– Uma modesta proposta: a Europa poderia “adoptar o dólar americano, tal como o Equador, a Somália e as Ilhas Turcos e Caicos”
Por Michael Hudson [*]
Agora é claro que a escalada de hoje da Nova Guerra Fria foi planeada há mais de um ano, com uma estratégia séria associada ao plano americano de bloquear o Nord Stream 2. Isso fazia parte do seu objectivo de impedir a Europa Ocidental (“OTAN”) de procurar prosperidade através do comércio e investimento mútuos com a China e a Rússia.
Tal como anunciado pelo Presidente Biden e pelos relatórios de segurança nacional dos EUA, a China era vista como o inimigo principal. Apesar do papel prestativo da China ao permitir às corporações americanas reduzirem as taxas salariais do trabalho, pela desindustrialização da economia dos EUA em favor da industrialização chinesa, o crescimento da China era colocado como o Terror Final: prosperidade através do socialismo. A industrialização socialista sempre foi percebida como sendo a grande inimiga da economia rentista (rentier) que tomou conta da maior parte das nações no século desde o término da Primeira Guerra Mundial – e especialmente desde a década de 1980. O resultado hoje é um choque de sistemas económicos – industrialização socialista contra capitalismo financeiro neoliberal.
Isto faz da Nova Guerra Fria contra a China um ato implícito de abertura do que ameaça ser uma prolongada Terceira Guerra Mundial. A estratégia dos EUA consiste em afastar os mais prováveis aliados económicos da China, especialmente a Rússia, a Ásia Central, a Ásia do Sul e a Ásia Oriental. A questão era por onde começar a dividir e isolar.
A Rússia era vista como a grande oportunidade para começar o isolamento, tanto da China como da Eurozona OTAN. Foi elaborada uma sequência de sanções cada vez mais severas – e, esperam, fatais – contra a Rússia para impedir a OTAN de com ela negociar. Tudo o que era preciso para inflamar o terramoto geopolítico era um casus belli.
Isso foi arranjado bastante facilmente. A escalada da Nova Guerra Fria poderia ter sido lançada no Próximo Oriente – por causa da resistência à captura dos campos petrolíferos iraquianos pela América, ou contra o Irã e os países que o ajudaram a sobreviver economicamente, ou na África Oriental. Planos de golpes, revoluções coloridas e mudança de regime foram elaborados para todas estas áreas – e o exército africano da América foi constituído especialmente rápido durante o último ano ou dois. Mas a Ucrânia fora sujeita a uma guerra civil apoiada pelos EUA durante oito anos, desde o golpe de Maidan de 2014, e oferecia a oportunidade da grande primeira vitória nesta confrontação contra a China, a Rússia e os seus aliados.
Por isso, as regiões de língua russa de Donetsk e Lugansk foram esmagadas com intensidade crescente e, quando a Rússia ainda se absteve de responder, foram elaborados planos para um grande confronto a começar em finais de fevereiro – a começando por um ataque blitzkrieg ucraniano organizado por conselheiros norte-americanos e armado pela OTAN.
A defesa preventiva russa das duas províncias ucranianas orientais e a subsequente destruição militar do exército, marinha e força aérea ucraniana durante os últimos dois meses foi usada como desculpa para começar a impor o programa de sanções concebido pelos EUA que hoje estamos a ver desenrolar-se. A Europa Ocidental tem seguido com obediência todo o seu percurso. Em vez de comprar gás, petróleo e cereais russos, irá comprá-los aos Estados Unidos, juntamente com um aumento acentuado das importações de armas.
A perspectiva de queda da taxa de câmbio euro/dólar
Portanto, é conveniente analisar a forma como isto poderá afetar a balança de pagamentos da Europa Ocidental e, consequentemente, a taxa de câmbio do euro em relação ao dólar.
O comércio e o investimento europeus anterior à Guerra para Impor Sanções prometia uma ascensão da prosperidade mútua entre a Alemanha, França e outros países da OTAN em relação à Rússia e à China. A Rússia estava a fornecer energia abundante a um preço competitivo, e está energia devia dar um salto quântico com o Nord Stream 2. A Europa deveria ganhar as divisas estrangeiras para pagar este crescente comércio de importação através de uma combinação de exportação de mais manufaturas industriais para a Rússia e de investimento de capital no desenvolvimento da economia russa, por exemplo, por empresas automobilísticas alemãs e investimento financeiro. Este comércio e investimento bilateral está agora interrompido – e permanecerá interrompido durante muitos, muitos anos, dado o confisco pela OTAN das reservas estrangeiras da Rússia mantidas em euros e libras esterlinas – e a russofobia europeia atiçada pelos media de propaganda dos EUA.
Em substituição, os países da NATO comprarão GNL dos EUA – mas terão de gastar milhares de milhões de dólares na construção de capacidade portuária suficiente, o que poderá demorar talvez até 2024. (Boa sorte até lá.) A escassez de energia irá aumentar acentuadamente o preço mundial do gás e do petróleo. Os países da OTAN também incrementarão as suas compras de armas ao complexo militar-industrial dos EUA. A compra quase à beira do pânico também aumentará o preço das armas. E os preços dos alimentos também aumentarão em resultado da escassez desesperada de cereais resultante da cessação das importações da Rússia e da Ucrânia, por um lado, e da escassez de amónia fertilizante fabricada a partir do gás.
Todas estas três dinâmicas comerciais fortalecerão o dólar em relação ao euro. A questão é, como irá a Europa equilibrar os seus pagamentos internacionais com os Estados Unidos? O que tem para exportar que a economia dos EUA aceite quando os seus próprios interesses protecionistas ganham influência, agora que o livre comércio global está a morrer rapidamente?
A resposta é, não muito. Então, o que fará a Europa?
UMA MODESTA PROPOSTA
Eu poderia fazer uma modesta proposta. Agora que a Europa deixou praticamente de ser [constituída] por Estados politicamente independentes, começa a parecer-se mais com o Panamá e a Libéria – “bandeira de conveniência” para centros bancários offshore que não são verdadeiros “estados” porque não emitem a sua própria moeda, mas usam o dólar americano. Uma vez que a zona euro foi criada com algemas monetárias limitando a sua capacidade de criar moeda para dispender na economia para além do limite de 3% do PIB, porque não simplesmente atirar a toalha financeira e adoptar o dólar americano, como o Equador, a Somália e as Ilhas Turcos e Caicos? Isso daria aos investidores estrangeiros segurança contra a desvalorização da moeda no seu crescente comércio com a Europa e no seu financiamento à exportação.
Para a Europa, a alternativa é que o custo em dólares da sua dívida externa contraída para financiar o seu crescente défice comercial com os Estados Unidos por petróleo, armas e alimentos irá explodir. O custo em euros será ainda maior à medida que a moeda caia em relação ao dólar. As taxas de juro aumentarão, abrandando o investimento e tornando a Europa ainda mais dependente de importações. A zona euro irá transformar-se numa zona morta economicamente.
Para os Estados Unidos, isto é Hegemonia do Dólar com esteroides – pelo menos em relação à Europa. O continente tornar-se-ia uma versão um pouco maior de Porto Rico.
O dólar em relação às divisas do Sul Global
A versão completa da Nova Guerra Fria desencadeada pela “Guerra da Ucrânia” corre o risco de se transformar na salva de abertura da Terceira Guerra Mundial – e é provável que dure pelo menos uma década, talvez duas, à medida que os EUA estendem o combate entre o neoliberalismo e o socialismo para abarcar um conflito à escala mundial. Para além da conquista económica estado-unidense da Europa, os seus estrategistas estão a procurar trancar os seus mercados em países africanos, sul-americanos e asiáticos em moldes semelhantes aos que foram planeados para a Europa.
A subida acentuada dos preços da energia e dos alimentos irá atingir duramente as economias com défices alimentares e petrolíferos – ao mesmo tempo que as suas dívidas denominadas em dólares aos obrigacionistas e bancos estrangeiros estão a vencer e a taxa de câmbio do dólar está a subir em relação à sua própria divisa. Muitos países africanos e latino-americanos – especialmente o Norte de África – enfrentam uma escolha entre passar fome, cortar no seu consumo de gasolina e eletricidade, ou pedir emprestado os dólares para cobrir a sua dependência do comércio nos moldes estado-unidenses.
Tem-se falado das emissões do FMI de novos DSE [Direitos de Saque Especiais] para financiar a ascensão dos défices comerciais e de pagamentos. Mas este tipo de crédito vem sempre com compromissos. O FMI tem a sua própria política de sancionar os países que não obedecem à política dos EUA. A primeira exigência dos EUA será que estes países boicotem a Rússia, a China e a sua aliança emergente de autoajuda comercial e monetária. “Por que razão deveríamos dar-vos DSE ou conceder-vos novos empréstimos em dólares, se vão simplesmente gastá-los na Rússia, China e outros países que declarámos como inimigos”, perguntarão os responsáveis norte-americanos.
Pelo menos, este é o plano. Não me surpreenderia ver algum país africano tornar-se a “próxima Ucrânia”, com tropas de procuração dos EUA (ainda há muitos defensores e mercenários Wahabi) a combaterem contra os exércitos e populações de países que procuram alimentar-se com cereais da agricultura russa, e alimentar as suas economias com petróleo ou gás de poços russos – para não falar da participação na Belt and Road Initiative da China que foi, afinal, o disparador do lançamento da sua nova guerra pela hegemonia neoliberal global.
A economia mundial está a ser incendiada e os Estados Unidos prepararam-se para uma resposta militar e transformação em arma do seu próprio comércio de exportação de petróleo e agricultura, comércio de armas e exigências para que os países escolham o lado da Nova Cortina de Ferro a que querem aderir.
Mas o que há nisto para a Europa? Os sindicatos de trabalhadores gregos já se manifestam contra as sanções que estão a ser impostas. E na Hungria, o Primeiro-Ministro Viktor Orban acaba de ganhar uma eleição sobre o que é basicamente uma visão do mundo anti-UE e anti-EUA, começando por pagar o gás russo em rublos. Quantos outros países irão romper as fileiras – e quanto tempo vai demorar?
Significa isto os países do Sul Global serem esmagados – não meramente como “danos colaterais” devido à escassez profunda e a aumentos dos preços da energia e dos alimentos, mas sim como o próprio objetivo da estratégia dos EUA ao inaugurar a grande divisão da economia mundial em duas? A Índia já disse a diplomatas norte-americanos que a sua economia está naturalmente ligada às da Rússia e da China. O Paquistão faz o mesmo cálculo.
Do ponto de vista dos EUA, tudo o que precisa de ser respondido é: “O que é preciso dar aos políticos locais e oligarquias clientes como recompensa por entregarem os seus países?
Desde as suas etapas de planeamento, os estrategistas diplomáticos americanos encaravam a iminente Terceira Guerra Mundial como uma guerra de sistemas económicos. Que lado escolherão os países: o seu próprio interesse económico e coesão social, ou a sua submissão aos líderes políticos locais instalados pela intromissão dos EUA, como os 5 Bilhões de dólares que a secretária de Estado Adjunta Victoria Nuland se gabou de ter investido nos partidos neonazistas da Ucrânia oito anos atrás para iniciar os combates que irromperam na guerra de hoje?
Perante toda esta intromissão política e propaganda mediática, quanto tempo levará o resto do mundo a perceber que está em curso uma guerra global, com a Terceira Guerra Mundial no horizonte? O verdadeiro problema é que, quando o mundo compreender o que está a acontecer, a fratura global já terá permitido à Rússia, à China e à Eurásia criar uma verdadeira Nova Ordem Mundial não-neoliberal que não precisa dos países da OTAN e que perdeu a confiança e a esperança de ganhos económicos mútuos com eles. O campo de batalha militar estará repleto de cadáveres econômicos.
[*] Autor de Super Imperialismo. The Economic Strategy of American Empire, Third Edition
O original encontra-se em https://thesaker.is/the-dollar-devours-the-euro/
Este artigo encontra-se em resistir.info