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quinta-feira, 28 março, 2024

O apartheid não escrito na sociedade brasileira

“Execução da punição de açoitamento”, pintura do francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) mostra escravo sendo castigado no Brasil no século 19

DW

Além de remeter à escravidão, episódio de tortura de jovem negro é representativo de padrão racista que se repete em supermercados e shoppings e da chegada incompleta do Brasil ao mundo moderno, afirmam especialistas.

O ano é 2019, e os brasileiros ainda veem alguns dos seus serem chicoteados e torturados. Muitos se perguntam por que ao assistir ao vídeo que mostra um jovem de 17 anos, negro, nu, com um pano amarrado à boca para abafar seus gritos, sofrendo açoites de um segurança de supermercado em São Paulo enquanto outro grava a cena.

A tortura, como o ato foi registrado no boletim de ocorrência do 80º Distrito Policial da capital paulista, é crime no Brasil desde 1997, mas segue sendo praticada por agentes públicos em delegacias e presídios, segundo relatório da ONU. E também por seguranças de estabelecimentos privados, como supermercados e shopping centers, ao lado de lesão corporal e injúrias raciais, aponta uma pesquisa em andamento da Comissão Arns.

O jovem foi açoitado em junho, no supermercado Ricoy da Vila Joaniza, na zona sul de São Paulo, e o crime se tornou público na semana passada. Nos últimos dias, surgiram relatos de outros casos de tortura que teriam ocorridos em unidade da mesma rede – em um deles, fotos mostram um homem amarrado e com marcas de chicotadas.

A empresa, por meio de nota, disse ter ficado chocada com a “tortura gratuita e sem sentido” e que iria contribuir com as investigações e dar apoio à vítima. Os dois seguranças suspeitos de participar do crime estão em prisão temporária decretada pela Justiça.

O episódio do supermercado Ricoy não é fato isolado e manifesta aspectos estruturais da sociedade brasileira, como o racismo, a desigualdade de direitos e o uso da violência por agentes privados, segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil.

Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos no governo FHC e membro da Comissão Arns, afirma à DW Brasil que a tortura, expediente de controle e repressão dos escravos, só foi amplamente percebida como um problema no país a partir da ditadura militar (1964-1985), quando começou a vitimar presos políticos brancos, em sua maioria das classes médias.

Mesmo assim, diz, os negros e pobres seguiram pertencendo à “classe dos torturáveis”. “Esses fatos continuam a ocorrer, inclusive em supermercados e shopping centers, porque os suspeitos não são os clientes brancos, mas os negros e pobres”, afirma.

“Se os brancos de classe média e elites fossem torturados, não haveria mais tortura no Brasil, porque a classe com poder, composta por brancos, não admitiria”, acrescenta.

O registro da escravidão no inconsciente coletivo da sociedade também é apontado por Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), que lembra que os corpos dos escravos eram tratados como coisas e podiam ser manipulados e agredidos pelos seus proprietários.

“O Brasil mudou muito, mas há traços da herança escravista nesse episódio. A ideia de que alguns corpos podem ser utilizados como objetos dos outros ainda tem peso na sociedade”, diz.

Ele vê no episódio um exemplo do acesso desigual dos brasileiros ao direito à vida e à integridade física e psíquica, em choque com fundamentos básicos das sociedades modernas.

“Em todos os países onde a democracia se consolidou também há desigualdades, mas há um sentido de vida comum a ser preservado, nunca a ponto de a vida de uns ter menos valor do que a de outros. Na nossa sociedade, vidas têm valores diferentes, não conseguimos ainda encontrar o que há de comum entre nós”, diz.

A violência em espaços privados

O caso ocorrido no supermercado Ricoy é o mais recente de um longo histórico de crimes cometidos por funcionários de empresas de segurança privada, muitas de propriedade de ex-policiais, que estão sendo catalogados pela Comissão Arns. Segundo Pinheiro, o episódio é representativo de um padrão que se repete em supermercados e shoppings pelo país.

“Nesses locais há um apartheid não escrito. Basta uma criança ou adolescente negro entrar que um segurança imediatamente vai atrás”, diz.

Quando um caso de violência ganha a mídia, a resposta dos estabelecimentos costuma seguir um padrão, diz Pinheiro, que inclui divulgar uma nota afirmando que a empresa não coaduna com a violência e que tomará providências.

“É uma conversa para boi dormir. No processo judicial, a empresa mãe nunca é responsabilizada, porque ela culpa a terceirizada, e são raros os casos em que os seguranças são condenados”, diz.

Ele acredita ser pouco provável que os estabelecimentos desconheçam as práticas de seus seguranças. “O chicote [no caso do Ricoy] já estava pronto, e a empresa sabia que tinha uma sala aonde os seguranças levavam as pessoas. Eles não iriam fazer isso se não contassem com uma tolerância”, afirma.

Para Adorno, o fato de seguranças particulares, em um estabelecimento privado, agirem como se fossem juízes em condições de decidir e executar uma sentença mostra como a fronteira entre o espaço público e o privado no Brasil é ultrapassada com facilidade, em meio a uma cultura política tolerante com essa flexibilidade.

“A capacidade de punir é uma atribuição pública, mas os agressores se apropriam disso, de uma forma não moderna, com uma punição que marca o corpo e a identidade do adolescente”, diz.

Ele afirma que o Estado é responsável pelas violações causadas pela tortura, tanto quando ocorrem em prédios públicos, cometidas por seus agentes, quanto em estabelecimentos particulares, onde por omissão tolera que agentes privados pratiquem o ato.

“A ideia de que você precisa de vigilância privada para garantir a integridade de um negócio é aceitável, mas tem limites. Com as câmeras de segurança, há meios para chamar a polícia e efetuar o flagrante, tudo dentro da lei. Esse episódio mostra a nossa chegada incompleta ao mundo moderno”, diz.

Segundo levantamento feito pela Globo News, 24 pessoas foram presas em São Paulo pelo crime de tortura de janeiro a julho de 2019. No mesmo período de 2018, foram 22, e de 2017, dez. Um número “ínfimo”, segundo Pinheiro.

“Se São Paulo, que é um estado rico, com um Judiciário bem instalado, tem esses números baixos, imagine no resto do país. A imunidade da tortura ali campeia”, considera.

A percepção dos brasileiros sobre a tortura

Apesar da permanência da tortura na realidade brasileira, o percentual dos cidadãos que apoia a prática no contexto da atividade policial é baixo e comparável ao de países europeus, segundo pesquisas disponíveis.

Um levantamento do Instituto Datafolha, realizado em outubro de 2018, apontou que 16% da população apoiava o uso da tortura pela polícia para obter informações de suspeitos. Conduzida a dez dias do segundo turno das eleições presidenciais, a pesquisa identificou que, entre os eleitores de Jair Bolsonaro (PSL), o percentual era de 20%, e entre os de Fernando Haddad (PT), de 14%.

O percentual é semelhante ao apurado em outro levantamento, feito pela Anistia Internacional  entre dezembro de 2013 e abril de 2014, em 21 países de diversos continentes: 19% dos brasileiros responderam que a tortura é aceitável para obter informações que possam proteger a população. Trata-se do quinto menor percentual entre os países avaliados – no mesmo patamar que o da Alemanha, próximo ao da Espanha (17%) e abaixo do registrado no Peru (40%), nos Estados Unidos (45%) e na Índia (74%).

A pesquisa da Anistia Internacional também mostrou que, entre os países pesquisados, o brasileiro é o menos confiante de que não será torturado caso seja detido ou preso: 80% discordaram da afirmação de que, se estivessem sob custódia do Estado, no seriam torturados, seguido pelo México (64%) e Turquia (58%). Indagados se devem existir normas internacionais claras contra a tortura, 83% dos brasileiros disseram que sim, ficando na média de todos os países pesquisados.

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