Roberto Amaral*
O 7 de setembro de Jair Bolsonaro vai para a história como o 18 Brumário que não deu certo. A farsa grotesca, pré-anunciada pelo desfile das relíquias da marinha no último 30 de agosto, afastou o temido trago da tragédia prometida, mas não deve ser vista como ameaça de todo debelada: continuará conosco por um ainda largo tempo, pois durará enquanto não for alterada a presente correlação de forças e removido o atual polo hegemônico, em cujo diretório têm assento os fardados, os herdeiros da casa grande, os procuradores do grande capital e os delegados do império do norte: o 1% de brancos ricos e milionários que nos governa, sem alternância desde a remota origem colonial.
Os generais, na realidade, são o braço armado de uma coalizão de interesses econômicos e políticos, nacionais e internacionais, em conflito com os interesses do país. A tutela que procuram exercer sobre a vida nacional, principalmente a partir do golpe de 1889, atende a essa missão a que se dedicaram. E, diga-se de passagem, trata-se de papel que vêm exercendo com lamentável êxito numa das sociedades mais injustas do planeta: somos, caminhando para o terceiro decênio do século XXI, a segunda província do mundo provedora de alimentos, em país no qual 124,6 milhões de habitantes, algo como a metade de sua população, vivem sob a angústia da insegurança alimentar. É a esse projeto que serve o bloco do poder, mesmo ao risco da fascistização do país, que pode ser o preço cobrado pela sustentação de Bolsonaro.
As forças armadas, que já respondem perante a História pelos crimes cometidos durante o mandarinato de 1964-85, e pelos crimes presentes do bolsonarismo, poderão amanhã ser responsabilizadas por grave cisão nacional, destruindo o projeto de unidade construído a tão duras penas em quase cinco séculos de uma civilização ainda por afirmar-se.
Se não foi desta feita que se efetivou a promessa do Duce tupiniquim de “virada de mesa”, o projeto do golpe dentro do golpe, visando à opção autoritária, permanece de pé, pois seus articuladores seguem nos mesmos postos de mando, animados, até, pelas manifestações do dia 7 passado que revelaram a existência de apoio popular ao projeto protofascista do qual o capitão é o mais ostensivo pregador. O jogo está à vista e as cartas na mesa: o mandatário em conflito com a democracia avança passo a passo e, sempre que insinua recuar, termina subindo mais um degrau na escalada golpista. Assim tem sido desde a campanha de 2018, e assim será até alcançar seu objetivo, ou ser defenestrado. Nessa sua arte de “morder e assoprar” para em seguida morder de novo, qualifica de canalha o ministro Alexandre Moraes para, na sequência, mediante a intermediação do inefável Michel Temer, oferecer ao ofendido o “cachimbo da paz”, que ele aceita pitar. E la nave va.
Há sinais de fissuras no bloco de poder, temeroso de que o desastre político leve de roldão o projeto neoliberal, a verdadeira “joia da Coroa”. Assim são tidos os manifestos e o comportamento da grande imprensa. Setores do grande empresariado (ouvidos pelos fardados), estariam admitindo trocar de posto o capitão, contanto que tudo continue como está, isto é, mantida a natureza do mando. Em síntese, trocar Joaquim por Manuel, preferentemente sem qualquer infração constitucional, embora os militares, por diversas vezes, com o apoio do empresariado e do império, tenha fraturado a Constituição, sob o pretexto de defendê-la – como ocorreu em 1955, quando o general Lott, com o apoio do Congresso, deu um golpe para impedir que um golpe fosse dado pela dupla Café Filho-Carlos Luz, sob as lideranças do brigadeiro Eduardo Gomes e do almirante Pena Boto.
Posta de lado, portanto, a possibilidade de um “chega pra lá” no capitão, ou de sua renúncia, a alternativa constitucional possível é o processo de impeachment, em cima do qual, porém, se senta o presidente da Câmara dos Deputados, auferindo gordos dividendos. Ademais desse óbice, concreto, há, assustando liberais de última plumagem, os temores da crise política e econômica que qualquer processo de impeachment implica. Cabe, ainda, considerar que o capitão, no momento, ainda conta com os apoios que faltaram a Fernando Collor e a Dilma Rousseff. A questão é quase hamletiana: se será muito caro ao país o trauma de mais um processo de impeachment contra um presidente da república (embora se trate o caso presente de cassar o mandato de um perigoso delinquente), que não cobrará menos de seis meses, é mais certo ainda que o país, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista econômico, não suportará mais um ano e quase quatro meses de Bolsonaro no terceiro andar do palácio do planalto. Como já foi observado, temerosos de banalizarmos o impeachment, estamos banalizando o crime de responsabilidade.
Superada essa questão, que podemos considerar instrumental, restará outra, talvez mais grave, porque de fundo. É que Joaquim deve ser trocado por Manuel, ou seja, trata-se de uma troca sem mudança e só nesses termos é que será levada a termo.
Fora um diktat da japona, não há como a direita governante, mais uma vez, e na sucessão de um governo desastroso sob todos os prismas (inflação, queda do PIB, alta do dólar, desemprego, expectativa de apagão), assegurar-se da eleição de seu delfim, que presentemente ela chama de “terceira via”, uma bandeira à procura de um candidato. Se o encontrar e se o fizer competitivo, a direita terá que correr o risco democrático de apostar no processo eleitoral, que o capitão de há muito tenta desmoralizar.
É pagar para ver.
Trabalhemos, portanto, com essa hipótese: com ou sem Bolsonaro, haverá eleições e elas serão respeitadas, como não foram em 2014, quando o PSDB se negou a reconhecer o resultado do pleito.
Se as eleições fossem hoje, porém, tudo indica que o candidato eleito seria, com indicação de vitória no primeiro turno, o ex-presidente Lula. Mas a possibilidade de retorno do ex-presidente é vetada por generais insubmissos e pelos barões da Faria Lima, os mesmos que financiam os grandes jornais e a grande televisão em sua atual e bem-vinda defesa dos princípios democráticos jogados ao lixo nos idos preparatórios do golpe de 2016 e na campanha de 2018.
Respeitadas as circunstâncias históricas, Lula ocupa hoje o papel que foi dado a Getúlio Vargas na campanha de 1950: não deve ser candidato (diz o Sr. Ciro Gomes); candidato, não pode ser eleito (para derrotá-lo a Faria Lima fará valer seus cofres); se eleito, não deve tomar posse (dizem as japonas insubordinadas) e, se tomar posse, deve ser deposto.
Essa postura, felizmente, não conta com a unanimidade do empresariado, pois há os que, na categoria e nos partidos (é o caso do senador Tarso Jereissati), trabalham com a hipótese de um acordo que preserve a ordem democrática (que não comunga com vetos) e a soberania popular.
Até aqui, terá observado o leitor, não aparecem as esquerdas como sujeito histórico. Todo o protagonismo está entregue à direita, seja a empresarial, seja a militar. E assim permanecerá o cenário, com as consequências que não precisam ser explicitadas, se faltar às nossas lideranças (partidos, movimento sindical, movimentos sociais) a capacidade de concertação em torno de um projeto comum que, tendo como eixo a preservação do processo democrático (que inclui a realização de eleições e o reconhecimento de seu resultado), fale ao conjunto da sociedade brasileira. Essa concertação não anula, e talvez até a exija mais, a frente da esquerda socialista que, a partir do projeto democrático, pode avançar na busca de objetivos concretos, como as transformações radicais de nossa estrutura econômica, política e social.
E, finalmente, a esquerda precisa encarar como estratégica a batalha ideológica, que abandonou desde pelo menos a campanha de 2002.
Até lá, com a frente ampla, se possível, sem ela se esta for a contingência, caberá aos partidos e aos movimentos populares e sindicais a retomada da mobilização social, liderando movimento popular pró-impeachment. Diante dele nossos partidos, a começar pelo PT, não podem ter dúvidas. Dependendo de seu nível de organização, o movimento social poderá retomar a direção do processo político. Para tal é fundamental compreender o óbvio: não haverá eleições se o projeto democrático não derrotar o projeto fascista, ou seja, não é esta a hora de privilegiar candidaturas, por mais legítimas que sejam.
*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia