrevivencial, emergente, e o autor pesquisando os 194 cadernos da irmã guerreira, as garimpadas emoções repassadas a limpo, as conquistas pari-passu, valorizando a vida pura que nela resistia apesar de tudo, uma menina que, também herdou da mãe o verbo resistir acima e sobre todas as coisas. Como disse Fiódor Dostoiévski, é no vazio que o voo acontece. E Rovana assim se enlivrando, se libertou.
Lá pelas tantas, de tantos registros, o autor cita a anotação da mãe, Ruth Guimarães (negra, escritora e jornalista, integrante da Academia Paulista de Letras, primeira brasileira a ter seu nome registrado na Encyclopédie Française de la Pleiade) a respeito da filhota:
“De repentemente a partir dos 35 anos, Rovana passou a usar deliberadamente, e com muita independência, uma construção vocabular e uma interpretação particular das palavras a meio baseadas em tudo que ouviu e captou, inclusive ou principalmente a linguagem televisiva, comunicação e janela para a sociedade que a rodeia. A captação, a utilização e a criação dessa metalinguagem levaram-na a soluções poéticas, inesperadas, muito pessoais, em boa parte impróprias, talvez improváveis, ou podemos dizer estrangeiras, uma vez que Rovana é estrangeira no mundo”.
E Rovana, no mundo, ao seu jeito todo próprio de ser, e todo peculiar, expõe em pinceladas o seu entendimento de sentir/pensar/evocar, contando:
“A noite está com frio. Estou batendo na boca do dente.”
-Feito. A história de Rovana está consumada. Está no livro. Ela se eterniza assim. E nos emociona. Mexe com nossas máscaras, lágrimas, situações de conflitos, porque assim somos e para isso fomos feitos. Para resistir, evoluir. Deixar nossas marcas nessa vida louca de tantas sofrências caladas, de tantos enredos guardados, mas que Joaquim Maria Botelho nos traz à luz, impresso, na luz de si mesmo, na luz de Rovana, na luz do Clã Guimaraes/Botelho. Um clássico. Rovana teria muito orgulho de ver sua obra editada, sua vida-livro ser aberta ao mundo, como uma lição de resistência e determinação sem igual. Erich Kastner dizia: Uma história, um romance, um conto, essas coisas assemelham-se a seres vivos. Elas têm sua cabeça, suas pernas, sua circulação e sua roupa, como uma pessoa de verdade.”
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