Por Márcia Cury*

Na noite de 21 de outubro, em matéria exibida num telejornal da TV aberta a respeito das manifestações no Chile, a repórter encerrava sua fala afirmando que o Chile tem “a melhor economia entre os países da América Latina e do Caribe”, mas que “os protestos são comuns no país”. Então fiquei a pensar que qualquer desavisado, mas minimamente atento, que assista a uma matéria como aquela, deve se perguntar “que diabo de mania é essa, de um povo que vive em meio à abundância, sair a protestar e a destruir as cidades?” Porque, posto assim, é um fato realmente curioso.

Sei que desavisados não leem este meio em que vos falo. Então, penso que podemos, e devemos, passar adiante estas reflexões para aqueles que nos rodeiam. Aos desavisados brasileiros que conhecemos é fundamental enfatizar que o que move o chileno a seguir neste estranho hábito de protestar é a sua revolta contra os nefastos efeitos de uma política neoliberal imposta há 30 anos no país, e que esta é exatamente a cartilha que serve como livro de cabeceira do “super” Ministro da Economia, Paulo Guedes. Mas, além disso, há outro ponto fundamental que faço questão de destacar: uma cultura de coletividade e de mobilizações que atravessa mais de um século naquele país, e que a ditadura, mesmo devastadora, não conseguiu destruir. Elemento, geralmente, esquecido, como se não houvesse história pré-73.

Em ditadura ou em Democracia: a mesma cartilha

Uma das características mais importantes da sociedade chilena é a sua profunda desigualdade e o grande desequilíbrio de poder sustentado em favor do capital. Apesar da retomada da sua democracia institucional em 1990, a grande transformação estrutural realizada pela ditadura de Augusto Pinochet permaneceu quase que intacta. As políticas implementadas em 1973 significaram novas dinâmicas redistributivas por meio de mecanismos jurídicos e econômicos, que impuseram um regime de exclusão. Isso se deu por meio da precarização das relações trabalhistas, que flexibilizou as contratações e demissões e suprimiu direitos, da desestruturação do movimento sindical, da passagem de propriedades públicas a mãos privadas, abarcando muitos dos serviços antes prestados pelo Estado, e que passaram a se concentrar em conglomerados, formados, inclusive, por funcionários do regime ditatorial.

A chamada “Revolução Capitalista” vivenciada pelos chilenos impôs um conjunto de “modernizações”, com o objetivo de redirecionar as relações sociais do país, de modo a “despolitizá-las” e orientá-las com princípios de mercado. A mercantilização dos direitos atingiu a todas as áreas da vida, a saúde, a educação, a seguridade social, os serviços básicos e, fundamentalmente, as relações de trabalho. E, diferentemente do caso brasileiro, que se refundou com base na Constituição Cidadã de 1988 (e não estou aqui discutindo os méritos da sua efetividade, mas os fundamentos da nova democracia), pautada em concepções de direitos universais, o Chile retomava o regime democrático sem que a Concertación por la Democracia propusesse qualquer mudança estrutural que invertesse a lógica de mercado que regia a vida social.

Mas, o que isso tem a ver com um reajuste de 30 pesos na tarifa do metrô e as manifestações massivas daquela população? Ocorre que o Chile segue tendo “os seus donos”, que controlam a economia e a vida do país. Como afirmam os manifestantes, 30 pesos é a “gota que rebalsó el vaso”. “Rebalsó” porque estamos falando de um país que, como bem destacou a repórter mencionada no início do texto, apresenta um crescimento anual importante, mantém inflação e desemprego sob controle, enfim, todos os dados macroeconômicos bonitos e atraentes que um produto precisa ter para ser vendido. Mas que, por outro lado, insiste em manter garantias e ampla proteção aos empresários e ao seu capital, e em ignorar a profunda desigualdade dela resultante. E assim, segue sendo vendida a imagem de país modelo para a América Latina.

A passagem do metrô passaria de 800 para 830 pesos, cerca de U$$1,17. Parece pouco. Mas, a tarifa do transporte do país já figura entre as 10 mais caras do mundo em relação à renda média. Já que famílias de baixa renda podem ter de dispender de 30% da sua renda em transporte. E isso se dá num contexto brutal de desigualdade, em que 1% da população mais rica, abocanha 33% da renda, segundo dados da Fundación Sol. E no qual, de acordo com números da CEPAL, 50% dos lares de menor renda, detêm somente 2.1% da riqueza gerada no país.

Ainda de acordo com a Fundação, no mercado de trabalho, somente 37% dos trabalhadores está sob regime de contratação direta, deixando um grande contingente da população no trabalho informal e sob contratos intermitentes. Cerca de 40% dos trabalhadores não têm qualquer proteção da legislação trabalhista. Demissões “por motivo de força maior” dão flexibilidade para dispensas em massa e geram instabilidade entre os trabalhadores; nas empresas, as negociações não se dão por ramo produtivo e se pulverizam entre diferentes sindicatos que podem atuar no mesmo local, e até recentemente, 2016, greves eram instrumentos inúteis, uma vez que ao empresário era garantido o direito de contratação de mão de obra substituta, elementos que retiram qualquer poder de negociação.

Agora, somemos a este cenário outros fatores que levam o chileno ao esgotamento em meio à economia abundante do país. Há aquelas, aparentemente, conjunturais, como a alta considerável no custo de vida, com reajustes recentes nas tarifas de energia elétrica (que chegaram a mais de 9%), e aumento dos preços de produtos básicos. Tais reajustes ainda se agravam com os cartéis que se formam em setores da economia, como o esquema recentemente denunciado das redes de farmácia e das marcas de papel higiênico.

E há os problemas estruturais do ABC da mercantilização (sim, porque as siglas que regem a vida dos chilenos são a sopa de letrinhas da superexploração). O sistema privado de aposentadorias, concentrado nas famigeradas AFP (Administradoras de Fondos de Pensiones), implementado pelo então ministro José Piñera (o sobrenome não é mera coincidência), concentra-se nas instituições financeiras privadas que se encarregam de administrar fundos de contas individuais e poupança para a aposentadoria. Com exceção ao caso das Forças Armadas, todas as aposentadorias só podem ser administradas por este sistema privado, desde 1980. Aplaude-se, entre os seus entusiastas, o grande desenvolvimento de um mercado de capitais no país. Este sistema privado se tornou uma verdadeira indústria, um negócio altamente rentável e de baixíssimo risco para grupos econômicos chilenos e consórcios estrangeiros, que lucram com a rentabilidade do capital extraído dos trabalhadores (mínimo de 10% sobre o salário), taxas de administração e comissões. Em geral, são administradoras estrangeiras, a maioria norte-americana, que conta com suas filiais no Chile.

Em 2017, por exemplo, 73% dos ativos dos fundos de pensões estavam sob controle de 3 companhias dos EUA (Metlife através da chilena Provida, a Prudential, por meio da Habitat, e o Principal Financial Group, através da Cuprum). Esta elite concentra assim boa parte da riqueza gerada por este sistema, e do poder, por meio do financiamento da política e diversos mecanismos de lobby. Entre os diretores das AFP é comum encontrar ex-ministros que atuaram em favor da implementação ou manutenção do sistema privado.

O aumento do número de idosos pedintes nas ruas de Santiago traduz o fracasso deste sistema no que diz respeito à vida de quem depende dele. Os dados variam a depender da fonte, mas todos indicam que não menos do que 80% dos aposentados do Chile vivem com menos de 1 salário mínimo (cerca de U$$430), e boa parte destes, com 60% do piso salarial. Há que se considerar que numa economia com um mercado de trabalho precarizado, muitos não conseguem contribuir o suficiente para receber o benefício. Dentre as inúmeras discussões parlamentares em torno de reformas, discute-se um projeto apresentado no ano passado que prevê a contribuição dos empregadores de uma taxa de 4% do salário. O movimento No+AFP segue fazendo pressão e se soma às manifestações por reformas no país.

No que diz respeito ao serviço de saúde, FONASA e ISAPRE são os fundos que regulam o sistema, que não prevê abrangência gratuita universal. Todo trabalhador tem um desconto em folha (mais um) de 7% sobre o salário. Ele deve optar pelo sistema público (Fonasa) ou privado (Isapre), mantendo-se igualmente o desconto em folha, mas acrescentando o pagamento de consultas e das diferentes coberturas, no caso do sistema privado. As queixas são inúmeras pela precariedade e lentidão do atendimento do sistema público.

A questão da educação também é um ponto nevrálgico do sistema que, em tese, oferece educação universal gratuita, mas que investe maciçamente num mecanismo de alta lucratividade para os empresários do setor. O “incentivo” à busca pelo ensino privado se deu com o fechamento de mais de 800 escolas municipais em 20 anos e por meio dos famosos ‘vouchers’, que são subsídios do Estado para o pagamento de mensalidades na rede privada.

Agora, aqui reside um ponto fundamental da cultura da mobilização coletiva chilena. Mais uma vez, os estudantes aparecem como os protagonistas das manifestações do país. 2006 foi um ano sentido como de um novo despertar por aqueles que sofreram com a repressão ditatorial. Velhos militantes sentiram-se representados e entusiasmados com os jovens que saíram às ruas na chamada revolución pinguina, que questionava a mercantilização e a baixa qualidade do ensino. O mesmo se passou nas intensas manifestações de 2011. Foi por meio destes levantes que o debate sobre a gratuidade da educação passou a figurar na agenda institucional. Dados de 2013 indicam que somente 36% dos jovens estudavam em escolas públicas. A vitória das mobilizações se deu na recente aprovação da gratuidade do ensino superior para grande parcela dos estudantes.

Vale chamar a atenção para alguns aspectos das mobilizações estudantis. Os jovens que as protagonizam são parte de uma geração que cresceu em democracia, que vive em meio aos ruídos do passado de repressão, mas também em meio a memórias de lutas e de conquistas, especialmente, aqueles que vivem em espaços que fazem questão de manter viva a sua identidade e seu histórico político, como nas poblaciones mais emblemáticas, La Victoria, Villa Francia e tantas outras… A geração pré 73, fortemente vinculada a fortes e representativos partidos de esquerda, enxergava no Estado um meio legítimo de expressão e o via como um canal para a transformação do status quo. Os jovens da revolución pinguina e os pula catraca das atuais manifestações não viveram o medo a uma ditadura, mas também não gozam de muitos direitos, não se sentem representados, e sofrem a desesperança e a descrença quase niilista que um sistema excludente impõe.

Quando se está presente entre os jovens chilenos nas suas manifestações, nota-se a permanência de símbolos da esquerda e das lutas populares, como imagens de Salvador Allende, hinos que entoaram as marchas da Unidade Popular, a vinculação de alguns aos partidos históricos, como o Partido Comunista, assim como uma importante congregação de ideais de classe a muitas das bandeiras geralmente compartimentadas pela onda do multiculturalismo. Mas, nota-se ao mesmo tempo um profundo sentido de autonomia que os impulsiona ao enfrentamento e que não dá margem à canalização do movimento pelas instituições. Nem mesmo a Frente Amplio de Izquierda, composta por antigos representantes estudantis que lideraram as mobilizações de 2011, foi capaz de dialogar e acalmar o ímpeto dos estudantes.

Em meio a tantos fatores que compõem esse cenário da indignação chilena, entram em cena o Presidente Sebastián Piñera, com a postura do patrão que não quer ver desordem no seu “oásis” de harmonia social, e seus ministros, todos emergentes políticos do pinochetismo, a alimentar a ideia de que os chilenos fazem manifestação pelo prazer da balbúrdia (para usar uma expressão familiar). Afirmar que está “em guerra contra um inimigo poderoso”, sugerir que o cidadão se “levante mais cedo” para pegar o transporte num horário em que a tarifa é mais baixa, ou que “os românticos comprem flores, porque são mais baratas” são declarações que escancaram a profunda distorção que vivemos sobre o que é (ou o que deveria ser) minimamente uma vida em democracia (mesmo nos moldes institucionais e representativos que temos). Desqualificar publicamente as manifestações em um cenário em que eles já não gozam de popularidade contribuiu para a ampla adesão ao movimento. O Exército nas ruas, o toque de recolher, as denúncias de permanência das práticas de tortura e de violência sexual praticada pelas forças de segurança representam, por fim, o fracasso de um sistema que não prevê representatividade e diálogo e que permanece se sustentando pela truculência de regimes ditatoriais. Fracasso este que está longe de ser uma prerrogativa do Chile, como bem sabemos.

Já para entender o papel da oposição, é preciso compreender que a democracia chilena segue o projeto de transição que se desenhou dentro dos marcos legais estabelecidos pelo regime ditatorial. As diretrizes dos partidos de centro-esquerda e do sistema político são balizadas pelas questões da governabilidade e da negociação entre eles. Assim, além da conveniência econômica que assegura os cargos de muitos dos representantes dessa nova democracia, vê-se como preferível manter intactos temas de ordem estrutural que mantêm as profundas desigualdades do país, a arriscar a democracia em um conflito político-ideológico, como teria ocorrido em 1973, na leitura destes atores.

Nessa mesma concepção estreita sobre a política e a democracia, alguns analistas tendem a fragmentar a totalidade desse processo, vendo a eclosão social como um “desafio de unidade” política, ou como meras expressões “antipolíticas e antiinstitucionais” de grupos juvenis, grupos anárquicos ou “classes mais marginais”. Ou, quase como que uma tradição, ou um acaso, porque o “Chile tem explosões sociais a cada 10 anos”.

O que é certo é que algumas reformas, como as recém-anunciadas por Sebastian Piñera, que reparam “a sensação de dificuldade da classe média” ou que retardem reajustes, não refundam as bases mercadológicas que seguem regendo a vida cotidiana do trabalhador e do estudante. Desse modo, a indignação contra os abusos vai persistir.

Ao longo da história chilena, os setores populares atuaram como sujeitos coletivos que contribuíram significativamente para a democratização daquela sociedade, na medida em que se articularam em suas agrupações de classe, no trabalho e fora dele, em seus bairros e na luta por moradia. Sempre mobilizados contra alta de preços, por direitos trabalhistas, seguridade social, habitação, em ações respondidas invariavelmente com a truculência do Estado e que resultaram em inúmeras mortes, como em seus históricos motins, de 1907, 1957, ou no auge das suas mobilizações durante o governo da Unidade Popular (1970-73), que foi duramente reprimido com o golpe militar, ou a Jornada de Protestos contra a ditadura, nos anos oitenta, com forte protagonismo juvenil. Assim, sempre imbuídos de uma forte cultura política de esquerda, atuaram e atuam pela conquista e ampliação de direitos a partir do questionamento a uma ordem social excludente e autoritária.

A desarticulação e a desmobilização política da sociedade chilena, prioritárias entre os objetivos do regime militar, tiveram longo alcance com a política repressiva de Pinochet e atingiram a organizações sociais, como os sindicatos, e aos partidos políticos, mas mostraram os seus limites no que diz respeito às tradições de luta e ao caráter coletivo da identidade dos chilenos. Os tempos na política são distintos, é o que demonstra a nova democracia chilena, na qual centro e esquerda adotaram uma rápida mudança de direção pela conveniência do retorno ao poder e da sua manutenção, enquanto que o tempo da ideologia das bases, atrelado às suas necessidades materiais, é lento, só adaptando-se a novas linguagens e novas ferramentas disponíveis.

Entendo que dentro do seu histórico regido por lutas violentas contra projetos excludentes e autoritários, os episódios político-sociais da conjuntura atual nos dão a impressão de que a América Latina segue cumprindo quase que um “destino manifesto” imputado a ela. Agora, o que se escancara na região e, especificamente no Chile, é a falácia do modelo neoliberal, vendido sob rótulos atraentes de modernização, abundância e oportunidades. As atuais manifestações no país andino comprovam que a cada tentativa de imposição do medo e de ordenamentos excludentes, haverá uma imposição da revolta. Se o “oásis de paz” de Sebastian Piñera e de toda a elite colonialista latino-americana requer o medo e a passividade popular, a resposta “de baixo” nos mostra que a América seguirá sendo América, e que, para o espanto dos desavisados, o Chile seguirá sendo Chile, mantendo o seu estranho hábito de protestar.

*Márcia Cury é autora de “O Protagonismo Popular: Experiências de classe e movimentos sociais na construção do socialismo chileno (1964-1973)”, Editora da Unicamp, 2017. Historiadora e Doutora em Ciência Política. Pós-Doutoranda em História na UEFS.