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sexta-feira, 19 abril, 2024

O Brasil através dos bonecos

“A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”. 

(Milan Kundera. O livro do riso e do esquecimento. 1979

José Ribamar Bessa Freire

As vísceras do Brasil ficaram expostas no lançamento do livro “Teatro de Bonecos Dadá – Memória e Resistência”, neste sábado, 6 de abril, no Pequeno Auditório do Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, em espaço ambientado por uma exposição de bonecos. Este locutor que vos fala fez a apresentação do livro, saudando Euclides Coelho de Souza e Adair Chevonika (in memoriam), fundadores do Dada em 1962, seu filho André Luiz vindo de São Paulo para o evento com Roseli, sua cônjuge (“pronuncia-se côn-ju-ge, como qualquer pessoa letrada sabe” – esclareci, por via das dúvidas).

A trajetória de mais de meio século do Teatro Dadá revela a história recente do país que aflora aqui, “de bubuia”, como se diz no Amazonas. Os bonecos nos permitem acompanhar, entre outras, as políticas públicas relacionadas à cultura, à arte e à educação, assim como os embates políticos que aqui se sucederam.

O pesquisador interessado na história do Teatro de Bonecos Dadá (TBD), se cavar um pouco mais fundo na documentação, encontrará o Brasil nos seus alicerces. Lá estão o projeto audacioso do Centro Popular de Cultura (CPC) e a UNE Volante, Boal e o Teatro do Oprimido, a alfabetização popular e Paulo Freire, com direito a flashes que relembram a luta e a mobilização popular  desde “O Petróleo é nosso” até as jornadas pelas “Diretas Já”.

E as histórias contadas pelos bonecos nesses cinquenta anos? É possível redescobrir, através delas, o riso de crianças e de adultos encantados com as peças de autores brasileiros, argentinos, mexicanos, peruanos, franceses, russos, tchecos e de outras nacionalidades que, além de divertirem, ajudaram a todos a refletir sobre os mistérios da vida e das relações sociais.

O destino de Eva

O Teatro Dadá fez a alegria de milhares de crianças no Brasil, em vários países da América e na Europa, apresentando espetáculos em ruas, praças, parques, feiras, sindicatos, quermesses, creches, escolas, clubes, casas paroquiais, igrejas, barracões, circos, garagens, tablados, carrocerias de caminhão, presídios, em qualquer lugar onde houvesse criança ou adulto capaz de se encantar com seus bonecos e com as histórias por eles narradas.

No entanto, não é possível esquecer que muitas histórias deixaram de ser contadas, porque foram proibidas pela ditadura militar. Seus criadores sofreram censura, repressão, prisão, inquérito policial-militar e o fechamento da escola maternal “Jardim da Infância Pequeno Príncipe”, acusado de abrigar o Teatro Dadá que “ensinava marxismo-leninismo a crianças de três anos”, disparate tão estúpido e delirante, motivo de deboche em todo o Brasil, incluindo uma crônica de Stanislaw Ponte Preta. A ditadura acabava de criar o embrião da tal “escola sem partido”. O bonequinho com a foice e o martelo foi a resposta irônica e bem humorada dada posteriormente à acusação.

Com a polícia em seus calcanhares, o TBD mudou-se para Brasília. Lá, a residência do casal foi invadida. Policiais destruíram tudo: palco, cortinas, cenografias, refletores, ferramentas, máquina de costura, títeres e destriparam Eva, uma boneca de espuma da peça A Divina Comédia do Teatro Kukol de Moscou, presenteada ao Dadá por Sergey Obraztsov, presidente da UNIMA – União Internacional de Marionetes. Eva percorreu dezenas de cidades da Europa, Ásia e América para vir morrer, assassinada, em Brasília. Sim, a ditadura prendeu e matou bonecos. Embora não conste na lista dos desaparecidos políticos, Eva é um deles.

A história do Teatro de Bonecos Dadá recorta a história recente do Brasil, um Brasil que se foi, mas que fica na crônica, no registro, na memória de quem precisa lembrar desse tempo “de fezes, maus poemas, alucinações”. que agora retorna. Condenados pelo poder arbitrário em nossa pátria, Euclides e Adair tiveram que deixar André, o filho de dois anos, com a avó, em Curitiba, e saíram clandestinamente para o Chile, percorrendo em seguida mais dois países acolhedores: Peru e Bolívia. Meses depois o filho veio, finalmente, se juntar aos pais em Lima.

No exílio

Foi aí, no exílio, que o casal me convidou para fazer parte do grupo. Minha experiência até então se limitara a ser mero espectador do Peteleco, um boneco negro e irreverente, manipulado pelo ventríloquo Oscarino Farias (1937-2018) pelas ruas de Manaus. Confesso que, mesmo despreparado, aceitei, nem tanto pelos bonecos, que não conhecia, mas para ficar ao lado dos dois, com quem convivi e muito aprendi.

O primeiro espetáculo de bonecos que assisti foi num ensaio do Teatro Dadá, em Lima. Com assombro, vi desaparecer, diante de meus olhos, enorme queijo devorado por milhares de ratos, manipulados apenas por duas pessoas. Um deslumbramento! No dia seguinte, eu já estava atrás do palco. Inicialmente segurando o queijo, depois manipulando bonecos.

Um deles que empunhei, meio desajeitado, foi na peça do poeta mexicano Germán List Arzubide. Meu personagem – o patrão –  obrigava duas crianças a trabalharem em jornada infernal, carregando cana. Cada vez que elas reclamavam, o patrão chamava o diabo, que aparece em cena várias vezes, obrigando-as a retomar a labuta. Até que uma das crianças pergunta ao público onde se escondera o diabo. Com ajuda da plateia e porretes na mão, na melhor tradição do mamulengo, sentam o cacete nele. À medida em que é surrado, a máscara cai e revela a figura do patrão. O diabo, na realidade, era invenção do explorador.

Nos espetáculos com adultos foi diferente. Os mineiros da Marcona Mining Company estavam em greve com a área cercada por tanques do Exército. O Sindicato nos convidou a encenar a peça no distrito de Marcona, sul do Peru, para um auditório entupido de grevistas. Era de noite. Na cena em que Kori manipulado por Euclides pede ajuda para localizar o diabo, a resposta foi um silêncio sepulcral. O boneco de luva corre de um lado para o outro, implora em vão a cumplicidade da plateia. A peça parecia destinada ao fracasso quando Kori-Euclides fez o que só um boneco pode fazer, porque dita por um ator seria ofensivo:

– Aqui os homens são todos frouxos – diz Kori – vou pedir ajuda às mulheres.

Havia um pequeno grupo de mulheres no lado direito do palco. Elas, sempre na vanguarda, gritaram entusiasmadas, indicando o esconderijo do diabo. Logo os homens aderem. No debate depois do espetáculo, um deles confessou que demorou a reagir porque tinha vergonha de parecer criança.

Diversão e reflexão

Euclides e Adair sempre defendiam o teatro como um instrumento de transformação social, que deve divertir, mas ao mesmo tempo provocar uma reflexão crítica, como propõe Bertolt Brecht em seu “Petit Organon pour lethéâtre” – manual de cabeceira do Dadá, lido, relido e discutido pelo grupo junto com A necessidade da arte”, de Ernst Fischer. Nesse sentido, a arte teatral é mais poderosa ainda do que um comício em praça pública – dizia Euclides.

Mas para que o teatro possa ser transformador, é preciso dominar e refinar a técnica e aprimorar a qualidade da linguagem, além de um conhecimento profundo da realidade que se quer mudar. Os fundadores do Dadá buscaram essas duas fontes. Fizeram muitos cursos no Brasil e no exterior, todos eles elencados no livro agora lançado. Participaram de festivais nacionais e internacionais em diversos países, entre os quais o de Charleville-Mezières, na França, onde aprimoraram seus conhecimentos na oficina “A Marionete a Criança” ministrada pelos búlgaros Maya Petrova e Athanas Ilkov.

Por que este livro, agora, vem lembrar tantos embates do Dadá? Há quem diga que esquecer é bom para não ficar escravizado ao passado, que o esquecimento é libertador, nos libera da dor e da tristeza e nos salva de culpas e rancores. No entanto, esquecer aqui não é apagar, ocultar, silenciar, varrer tudo para baixo do tapete, mas uma escolha consciente que implica exercício de memória.

Esse é o sentido da narrativa do Teatro de Bonecos Dadá: decantar lembranças para não deixar um vazio nesse pedaço de história. “Narrar é resistir”, diz Guimarães Rosa. Vale a pena ler o livro de autoria da jornalista Dinah Ribas, com a participação ativa de Euclides Souza e a apresentação feita pelo mais entusiasmado segurador de queijos já surgido na história do teatro de bonecos e que está aqui, agora, segurando a memória que anda tão deturpada, com ditadura virando “democracia forte” e o nazismo “movimento de esquerda”.

Se o escritor paranaense Nelson Pradella, amigo do Dadá, me permite, termino com versão ligeiramente modificada de seus belos versos que podem guiar a leitura deste livro:

Lá vai Dadá e seu barco ligeiro / singrando a noite pela calçada /

Lá vai Dadá. / Vai e carrega a juventude e a morte/

os brinquedos antigos perdidos na infância /

vai carregando paisagens insubstituíveis /

lá vai Dadá. / Não deixem Dadá ir embora”.

Essa é a finalidade desse livro: não deixar Dadá morrer. O escritor judeu, Eli Wiesel, nascido na Romênia, poeta e teólogo, sobrevivente do campo de concentração nazista de Auschwitz, prêmio Nobel da Paz em 1986 escreveu uma frase bem conhecida de quem trabalha com memória social:

“O carrasco sempre mata duas vezes, a segunda por meio do silêncio”.

Este livro mostra que não vamos deixar o Dadá morrer, como comprovam as pessoas que renovavam a fila de autógrafos durante mais de quatro horas no auditório do Museu. Viva o Dadá!

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Ficha Catalográfica: PINHEIRO, Dinah Ribas. Teatro de Bonecos Dadá: memória e resistência. Curitiba. Edição do autor. 2019. 208 pgs ISBN 978-85-914605-1-9. Copyright Euclides Coelho de Souza. Conceito Editorial – Régine Ferrandis. Projeto Gráfico – Pierre Design Editorial.

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