entrevistado por Ferhan Bayır, da revista Harici (Istambul)
Pergunta: Comecemos pelos seus livros sobre a China. Com base nas suas investigações e observações durante as suas visitas à China, como interpreta o milagre chinês de que todos falam?
RH: Muitos comentadores da taxa de crescimento muito elevada do produto interno bruto (PIB) chinês, observada há várias décadas, utilizam o termo “milagre” para descrever este fenómeno. Pessoalmente, penso que não se trata de um milagre, mas sim do resultado de uma estratégia de desenvolvimento que foi pacientemente concebida e eficazmente aplicada pelos dirigentes e altos funcionários dos sucessivos governos do país, sob a autoridade do Partido Comunista.
Lê-se e ouve-se por toda a parte, nos meios académicos e nos meios de comunicação social dominantes, que o “arranque” da economia chinesa se deve exclusivamente à sua “abertura” à globalização. Penso que é necessário acrescentar que este crescimento acelerado só foi possível graças aos esforços e às realizações do período maoísta. Esta abertura foi controlada de forma muito firme e contínua pelas autoridades chinesas, e é nesta condição que se pode considerar que contribuiu para os incontestáveis êxitos económicos do país. Foi porque esteve sujeita aos imperativos de satisfação dos objetivos internos e das necessidades internas, e plenamente integrada numa estratégia de desenvolvimento coerente, que está abertura à globalização pôde produzir efeitos tão positivos a longo prazo para a China. Sejamos claros: sem uma tal estratégia de desenvolvimento, que é claramente obra do Partido Comunista Chinês – não o esqueçamos – e sem a energia empregue pelo povo chinês para a implementar durante o processo revolucionário, a integração do país no sistema mundial capitalista teria inevitavelmente conduzido à desestruturação da economia nacional, ou mesmo à sua destruição total, como está a acontecer em tantos outros países do Sul, ou do Leste. Há um ponto fundamental a ter em conta: durante mais de um século, antes da vitória da Revolução de outubro de 1949, a “abertura” significou sobretudo submissão, devastação, exploração, humilhação, decadência e caos para o povo chinês.
Pergunta: Em que é que o êxito da China difere dos modelos de desenvolvimento ocidentais?
RH: O sucesso da estratégia de desenvolvimento implementada pelo governo chinês e os inúmeros benefícios que trouxe ao povo daquele país contrastam fortemente com o fracasso das medidas de política económica neoliberal aplicadas nos países ocidentais, que tiveram consequências catastróficas para os trabalhadores do Norte, quer em termos econômicos, quer em termos sociais, quer ainda em termos morais e culturais.
Permitam-me que vos dê um exemplo concreto. Uma explicação para a força das empresas estatais chinesas reside no facto de não serem geridas da mesma forma que as empresas transnacionais ocidentais. Estas últimas, cotadas em bolsa e orientadas para a lógica do valor para o acionista, que exige a maximização dos dividendos pagos aos seus proprietários privados, a valorização das ações e o rápido retorno do investimento, operam através da compressão de uma cadeia de subcontratantes, locais ou deslocalizados. Os grupos estatais chineses não se comportam assim. Se se comportassem de forma tão voraz, estariam a agir em detrimento das pequenas e médias empresas locais e, de um modo mais geral, de todo o tecido industrial nacional. Mas não é claramente o caso. A maior parte das grandes empresas estatais chinesas são (ou voltaram a ser) rentáveis porque a sua bússola não é o enriquecimento dos acionistas privados, mas a prioridade dada ao investimento produtivo e ao serviço aos seus clientes. No fim de contas, não importa que os seus lucros sejam inferiores aos dos seus concorrentes ocidentais, desde que sejam utilizados, pelo menos em parte, para estimular o resto da economia nacional e para ultrapassar uma visão de rentabilidade imediata quando esta é ditada por interesses estratégicos superiores, a longo prazo ou nacionais.
Pergunta: Este modelo pode ser definido em termos do modelo neoclássico ou neo-marxista?
RH: Antes de mais, não creio que os chineses vejam a sua estratégia de desenvolvimento como um “modelo”. Nem pretendem impô-la ou exportá-la. Acreditam simplesmente que os diferentes povos do mundo podem tirar algumas lições, mas que lhes cabe a eles definir os objetivos e os meios do seu próprio desenvolvimento nas suas condições históricas, sociais e culturais específicas. Isto também difere claramente da visão ocidental, que gostaria que o seu “modelo” fosse seguido por todos os países do mundo.
Os modelos neoclássicos não têm lugar na China. Se me permitem, gostaria de acrescentar que a economia neoclássica, que constitui hoje a corrente hegemónica ou mainstream da economia, não serve basicamente para mais nada senão para tentar justificar teoricamente e de forma pretensamente científica as práticas políticas neoliberais, cuja ideologia é exatamente o oposto das medidas de justiça social e de desenvolvimento dos serviços públicos. Na realidade, a economia neoclássica não é uma ciência, mas sim uma ficção científica ou, como disse num livro recente (Confronting Mainstream Economics for Overcoming Capitalism), uma ideologia com pretensões científicas.
Estou convencido, por outro lado, de que o marxismo ainda não foi ultrapassado do ponto de vista científico. Atualmente, não tem qualquer concorrente sério. Continua a ser relevante, sobretudo porque continuamos a viver num mundo em que o sistema capitalista continua a ser dominante à escala global, mesmo que tenha mudado substancialmente, e isso tem de ser cuidadosamente tido em conta. Apesar dos muitos ataques ao marxismo desde a sua fundação e dos repetidos anúncios da sua morte, ele é duradouro, resistente, “indestrutível”, diria eu, e o ponto de referência teórico indispensável para quem pensa nas formas e condições para o advento de um mundo melhor. Apesar do desaparecimento da URSS e do bloco soviético, em que o marxismo acabou muitas vezes por ser dogmatizado e, por vezes, virado contra si próprio, continua a ser indispensável hoje em dia, um ponto de referência insubstituível para aqueles que lutam pelo socialismo. Por isso, não é surpreendente que continue a ser uma referência teórica importante para a China.
P: A China baseou a prática do seu modelo económico em fundamentos teóricos?
RH: Eu diria que a estratégia de desenvolvimento da China, cujo objetivo continua a ser a continuação e o aprofundamento da transição socialista, se baseia numa combinação teórica de elementos retirados tanto das grandes correntes filosóficas do pensamento tradicional chinês (confucionismo e taoísmo em particular, mas não exclusivamente) como de um marxismo modernizado e misto, reinterpretado à maneira chinesa. Mas é importante compreender que esta teoria está intimamente associada à análise da experiência prática. Tudo isto permitiu encontrar soluções pertinentes para os desafios da atualidade e, sobretudo, respostas para as muitas contradições que deles decorrem.
A conceção chinesa do “socialismo da nova era” é paciente, duradoura, com soluções concretas, pragmáticas e eficazes, não maniqueísta; tem uma visão de longo prazo e não tem medo de enfrentar oposições ou contradições (as da iniciativa individual ou do espírito empresarial, por exemplo), vistas mais como complementaridades e potencialidades do que como exclusões e substituições.
Um dos ensinamentos que podemos retirar do marxismo “à lá chinoise” é a ideia de procurar a harmonia entre os opostos, no seio dos seres humanos, entre os seres humanos e entre estes e a natureza. O discurso político chinês sublinha a “harmonia social” e a “estabilidade” como valores essenciais, e a procura da “conciliação” e do “consenso” como meios para os alcançar. Trata-se de conceitos diferentes da “luta de classes” do marxismo ocidental, que este último considera muitas vezes suspeitos, uma vez que são geralmente característicos de regimes conservadores. Isto significa, por exemplo, que existem equilíbrios dinâmicos no interior do indivíduo entre interesses pessoais e necessidades sociais, entre interesses individuais e coletivos, entre necessidades e exigências morais. Em termos simples, poderíamos dizer que, desde Mao, os chineses acreditam numa forma de progresso baseada num desenvolvimento em espiral que tende a esbater as contradições. Neste contexto, o socialismo deixa de ser um projeto que visa a perfeição – uma visão estranha ao pensamento chinês, que rejeita os absolutos – e torna-se um processo de construção em movimento.
P: Como avalia as semelhanças e diferenças entre o modelo económico da China e os da União Soviética e dos países de Leste ou dos Balcãs após a Segunda Guerra Mundial?
RH: Durante alguns anos, imediatamente após a vitória da Revolução de outubro de 1949, a República Popular da China seguiu um modelo económico de “estilo soviético”. No entanto, abandonou este modelo após a rutura com a URSS no início da década de 1960. A China, que aderiu ao Conselho de Assistência Económica Mútua (CMEA ou COMECON) em 1950, abandonou-o em 1961 e decidiu forjar a sua própria estratégia de desenvolvimento, por si própria e para si própria. E foi claramente muito mais eficaz do que as da União Soviética ou dos países da Europa Central e Oriental.
Entre 1978 e 1982, a China conheceu uma série de problemas económicos, que refletem as dificuldades da transição pós-Mao e da aplicação das reformas estruturais conhecidas como “abertura”. O período 1985-1986 assistiu, em particular, à implementação da reforma fiscal de 1984, que representou um dos pontos de viragem para uma economia de mercado. Depois, com o colapso da URSS e do bloco soviético, tentou-se uma experiência muito breve, rapidamente interrompida e abandonada, que se poderia qualificar de “neoliberal”, mas que teve como resultado uma queda brusca e brutal da economia em 1990-1991, acompanhada de uma explosão da corrupção – contra a qual o governo central chinês luta desde então com grande energia e, há que dizê-lo, com algum sucesso. Felizmente, a China rejeitou esta opção neoliberal, que está a destruir tantas economias em todo o mundo. E preferiu manter o rumo do socialismo, que assegura hoje um certo bem-estar à grande maioria da sua população.
P: Até que ponto os marxistas ocidentais que alegam que a China está a adotar métodos capitalistas estão a avaliar corretamente o crescimento financeiro/riqueza da China?
RH: Nos debates entre autores marxistas ocidentais, uma clara maioria afirma que a economia chinesa é atualmente capitalista. David Harvey, por exemplo, considera que, desde as reformas de 1978, tem havido um “neoliberalismo com características chinesas”, em que um tipo de economia de mercado tem incorporado cada vez mais componentes neoliberais que operam num quadro de controlo centralizado que ele considera muito autoritário. Não estou de acordo com ele. Panitch e Gindin, por seu lado, analisam as implicações da integração da China nos circuitos da economia mundial e vêem nela menos a oportunidade de reorientar o capitalismo global do que a duplicação pela China do papel de “complemento”, outrora desempenhado pelo Japão, fornecendo aos Estados Unidos os fluxos de capitais necessários à manutenção da sua hegemonia mundial; daí uma tendência para a liberalização dos mercados financeiros na China, conduzindo ao desmantelamento dos instrumentos de controlo dos movimentos de capitais e minando a base de poder do Partido Comunista Chinês. Penso que estes autores estão errados.
Outros marxistas, certamente em menor número, mas não menos importantes, tanto chineses como estrangeiros, continuam a defender a ideia de que o sistema político-econômico atualmente em vigor na China, embora comparável ou próximo do “capitalismo de Estado”, deixaria em aberto um leque mais vasto de trajetórias possíveis para o futuro. Pela minha parte, diria mesmo que o sistema chinês contém ainda elementos-chave do socialismo. A partir daí, creio que a interpretação da natureza deste sistema se torna compatível com a de um “socialismo de mercado”, assente em pilares que ainda o distinguem claramente do capitalismo. Pela minha parte, diria que, embora existam evidentemente capitalistas na China (e há muitos multimilionários), não é possível qualificar o sistema chinês como capitalista. Há certamente elementos de “capitalismo de Estado”, mas, pela minha parte, prefiro falar de “socialismo de mercado”, ou melhor, de “socialismo com mercado”. Penso que devemos levar a sério os chineses quando falam de “socialismo com cores chinesas”. Não se trata apenas de propaganda, é uma realidade, a realidade deles.
Em termos monetários e financeiros, por exemplo, é de notar que os poderes públicos chineses conseguiram não só enfrentar o poder dos mercados financeiros, mas também construir uma “grande muralha monetária”, defendendo a moeda nacional, o yuan. Conseguiram colocar o dinheiro ao serviço do desenvolvimento. Uma planificação estratégica muito poderosa, cujas técnicas foram flexibilizadas, modernizadas e adaptadas às exigências atuais – o que lhe confere eficácia – é um traço distintivo da abordagem socialista. O controlo estatal da moeda e de todos os grandes bancos é uma condição sine qua non, tal como o controlo apertado das atividades das instituições financeiras e do comportamento das empresas estrangeiras que operam no território nacional. Mais uma vez, na China, é o Estado que controla o capitalismo e não o contrário. Pelo menos até agora.
P: Qual é o significado de Deng Xiaoping para a China atual? Existe uma ligação ou uma rutura nas decisões políticas e económicas de Xi Jinping com Deng Xiaoping?
RH: A ascensão definitiva de Deng Xiaoping ao topo do poder começou em agosto de 1977, com o XI Congresso do Partido Comunista Chinês e a subsequente promoção de reformas econômicas de grande alcance a partir do final de 1978. A ideia de Deng não era abandonar o socialismo, mas encontrar formas de tirar a grande massa de chineses da pobreza e garantir que o país se tornasse uma sociedade de “rendimento médio”, à medida que as velhas estruturas socialistas se transformavam, os mecanismos de mercado se generalizavam, elementos do capitalismo eram introduzidos e as desigualdades começavam a aumentar, mas o sistema não se tornava novamente capitalista. Desde Xi Jinping, a estratégia de desenvolvimento foi reafirmada como socialista e a orientação da política geral do país é mais favorável às camadas mais desfavorecidas da população e às regiões menos desenvolvidas do país.
Uma das dificuldades de compreensão deste “socialismo à chinesa” reside no facto de os seus dirigentes se recusarem a interpretar este socialismo como uma escassez generalizada ou uma “partilha da miséria”. O que os dirigentes do Partido Comunista Chinês procuraram, e conseguiram, foi tirar a grande massa do povo chinês da miséria, no tempo de Mao, e depois, na era de Deng Xiaoping, conduzi-lo a uma sociedade de “prosperidade média”. Como prolongamento lógico desta revolução, pretendem agora efetuar uma transição socialista durante a qual a grande maioria da população poderá usufruir de prosperidade – e, em particular, de uma vasta gama de bens de consumo – e de abundância. Não será isto a prova de que o socialismo pode e deve ultrapassar o capitalismo?
P: Avalie também com precisão o crescimento económico da China.
RH: Não é verdade dizer que a elevada taxa de crescimento do PIB da China se deve ao capitalismo, que, segundo o que se ouve frequentemente, existe desde 1978. É exatamente o contrário. É porque o Estado chinês, sob a autoridade do Partido Comunista, conseguiu impedir que o capitalismo assumisse o controlo do país que o crescimento foi tão forte e que os seus efeitos positivos foram, em grande medida, redistribuídos pela população. Acrescentaria que, mesmo que se queira absolutamente acreditar que o sistema chinês é capitalista (o que não me parece), seria errado afirmar que o forte crescimento da China só é observável a partir de 1978, porque o crescimento económico do país já era muito forte no tempo de Mao, muito mais forte do que noutros países com economias administradas na altura, e mesmo do que em muitos países ocidentais industrializados. Os dirigentes do Ocidente querem esconder esta realidade, porque lhes é insuportável reconhecer que um país socialista pode ser bem sucedido, e até melhor do que o capitalismo.
Eu diria que o objetivo do Partido Comunista Chinês não é apropriar-se de tudo economicamente, mas sim manter o controlo político sobre tudo – o que não é realmente a mesma coisa. Os dirigentes chineses têm-no dito repetidamente: a coexistência de atividades públicas e privadas, estimuladas mutuamente no quadro de um sistema misto e híbrido, é o meio escolhido para desenvolver ao máximo as forças produtivas do país – inclusive atraindo capitais estrangeiros e importando tecnologias avançadas – e, por conseguinte, o seu nível de desenvolvimento, com o objetivo declarado de melhorar as condições de vida da população e – não abandonando o socialismo, mas aprofundando o processo de transição socialista iniciado em 1949. Paradoxalmente, a China continua a ser um país em desenvolvimento, como demonstra o seu ainda modesto PIB per capita. Este processo será longo, difícil e repleto de contradições e riscos. A sua trajetória permanece, em grande medida, indeterminada. Mas, e penso que devo insistir neste ponto, a persistência neste sistema de muitos traços que ainda se distinguem claramente do capitalismo, e que, em minha opinião, fazem parte da implementação de um projeto socialista, e de elementos que permitem uma reativação deste último, significa que devemos levar a sério os discursos dos dirigentes políticos chineses.
P: A recente reunião da China com o Presidente Biden assinalou uma mudança do seu domínio económico para uma presença política mais pronunciada na arena internacional, particularmente em África, na América Latina e no Médio Oriente, e com a sua posição em relação à Rússia? A China está a tentar tornar-se o ponto central do mundo multipolar?
RH: A China não tem a ambição de se tornar a hegemonia mundial, substituindo os Estados Unidos. Não é essa a sua vontade nem a sua mentalidade. Por outro lado, é evidente que a China está a esforçar-se por contribuir para a construção de um mundo multipolar, por oposição ao mundo unipolar sobre o qual, até agora, os Estados Unidos têm reinado sem contestação (e reconhecidamente de forma extremamente agressiva). Os líderes políticos chineses aspiram à paz universal e ao equilíbrio nas relações internacionais. Mas é evidente que defenderão a soberania do seu país, sem se submeterem a qualquer forma de domínio estrangeiro.
No que diz respeito à “guerra comercial” entre os Estados Unidos e a China, num artigo académico escrito com co-autores chineses (intitulado “Turning One’s Loss Into a Win? The US Trade War With China in Perspective”), que o tempo de trabalho incorporado no comércio entre os dois países desde 1978, em relação ao mesmo volume transacionado, foi maior no caso da China do que no caso dos Estados Unidos, revelando uma troca desigual em termos de valor entre ambos, a favor dos Estados Unidos e contra a China. Por outras palavras, o facto de a China ter registado excedentes comerciais bilaterais crescentes ao longo das últimas décadas deve ser qualificado pela constatação – que calculámos – de que foram sobretudo os Estados Unidos que beneficiaram, em termos de tempo de trabalho incorporado nas exportações.
Num contexto tão paradoxal, o início da guerra comercial com a China em 2018 pode ser interpretado como uma tentativa da administração americana, então liderada pelo Presidente Trump, de travar a lenta e constante deterioração da vantagem americana observada há décadas no comércio com a China, o seu principal rival emergente.
P: Como está a China a organizar as relações económicas internacionais para um mundo com múltiplas potências em oposição ao domínio dos EUA? Considerando a Organização de Cooperação de Xangai e os BRICS como exemplos, poderá ser criado um método de pagamento global para contrabalançar o domínio do dólar americano num futuro próximo?
RH: A China compreendeu que os dois pilares fundamentais do domínio dos EUA no sistema capitalista mundial são o militar e o monetário. É por isso que tem desempenhado um papel ativo na construção de redes de alianças estratégicas, como a Organização de Cooperação de Xangai, e de alianças económicas, como o grupo BRICS. Compreendeu também que estes dois pilares são dependentes um do outro e, por conseguinte, vulneráveis. Por isso, lançou também uma série de iniciativas ousadas e inovadoras.
Noutro dos meus livros (Money, publicado pela Palgrave Mcmillan), descrevo algumas delas. A China, por exemplo, pretende desafiar a ordem vigente no mercado do petróleo, onde é o maior importador do mundo. Em 2018, decidiu promover contratos de futuros de petróleo denominados em yuan e acessíveis a investidores estrangeiros na Bolsa Internacional de Energia de Xangai, a fim de competir com as referências até agora incontestadas do Brent de Londres e do West Texas Intermediate de Nova Iorque (o padrão para definir os preços do petróleo bruto e os contratos de futuros na Wall Street). Neste contexto, a China e a Rússia – países que formam uma aliança economicamente dinâmica (e militarmente dissuasora), suscetível de representar um contrapeso credível aos Estados Unidos – decidiram lançar uma nova moeda, denominada “petro-yuan-ouro”, e abrir perspectivas para a sua afirmação como alternativa de referência mundial e para a substituição do dólar como moeda dominante. O petro-yuan-ouro é um projeto de moeda mundial baseado no petróleo, uma matéria-prima fundamental, e ancorado no ouro – uma proeza que já não está ao alcance de Washington. A vantagem da China não reside apenas na sua elevada taxa de crescimento do PIB, mas também no facto de ser o principal produtor e comprador mundial de ouro, com a Rússia em terceiro lugar, à frente dos Estados Unidos. Em 2018, Pequim tomou a iniciativa de promover um vasto intercâmbio petróleo-yuan-ouro na bolsa mundial da energia. Depois foi a vez do metal-yuan-ouro. A China ofereceu-se para trocar yuanes recebidos em ouro por entregas de petróleo e compras de metais. Estes acontecimentos terão um impacto considerável no sistema mundial.
P: Poderá a China, depois de ter persuadido o Irão e a Arábia Saudita a encetar conversações diplomáticas, conseguir um êxito semelhante na resolução dos conflitos entre a Rússia e o Ocidente, bem como do atual conflito israelo-palestiniano?
RH: Nos últimos anos, a China tem vindo a desempenhar um papel cada vez mais importante e positivo na resolução dos atuais conflitos internacionais. Vimos isso recentemente durante a guerra na Ucrânia entre a NATO – liderada pelos Estados Unidos – e a Rússia, e depois na guerra entre Israel – apoiada pelos Estados Unidos e pela União Europeia – e a Palestina. Ainda há poucos dias, a China fez ouvir a sua voz numa tentativa de travar o início de um conflito entre o Irão e o Paquistão. A China é, sem dúvida, a voz de muitos países do Sul, que não procuram o caminho da guerra, mas sim o caminho do desenvolvimento. Esta é outra razão pela qual é tão importante analisar cuidadosamente o que a China quer e o que está a dizer.
A estratégia internacional da China baseia-se na afirmação de cinco princípios, que são: 1) respeito pela soberania e integridade territorial; 2) não-agressão mútua; 3) não-interferência nos assuntos internos; 4) igualdade e benefício mútuo; e 5) coexistência pacífica. Seria preciso estar de má fé para não reconhecer que as suas declarações a favor da paz e da resolução pacífica dos conflitos são respeitadas. E lembrem-se que, na sua história moderna, a China nunca praticou uma política colonial expansionista. Atualmente, não quer ressuscitar um clima de “guerra fria”, o que seria contrário à sua concepção de paz entre as nações. Rejeita qualquer forma de aliança militar e nunca participou numa coligação militar, nem mesmo contra o Daesh. Nunca instalou uma base militar no estrangeiro, com exceção de uma em Djibuti, que descreve como uma “simples instalação logística” num local particularmente sensível para o tráfego marítimo. É o contrário das potências ocidentais, e sobretudo dos Estados Unidos, que multiplicaram os golpes de Estado e as intervenções militares. A cooperação é a palavra de ordem da política chinesa, com um princípio “win-win” e um apoio prioritário ao desenvolvimento.
P: A China poderia assumir uma posição mais pró-ativa na promoção da paz regional e mundial no contexto da economia de guerra dos EUA? Como deve ser avaliado o projeto “Uma Faixa, Uma Rota” nesta situação?
RH: O complexo militar-industrial desempenha um papel essencial na economia dos Estados Unidos, mas atingiu também uma dimensão extremamente preocupante, ameaçando aquilo a que o Ocidente gosta de chamar “democracia” – que respeita cada vez menos a nível interno e quase nunca fora das suas fronteiras. Os Estados Unidos, que são responsáveis por mais de metade das despesas militares globais e têm mais de 1150 bases militares em todo o mundo (fiz estes cálculos num artigo intitulado “Notas sobre as bases e o pessoal militar dos EUA no estrangeiro”), estão em crise económica e empurram cada vez mais o mundo inteiro para a guerra total. Começam a querer, cada vez mais explicitamente, deslocar o eixo dos novos confrontos para o Extremo Oriente, e mais concretamente para Taiwan. A China tem de resistir a esta provocação dos Estados Unidos e a esta marcha para a guerra, mas é evidente que também quer defender o seu território e os seus interesses, incluindo Taiwan. Um desses interesses é Taiwan. A reunificação continua, portanto, a ser uma prioridade para Pequim. A administração americana está a intensificar a corrida aos armamentos, que em tempos foi utilizada para pôr a URSS de joelhos. Mas está perigosa escalada já não é suscetível de impressionar uma China em boa saúde económica e com armas de dissuasão suficientes.
Em termos mais gerais, o importante é compreender que o capitalismo, preso numa crise sistémica, já não consegue encontrar soluções na lógica da maximização dos lucros imediatos e está a tornar-se mais perigoso. Com a falência de empresas e o desemprego em massa, a queda das bolsas e a desestabilização dos bancos, a probabilidade de um agravamento da crise sistémica do capital é agora extremamente elevada. Estão reunidas todas as condições para que as contradições do sistema se tornem ainda mais acentuadas, tanto mais que poucas reformas foram efetuadas desde a crise de 2008. Continua a ser urgente parar a “regulação” do sistema mundial pela guerra sob a hegemonia dos Estados Unidos. A defesa da paz é a prioridade. Por conseguinte, é preciso desligar a máquina infernal da guerra conduzida pelos oligopólios financeiros, impondo um controlo público e democrático.
Isto leva-nos de volta ao vasto projeto da Rota da Seda, que já foi parcialmente implementado: na verdade, rotas terrestres – “O Cinturão” – e rotas marítimas – “A Estrada”. A cooperação diz respeito, em primeiro lugar, aos países da Ásia, porque são os seus vizinhos, mais próximos ou mais distantes, como no Médio Oriente, que carecem dos investimentos necessários para se desenvolverem, e também porque a China vê vantagem em promover o desenvolvimento das suas próprias províncias ocidentais, que estão atrasadas em relação às da costa oriental. A África também está preocupada, porque são os países africanos os mais afetados pelo “subdesenvolvimento” (como diz o Ocidente). Esta cooperação não é perfeita, porque se centra no fornecimento de matérias-primas, mas as contrapartidas existem e são importantes para os países africanos, com a China a fornecer infraestruturas em troca: hospitais, estradas, etc.
As Rotas da Seda estendem-se até à Europa, e é isso que o torna tão irritante, vindo de um concorrente estratégico. Se as economias europeias têm, em princípio, os meios para se desenvolverem, porque é que algumas delas estão a receber tantos investimentos chineses? A razão é clara: em estagnação ou mesmo em declínio, vítimas das políticas neoliberais de austeridade, de cortes nas despesas, de redução da dívida e de privatizações impostas pela União Europeia, os governos dos países europeus aceitam vender os seus Ativos a quem der mais e veem no investimento chinês um meio de desenvolvimento. A China também investiu fora da União Europeia, nomeadamente nos Balcãs, que também estão a ser deixados para trás. Por isso, não é de admirar que 17 países da Europa Oriental e do Sul, incluindo 11 membros da União Europeia, tenham aderido à iniciativa da Rota da Seda.
A Rota da Seda não se limita ao continente euro-asiático e a África. A cooperação com os países da América Latina e das Caraíbas, sobretudo os mais pobres, está já bastante avançada. O apoio ao desenvolvimento é feito principalmente sob a forma de empréstimos a juros baixos do seu Fundo da Rota da Seda (um fundo soberano) e dos seus bancos estatais. Mas a China não quer ser o único financiador e gostaria de encorajar todos os países que dispõem de meios, e que não impõem condições políticas e económicas (ao contrário do Banco Mundial ou do Fundo Monetário Internacional), a participar nestes empréstimos destinados às infraestruturas que são a base de um desenvolvimento rápido. É também está a razão da criação do Banco Asiático de Infraestruturas e Investimento, que conta hoje com cerca de uma centena de membros (entre os quais a França, a Alemanha e o Reino Unido, mas não, evidentemente, os Estados Unidos, que não podem controlá-lo, como fazem com o FMI e o Banco Mundial, enquanto a China, apesar de ser o maior acionista do BAII, exclui expressamente qualquer direito de veto).
Em suma, em apenas alguns anos, a Rota da Seda deu um salto em frente: 124 países assinaram acordos, 24 organizações internacionais, representando dois terços da população mundial. É importante sublinhar que a Rota da Seda não tem qualquer objetivo político. “Aberta a todos os países”, o seu único objetivo é o co-desenvolvimento. Mas há também parcerias centradas na cooperação económica e na construção de zonas de comércio multilaterais, como é o caso da Parceria Económica Regional Global, que constituirá a maior zona do género no mundo, correspondendo a três mil milhões de habitantes e a 30% do PIB mundial, e que desafiará a hegemonia dos Estados Unidos, tanto mais que as trocas comerciais e os investimentos deixarão de ser feitos em dólares e passarão a ser feitos nas moedas nacionais.
Em última análise, o próprio capitalismo está a tornar-se insustentável. Destinado, pela sua própria natureza, a acumular-se infinitamente, é incompatível com um planeta finito. Pela sua própria lógica, gera desigualdades cada vez maiores e destrói todas as formas de coesão social. A China apostou em utilizar as dinâmicas do capitalismo para sair do seu desenvolvimento, controlando-as. No entanto, são essas dinâmicas que devem agora ser limitadas. O socialismo de mercado “à la chinoise” terá de se distanciar progressivamente do capitalismo, se quiser encarnar uma verdadeira via alternativa para a humanidade. Esta é, de facto, a sua ambição: segundo os dirigentes chineses, e hoje mais claramente, o empréstimo ao capitalismo foi apenas uma forma de “atravessar o rio”, e nunca será mais do que um longo “desvio” na transição socialista a caminho do comunismo.
Algumas publicações recentes de Rémy Herrera relacionadas com a China:
Livros:
(2023), Dynamics of China’s Economy, (em coautoria com Long Z.), Brill & Haymarket, Leiden & Chicago.
(2023) (ed.), La Chine est-elle impérialiste ?, (com Wen T., Lau K.C., Sit T….), Éditions Critiques, Paris.
(2022), Money – From the Power of Finance to the Sovereignty of the Peoples, Palgrave Macmillan, Nova Iorque.
(2022), Confronting Mainstream Economics for Overcoming Capitalism, Palgrave Macmillan, Nova Iorque.
(2021), ¿Es China capitalista?, (livro em espanhol), (com Long Z.), El Viejo Topo, Barcelona.
(2021) (ed.), Imperialism and Transitions to Socialism, (com Wen T., Lau K.C., Sit T….), Emerald, Londres.
(2021), Dynamique de l’économie chinoise de 1949 à nos jours, (com Long Z.), Éditions Critiques, Paris.
(2020), La Cina è capitalista?, (livro em italiano), (com Long Z.), Marx Ventuno Edizioni, Bari.
(2019), A China é capitalista?, (livro em português), (com Long Z.), Página a página, Lisboa.
(2019), La Chine est-elle capitaliste?, (com Long Z.), Éditions Critiques, Paris.
(2019), 200 Years of Marx – Capitalism in Decline, (com Dierckxsens W. et alii.), Our Global U, Hong Kong.
(2023), “La Chine (vue de France), une inconnue?”, (com Andréani T.), Revue de Philosophie économique.
(2023), “The US Trade War With China”, (com Long Z., Feng Z. & Li B.), Research in Political Economy.
(2022), “Accumulation et cycles de l’économie chinoise”, (com Long Z.), Revue française de Socio-économie.
(2022), “一人所得即为另一人所失吗?对中美贸易摩擦的透视”, (com Long Z., Feng Z. & Li B.), 政治经济学报.
(2021), “中美贸易摩擦:真正的 “盗贼 “终于摘下面具??”,” (com Long Z., Feng Z. & Li B.), 政治经济学季刊.
(2021), “’21世纪资本论’ 在中国:皮凯蒂的资本定律在中国成立吗?”, (com Long Z.), 政治经济学报.
(2021), “A China está a transformar o mundo?”, (com Andréani T. & Long Z.), Monthly Review.
(2020), “Séries de stocks de capital humain pour la Chine de 1949 à 2014”, (com Long Z.), Revue économique.
(2020), “Explaining GDP Growth in China”, (com Long Z. & Ding W.), Journal of Innovation Economics.
(2020), “U.S.-China Trade War”, (com Long Z., Feng Z. & Li B.), Monthly Review.
(2020), “Agrarian Labor and the Peasantry in the Global South”, (com Lau K.C.), Palgrave’s Encyclopedia of Imperialism and Antiimperialism, 2.ª edição, Palgrave Macmillan, Nova Iorque.
(2019), “Econometric estimates of models on China”, (com Long Z.) Developing Worlds.
(2019), “Acumulação de capital chinesa”, (com Long Z.) Revista da Sociedade de Economia Politica.
(2019), “Enigma del crecimiento chino”, (com Long Z.) Revista Política Internacional (ISRI – Cuba).
(2019), “Acumulação de capital chinesa”, (com Long Z.), Revista da Sociedade de Economia Politica.
(2019), “Piketty in Beijing”, (com Long Z.), Revue d’Économie politique.
(2019), “Explicación del crecimiento en China”, (com Long Z.), Spanish Journal of Economics and Finance.
(2019), “Capital in the 21st Century in China”, (com Long Z.), China Economic Review.
(2018), “The Laws of Capital in the Twenty-First Century in China”, (com Long Z.), China Economic Review.
(2018), “China’s Long-Run GDP Growth”, (com Long Z.), Structural Change and Economic Development.
(2018), “On the Nature of the Chinese Economic System”, (com Andréani T. & Long Z.), Monthly Review…
(2013), “Notes on US Bases and Military Staff Abroad,” (em coautoria com Joëlle Cicchini ), Journal of Innovation Economics & Management, 2013/3, n° 42, p. 147-173, Brussels.
Ver também:
“A China desenvolve um projeto estratégico não financeiro e não bélico”, do mesmo autor.
[*] Economista, francês, investigador do Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS). Diplomado pela Escola Superior de Comércio (1988), pelo Instituto de Estudos Políticos (1990) e pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne (Mestrado em Filosofia, 1994; Doutoramento em Economia, 1996), orienta estudantes de doutoramento no Centre d’Économie de la Sorbonne. Começou a trabalhar em auditoria financeira (1988), na OCDE (1992-1997) e no Banco Mundial (1999-2000). Foi membro do Comité Nacional do CNRS (2000-2005) e do Conselho Científico de Paris 1 (2001-2006). Ensinou em várias universidades em França (por exemplo, Paris 1 [1993-2013]) e no estrangeiro, incluindo Alepo (1998), Cairo (1999-2000), Vitória no Brasil (2006), Madrid (2009-2013), Lingnan em Hong Kong (2018). Foi consultor de programas de investigação na Universidade de Chubu (Nagoya). É ou foi associado com: International Initiative for Promoting Political Economics (Londres), Union of Radical Political Economics (Nova Iorque), Sociedad de Economía Política Latinoamericana (São Paulo), Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Buenos Aires), Asociación Nacional de Economistas de Cuba (Havana), e Third World Forum (Dakar), Foi diretor executivo do World Forum of Alternatives, com Samir Amin como presidente. É membro da Universidade Global (Hong Kong) e do Observatório Internacional da Crise (Costa Rica). Organiza o seminário da Sorbonne “Marx no século XXI”. Colabora regularmente com o Centre Europe-Tiers Monde (Genebra), apoiando-o no seu papel consultivo junto do Conselho dos Direitos do Homem das Nações Unidas.
O original encontra-se na revista Harici (Istambul) e no diário Cumhuriyet (Istambul)
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