O premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, discursa na Assembleia Geral da ONU, em 27 de setembro de 2024. Foto: Charly Triballeau/AFP
Roberto Amaral*
Celso Lafer, para quem não sabe, é o nome de um ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil nos governos Fernando Collor (1992) e Fernando Henrique Cardoso (2001-2002). De suas passagens pelo Itamaraty não se conhecem registros notáveis, mas se notabilizou quando, em janeiro de 2002, proporcionou lamentável fissura na dignidade nacional. Em viagem oficial aos EUA, submeteu-se, no aeroporto de Miami, a tirar os sapatos ao passar pelo controle de segurança do aeroporto. O episódio, que não honrou a tradição da Casa de Rio Branco, gerou polêmica na imprensa e mal-estar nos círculos diplomáticos. A crítica variou entre a censura ao comportamento subserviente do nosso ministro e os protestos contra o tratamento tido como nada amistoso dispensado à autoridade brasileira. Ficou nisso.
Vale acrescentar que Celso Lafer, além de ex-ministro, é professor-doutor aposentado da USP, a mais importante universidade brasileira. Nada obstante os justos títulos, se aventura como lobista da guerra e do governo facínora que comanda o enclave de Israel na Palestina, responsável pelo primeiro genocídio – ainda em curso – do século XXI. É, pelo menos, o que exala de seu artigo “O embargo à compra de equipamentos de Israel” (Estadão, 20/10/2024).
A primeira leitura sugere tratar-se de adaptação de provável Parecer, requerido por quem não se sabe e talvez não seja relevante saber. Pode ter sido a indústria armamentista, pode ter sido a caserna desatendida, pode ser, até mesmo, o ainda ministro da defesa em sua campanha visando, em momento muito delicado, a desestabilizar a política externa do presidente Lula, seu chefe. Fiquemos com a “melhor” hipótese: os interesses do sionismo.
O texto não honra o professor sênior. Seja na forma, seja no conteúdo, seja, principalmente na tentativa de argumentação jurídica, que poderia ser seu ponto alto. Assim, por exemplo, Lafer abre o arrazoado cavalgando afirmação absolutamente imprópria à terminologia jurídica, ao afirmar que o presidente Lula “embargou a compra de equipamentos”. Ora, essa hipótese é descabida até mesmo como tese. A insustentabilidade da premissa primária torna insanavelmente descabidas as considerações dela consequentes. E revela negligente e capenga compreensão do quadro constitucional pertinente. O que é incompreensível em texto da lavra de um jurista.
Comecemos, porém, com seu surpreende desconhecimento das leis das licitações, pois a arguição visa a contestar o ato do presidente da república que revogou concorrência do ministério da Defesa que aprovara a compra, pelo ministério, de equipamentos militares de empresa com sede em Israel, Estado beligerante contra a civilização. Diz Lafer que a decisão não tem base “nos princípios que disciplinam a administração pública brasileira (…)”. Vejamos o que reza a lei das licitações (Lei nº 14.113/2021):
“Art. 71 – Encerradas as fases de julgamento e habilitação, e exauridos os recursos administrativos, o processo licitatório será encaminhado à autoridade superior, que poderá:
I – (…)
II – revogar a licitação por motivo de conveniência e oportunidade”.
O professor se esmera em elogios ao insubordinado ministro da Defesa e (eis o ponto nodal da questão); na mesma toada desanca a política externa. Afirma que a decisão presidencial “não se justifica pelos princípios da paz e da solução pacífica do conflito…”. Ora, o beneficiário da compra seria um Estado beligerante, e fornecendo-lhe divisas, o Brasil estaria objetivamente se associando aos seus crimes! Lafer, porém, insiste e logo adiante escreve, retomando a linguagem dos pareceres jurídicos: “Concluo assim do acima exposto que a decisão do presidente Lula é uma sanção discriminatória que não se amolda aos princípios norteadores das relações internacionais e da administração pública do país”. Seu cliente fica exposto nesta afirmação que se esvai na pura retorica: “É [a decisão de Lula] equivocada avaliação diplomática do interesse nacional, fruto de uma opacidade intencional (sic.) de sua política externa, animada por um ímpeto de depreciar Israel no cenário geopolítico das paixões e tensões da vida internacional”.
Quem deprecia Israel – e o está levando ao justo isolamento internacional – é sua política declaradamente genocida e covarde, de base racista, sustentada pelo guarda-chuva financeiro, militar e estratégico dos EUA. E que não se aguarde o julgamento da história. Ele se acha em pleno andamento, e Israel já é réu.
Lafer, como se vê, finge desconhecer o Preâmbulo da Constituição, que institui um Estado Democrático destinado a assegurar, entre os valores supremos ali enumerados, o compromisso com a “solução pacífica dos conflitos” na ordem internacional. Além disso, igualmente ignora os princípios constitucionais das relações internacionais do Brasil (art. 4º), onde se destacam o da “prevalência dos direitos humanos”, a autodeterminação dos povos”, a “defesa da paz” e o “repúdio ao terrorismo e ao racismo”.
Todos esses princípios estão sendo frontalmente agredidos por seu cliente.
Uma gama de manifestações emitidas no âmbito das Nações Unidas e nos fóruns internacionais denominam o que está ocorrendo em Gaza e na Cisjordânia, criminosamente ocupadas por Israel, e agora no Líbano, como flagrante continuidade do genocídio mais visível e documentado da história da humanidade.
A atitude do Brasil, por seu chefe de Estado, recusando o ignóbil papel de conivente e colaborador do projeto sionista – tentado mediante o disfarce de compras de armas (uma forma de financiar o Estado agressor) – não é apenas o legítimo exercício de uma faculdade presidencial. É, também, o cumprimento de exigência constitucional e, acima de tudo, o atendimento de irrecusável dever moral.
Lamentavelmente, faz-se necessário lembrar a um ex-ministro de relações internacionais que o Brasil está submetido à jurisdição da Corte Internacional de Justiça, cuja atuação vem revelando a extensão do genocídio sionista, a abundância dos crimes contra a humanidade, em permanente exercício pelo Estado do Israel (cujos interesses e crimes são defendidos pelo professor-parecerista) e uma forma, ainda que parca do ponto de vista econômico, mas monstruosa do ponto de vista moral, seria nossa contribuição financeira para o horror, mediante a insólita compra de armamentos. Na contramão dos interesses da guerra, está o Brasil, legal e moralmente, obrigado a envidar todos os esforços ao seu alcance para fazer cessar e prevenir a continuidade do inominável massacre imposto às vítimas do genocídio em curso. O mínimo é não ajudar financeiramente o massacre de palestinos, a obsessão sionista, que o mundo se recusa a barrar.
Considerando que o presidente da República deveria, na apreciação da licitação, levar em conta tão simplesmente sua legalidade formal – abstraindo o mundo e a realidade fática –, e levada às últimas consequências as abstrações históricas sugeridas pelo artigo, estaria o Brasil de outrora política e eticamente autorizado, em tese, a comprar equipamentos, eficientes que fossem, utilizados em campos de concentração nazistas, desde que fossem objeto de licitação vencida pelo regime opressor. O que nossa honra repele.
No frigir dos ovos, estamos em face do insólito discurso da caserna atrasada, de que é locutor o ministro Múcio, para nos dizer que a decisão do presidente Lula “desconsidera não só a conveniência, mas também a oportunidade da administração pública brasileira de aprimorar, pela zelosa ação do Ministério da Defesa, a qualidade do equipamento das Forças Armadas”. Não é por aí. A qualidade do equipamento das forças armadas do Estado brasileiro depende da anterior definição – política e do poder civil – do papel que lhe deve ser destinado. E este papel só terá sentido quando as tropas se libertarem da subordinação doutrinaria das formulações do Pentágono, que elege, em detrimento da defesa da soberania nacional, a prioridade do combate a um inimigo interno que inventa: a ameaça comunista que só sobrevive nas mentes tacanhas de espertalhões e golpistas.
De outra parte, não dispõe de forças armadas o país que as aparelha com equipamentos, tecnologia e doutrinas estrangeiras. O reaparelhamento das forças armadas do Estado brasileiro depende de tecnologia e indústria bélica autônomas. Mas, para tanto, o país (dramaticamente ainda preso ao falso destino de economia agroexportadora, imposto pela classe dominante de sempre) carece de um projeto de ser: em pleno século XXI não temos clareza de que sociedade pretendemos construir, e quando ensaiamos qualquer movimento que vise a um mínimo de independência, a independência possível ditada pelas nossas circunstâncias, somos bombardeados pela pelo 1% de ricos e muito ricos, como os donos da Faria Lima, comprometida com nossa condição de país dependente na esquina do capitalismo.
O BRICS e o complexo de vira-lata – A cúpula do BRICS reúne em Kazan, na Rússia, países que abrigam mais da metade da população mundial. Veículos como CNN e Bloomberg registram a grandeza do evento. Mas por aqui, nessa miséria de informação e de análise, nove entre dez comentaristas insistem em fazer crer que: 1) o líder russo está isolado (devido à guerra contra a OTAN na Ucrânia); 2) O BRICS nada mais é que uma provocação ao “Ocidente” (ao qual julgam pertencer). A cobertura do Jornal Nacional é de uma facciosidade de fazer inveja à Fox News.
Hesitação diplomática – Em seu discurso na cúpula dos BRICS, feito remotamente, o presidente Lula denunciou, com firmeza, que “Gaza se tornou o maior cemitério de crianças e mulheres do mundo. Essa insensatez agora se alastra para a Cisjordânia e para o Líbano”. Nada obstante isso, que é muito, o chanceler Mauro Vieira afirmou à imprensa, em Kazan, que não está em consideração romper relações com o Estado genocida: “Romper relações não leva a nada, só leva ao acirramento da situação, pode levar a conflitos maiores na região”, aduziu. Erra o ministro, e o melhor exemplo de seu erro de avaliação é o caso do apartheid, regime racista (como o do enclave sionista) que foi isolado e enfraquecido após diversos países africanos e europeus romperem relações com a África do Sul.
A serventia da bonança – O ministro Fernando Haddad celebrou, nas redes sociais, o fato de o FMI haver atualizado a projeção de crescimento econômico do Brasil, de 2,1% para 3%: “Crescimento sustentável com inflação controlada e justiça social”, exultou. De fato, sobram razões para celebrar a bonança: trata-se de um ótimo momento para aplicar controle de capitais, taxar as grandes fortunas, rever as faixas do IRPF (como prometido), ampliar o investimento público em Saúde e Educação e mandar para as calendas toda proposta reacionária de arrocho no povo trabalhador. Mesmo porque 2026 está logo ali.
E lá se foi mais um amigo – Vladimir Carvalho foi um grande cineasta-documentalista porque era, acima de tudo, um grande brasileiro.
* Com a colaboração de Pedro Amaral