José Bessa
Já deu para notar que o blog continua o mesmo – Taquiprati. Mas o ganhou um novo autor: Geraldo Lopes de Souza Júnior, um sobrinho-filho, estatístico, passa a exercitar aqui o prazer da escrita, o que ele faz com muita criatividade. Com ele compartilho o encantamento por contos, romances e poesias da literatura universal. Estamos agora compartilhando o blog. Ele ajuda esse pobre analfabeto digital a sobreviver nesse mundo das novas tecnologias. De vez em quando, prometo voltar com um texto ou outro.
Autor: Geraldo Lopes de Souza Júnior
Manaus, 24 de agosto de 2025
— Alô, Geraldinho? Olha só, no final do mês que vem eu vou fazer uma viagem para a Ilha de Marajó. Vamos discutir a situação dos povos originários que estão em conflito com as madeireiras e os garimpeiros. Esses filhos de um Bolsonaro estão ferrando a vida dos indígenas. Se não fizermos algo rapidamente, a pajé Zeneida não vai me perdoar. Vai ser um debate extremamente importante, e eu não tenho como ficar de fora. Tu sabes como é… Tu citaste Bertolt Brecht na nossa última conversa. Eu gosto de pensar que sou um daqueles imprescindíveis, que lutam a vida toda. Mas não consigo fazer isso sem tua ajuda…
— Claro, me diz como posso te ajudar? — digo isso pensando que não entendo nada das causas indígenas.
— Cara, se eu chegar lá, resolvo tudo. Só preciso que tu desenroles o meu check-in nesse voo que mandei pro teu zap.
Incrédulo, olho o relógio. Cinco e treze da manhã. Cinco. E. Treze. E ele me liga pra pedir um check-in. Ele mesmo sempre se apresenta como “analfabeto digital”. Como pode alguém, capaz de amenizar conflitos desse calibre, não conseguir fazer um simples check-in no site da companhia aérea da vez? E por que tem que ligar para mim tão cedo? E por que tenho de saber toda a história? Não seria mais fácil mandar um zap dizendo apenas: “Quando for a hora, faz o meu check-in. Beijos”?
Volto a encarar o celular. A mensagem está lá, firme, piscando na tela:
“Vê isso pra mim, não te esqueças. Não gostaria de incomodar, mas não tem outro jeito.”
Pronto. Tô enrolado. Ou melhor: tô com o Enrolado. Porque o homem é isso: vai para a Ilha de Marajó discutir a situação dos marajoaras, enfrentar grileiros, garimpeiros e empresários mal-intencionados. Vai citar Darcy Ribeiro e enfrentar discursos reacionários. Vai dar entrevista pra rádio comunitária, vai convencer estudantes a ingressar na causa, vai inspirar jovens indígenas a resistir. Mas abrir o site da companhia, clicar em “confirmar” e receber um QR code? Aí precisa de mim.
E tudo bem. Eu entendo. Ele tem 78 anos. Ainda escreve “zap” com aspas. Desconfiado do botão “Confirmar”, acha que todo pop-up é golpe e toda atualização é uma cilada do sistema. E tem lá sua razão. No mundo dele, cada clique pode ser uma armadilha. Se não for uma armadilha, é uma dúvida: “O que é esse QR code? Isso aqui apaga tudo?”
Outro dia me ligou desesperado porque o navegador ficou com a tela preta. Tinha certeza de que os hackers tinham invadido o computador. Era só o modo escuro.
E mesmo assim, ele tenta. Aprendeu o básico: mandar áudio, encaminhar mensagens, abrir PDF (quando o PDF colabora). Usa a tecnologia como ferramenta, com um certo respeito cerimonioso. Nada de exageros. Nada de ficar o dia inteiro grudado na tela. Ele entra, resolve o que precisa e sai. Funcional. Direto. Um uso quase ético do digital.
Eu, por outro lado, fui criado entre disquetes e Wi-Fi. Sei que botão de “aceitar cookies” não é convite para sobremesa, e que tutorial bom é aquele com trilha sonora ruim e mouse acelerado. Aprendi fuçando, errando, testando. A geração que vem depois de mim nem isso: já nasce sabendo deslizar o dedo na tela, como se o toque fosse inato. Meu sobrinho de três anos já bloqueia celular e troca de aplicativo mais rápido que muito adulto com graduação.
Mas meu tio é de outro tempo. Ele lê o manual. Lê inteiro. Quer saber para que serve cada função, mesmo que nunca vá usar. Quer entender. E, se não entende, liga. Pra mim. Sempre pra mim. E o pior: se não tiver manual, ele faz questão de escrever um. Passo a passo, clique a clique.
O curioso é que, apesar da lentidão, da dependência, do medo de apertar o botão errado, ele vê valor nesse mundo digital. Sabe que é ali, também, que a luta acontece. Que tem indígena fazendo denúncia pelo Instagram, que tem ativista organizando movimento por grupo de WhatsApp, que tem vídeo no YouTube ensinando a proteger a terra com argumentos legais. De vez em quando, até cita nomes que vejo pipocando nas redes sociais — gente como Ailton Krenak, Sonia Guajajara, Davi Kopenawa, pastor Henrique Vieira ou Erika Hilton. Esses ele acompanha de perto. Outros, como Manuella Miklos, Lucas Jatobá, Ian Neves, Mídia Ninja ou Tales Faria, ele acompanha de longe — mas acompanha. Sabe que a tecnologia aproxima, visibiliza, dá voz. Ele só precisa de uma ponte que o ajude a atravessar — ou de uma catraia.
E aí, entro eu.
É nessas horas que percebo: apesar das diferenças, a coisa funciona melhor quando nos juntamos. Ele tem a vivência, o compromisso, o coração. Eu tenho o código do app e o traquejo com o sistema. Ele me ensina sobre o mundo real; eu ensino como é que faz o check-in. E, nessa troca, com certeza eu saio ganhando.
Porque, no fundo, cada vez que ele me pede ajuda, ele me dá muito mais do que um motivo para reclamar. Ele me oferece uma ponte para outro tempo. Um tempo em que as coisas eram feitas com mais calma, com mais presença, com mais propósito. Um tempo em que as pessoas se ligavam — no sentido literal — porque precisavam umas das outras. E ele me mostra que, mesmo aos 78 anos, ainda vale a pena lutar por algo maior que si mesmo. Que ainda vale a pena incomodar às 5h13 da manhã se for por uma causa justa.
É quase um escambo.
Eu entrego meu pífio domínio técnico — meus cliques certeiros, minha paciência com interfaces, meu olhar digitalizado. E, em troca, recebo lições que não estão em tutorial nenhum. Recebo história, escuto com respeito nomes que aprendo a admirar como o da pajé Zeneida com a energia dos Caruanas, entendo de perto os bastidores da resistência, vejo como a luta continua viva, mesmo com a tela tremendo nas mãos. Ele me lembra que a tecnologia não substitui a coragem, e que saber apertar botões não serve de nada se a gente não souber o que realmente importa.
No fundo, é isso. A tecnologia pode assustar, sim. Principalmente quando os dedos tremem, a vista falha e o medo de errar pesa mais do que a vontade de tentar. Mas, com o suporte certo, com paciência, ela se abre. Ela não é só dos jovens. Pode ser de todos. Porque, se de um lado há hiperconexão e ansiedade, do outro há sabedoria e perspectiva. E, quando essas pontas se encontram, não tem obstáculo que segure.
E quer saber? Ainda bem que ele liga. Ainda bem que, mesmo com o mundo cada vez mais automático e impessoal, ele insiste em pedir ajuda do jeito mais humano possível: com história, com contexto, com afeto, com confiança.
Ele me pede o check-in, mas, no fundo, o que me entrega é passagem. Não de avião — de tempo. Enquanto eu clico, ele atravessa, e junto com ele atravessam histórias, memórias e lutas que a gente não pode deixar cair. O QR code só confirma isso: o futuro só embarca quando carrega o passado no bolso.