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Wagner França
No Brasil de 2025, os grilhões da escravidão seguem firmemente apertados nos pulsos de milhares de trabalhadores — especialmente no Nordeste. A abolição formal da escravidão em 1888 nunca significou o fim da exploração brutal. O que mudou foram os métodos. Onde antes se usavam correntes e açoites, hoje se usam dívidas forjadas, promessas falsas, alojamentos imundos e jornadas exaustivas. A engrenagem do lucro segue girando sobre os corpos da classe trabalhadora.
Somente em julho deste ano, uma operação conjunta de fiscalização resgatou 112 operários da construção civil em João Pessoa e Cabedelo, na Paraíba. Trabalhadores vindos do sertão e de cidades periféricas foram levados para obras sem qualquer direito garantido, vivendo amontoados em alojamentos precários, sem água potável, sem equipamentos de proteção, trabalhando 10 a 12 horas por dia. O crime foi enquadrado como tráfico de pessoas com fins de exploração laboral — mas a verdade é simples: era trabalho escravo.
No mesmo período, em municípios do interior da Bahia, mais de 50 trabalhadores foram resgatados em plantações de carnaúba e sisal. Dormiam no chão de barracões improvisados, cozinhavam em latas de óleo reaproveitadas e eram impedidos de deixar o local sob ameaça de não receberem seus salários — muitas vezes abaixo do mínimo. A fiscalização revelou condições idênticas às denunciadas por abolicionistas no século XIX. A única diferença é que hoje os senhores de engenho se disfarçam de empresários, investidores, grandes construtoras e “empreendedores”.
O Nordeste segue sendo o epicentro dessa barbárie não por acaso. A precarização do trabalho no campo e na construção civil está profundamente enraizada na ausência de políticas públicas, na negação sistemática do acesso à terra, à moradia, à educação. Estados como Bahia, Pernambuco e Paraíba concentram altos índices de informalidade: até 80% dos trabalhadores rurais não têm carteira assinada. Isso os empurra para migrações forçadas e jornadas de sobrevivência que os deixam à mercê de exploradores.
As grandes construtoras do Nordeste, mesmo com obras milionárias financiadas por bancos públicos ou por investidores estrangeiros, seguem operando com terceirizações em cascata, nas quais o rastro de responsabilidades se dilui — e quem paga a conta são sempre os operários. A Moura Dubeux, gigante do setor imobiliário de luxo, foi denunciada por manter trabalhadores dormindo em papelões e casas superlotadas, sem banheiro, sem ventilação, sem proteção. Nada disso impediu que a empresa continuasse expandindo seus empreendimentos e recebendo honrarias em eventos do mercado.
Mais recente ainda, o caso da montadora chinesa BYD na Bahia expôs uma rede de contratação que mantinha trabalhadores estrangeiros sob contratos abusivos, com passaportes retidos e jornadas insanas. O mesmo Estado que promete “modernização”, “empregos” e “desenvolvimento” para o povo nordestino, permite que esses gigantes explorem mão de obra como se fossem donos de engenho.
A responsabilidade não é só do patrão. O Estado brasileiro compactua ativamente com esse modelo. A fiscalização do trabalho — já precarizada nos últimos anos — não tem braços suficientes para cobrir todos os casos. A atuação do Ministério Público do Trabalho e das Defensorias é importante, mas insuficiente diante do volume de denúncias. E as punições aplicadas aos empregadores são pífias, quando não inexistentes.
O trabalho escravo contemporâneo não é um “desvio de conduta” ou uma “exceção”. Ele é um pilar do modo de produção capitalista em sua forma mais perversa. Nas bordas da legalidade, o lucro se multiplica sobre a miséria. A riqueza de poucos é sustentada pela dor de muitos. Por isso, é preciso dizer com todas as letras: enquanto o capital for a força dominante na sociedade, haverá escravidão.
A superação dessa realidade exige mais do que fiscalizações pontuais ou operações mediáticas. É preciso transformar radicalmente as estruturas. A luta contra o trabalho escravo é a luta por uma reforma agrária popular, pela reestatização da produção, pela valorização do trabalho organizado, pela soberania dos povos do campo e da cidade. Exige uma revolução socialista que coloque fim à lógica de acumulação privada e devolva à classe trabalhadora o controle sobre sua própria vida.
Cada operário libertado hoje é prova de que a resistência continua. Mas também é um lembrete de que ainda estamos longe de uma verdadeira emancipação. A abolição do trabalho escravo só virá com o fim do capitalismo. E essa tarefa está nas mãos de quem sempre construiu este país: o povo trabalhador.