Meu querido amigo, o Xeramoi Alcindo Werá Tupã, morreu nesta madrugada do dia 14 de setembro de 2024, aos 114 anos de idade. “Ele foi um grande líder na defesa dos direitos indígenas” – diz a nota do CIMI SUL. Reproduzo aqui a crônica de 2011, quando ambos, com seu filho Geraldo, visitamos a pajé Zeneida Lima em Soure (PA) na ilha do Marajó para participarmos de um evento por ela organizado.
O PAJÉ QUE FALA COM AS ÁRVORES
Sonhei a noite toda que eu era filho de Nhanderu Tenondé, o criador do mundo, mas ele não me registrava, não me reconhecia. Acordei suado, suado, num quarto de hotel em Goiânia, decidido a pedir exame do DNA de Deus para verificar se ELE é mesmo meu pai. A paternidade divina está fora das minhas preocupações, mas tenho pensado nela sempre quando encontro meu amigo, o xamã guarani Wherá Tupã, da aldeia Yynn Moroti Wherá, município de Biguaçu, Santa Catarina.
Foi isso que aconteceu nessa Semana dos Povos Indígenas, realizada de 11 a 15 de abril de 2011 na PUC de Goiás. Desde 2003 venho encontrando Wherá Tupã com regularidade no curso de formação de professores guarani, que acontece duas vezes por ano, quando damos aula juntos, ele e eu, na mesma sala e no mesmo horário. Ele falava em guarani, eu em português e assim compartilhávamos as aulas. Agora, na última quarta-feira, ambos participamos da mesa redonda Diálogos interculturais: Universidade e Sustentabilidade Indígena.
Da mesa fizeram parte também o xerente Bonfim, o karajá Raul e o tapuio Dorvalino. Moderada pela doutora Marlene Ossami de Moura, do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, a mesa avaliou a possibilidade de diálogo entre o conhecimento científico, que circula na universidade, e o conhecimento tradicional indígena, que se renova e atualiza transmitido oralmente.
A voz das plantas
Quem é esse pajé guarani que faz até o ateu mais bastardo se sentir filho de Nhanderu? Nascido em 1909, Wherá Tupá, conhecido como Alcindo Moreira, comemorou seu aniversário de cento e dois anos no dia 25 de janeiro de 2011. Casado com dona Rosa Poty-Dja, com ela teve oito filhos – cinco mulheres e três homens – e uma prole de 43 netos, 28 bisnetos e, por enquanto, três tataranetos. Com um século de existência, esbanjando saúde e vitalidade, ele viajou de Florianópolis a Goiânia, acompanhado do filho Geraldo, só para participar da Semana.
Todo mundo se pergunta de onde é que esse homem baixinho, pernas e braços musculosos, cabelos grisalhos, olhos sempre brilhando, tira tanta força e energia? – Eu cheguei aos 100 anos, porque tive outra criação, fui educado como um guarani – ele conta. Aprendeu a cuidar do corpo e do espírito com igual atenção. Ainda hoje, acorda com os galos, faz suas orações, conversa e dá conselho aos mais jovens, vai à roça plantar milho, feijão, aipim, batata doce e hortaliças, base de sua alimentação, onde não entra nem sal, nem açúcar.
Ele tem a certeza de que o segredo de sua longevidade reside também no fato de viver sempre cercado de toda a prole, cultivando o afeto familiar. “Ninguém é feliz sozinho” – diz. Dessa forma, vai tecendo os fios da felicidade cotidiana, no convívio com as pessoas queridas, no trabalho diário no qual realiza uma série de exercícios físicos, e na preparação de uma comida saudável.
Alcindo Moreira, tcheramoi Werá Tupã, é o líder religioso que preside os rituais na Casa de Reza – a Opy, batiza as crianças, orienta e aconselha os jovens e cuida da saúde de todos, com ajuda de Nhanderu, de quem recebe inspiração e com quem vive em contato permanente:
– Doença? Não sei o que é isto. Médico fica longe de mim. Me trato com as plantas que cultivo na aldeia, seguindo a sabedoria dos meus antepassados.
Ele é um sábio, um karai. Conhece tudo sobre as plantas. Aprendeu com seu pai, João Sabino Kauã, de quem recebeu algumas sementes. O plantio e a colheita das plantas são frutos da observação sistemática, mas constituem também expressões máximas da religiosidade, do trabalho coletivo e da partilha.
Em 2007, Wherá Tupã, seu filho Geraldo e eu fomos juntos à ilha do Marajó. Tive o privilégio de entrar na floresta, em Soure, com ele e com a pajé Zeneida Lima, quando assisti a uma aula de botânica dada pelos dois. Naquela ocasião, cada planta foi nomeada, identificada, cheirada, tocada com carinho, reverenciada, catalogada, classificada, analisada, com suas propriedades medicinais e alimentícias reconhecidas e enaltecidas.
– As árvores falam – disse ele – a gente é que desaprendeu e não sabe mais escutar o que elas dizem.
Caminho florido
As árvores falam e os guaranis escutam, porque para eles toda a natureza faz parte da sociedade, não está separada da cultura. As plantas, os animais, os acidentes geográficos, os rios, as montanhas, os fenômenos meteorológicos são dotados de humanidade e de consciência.
– Essa terra que pisamos é o nosso irmão, ela tem vida, é uma pessoa, tem alma.
Esse é o arandu porã, o bom conhecimento que os Guarani trazem para dentro da academia e que começa a fazer parte das bibliotecas universitárias, pois aparece registrado e analisado nas monografias, dissertações, teses e livros elaborados por mestres e doutores. Alguns deles foram ouvir o xamã Wherá Tupã lá na sua aldeia.
É o caso do trabalho sobre “Música e xamanismo guarani” feito na USP pela doutora Deise Lucy Montardo, hoje professora da Universidade Federal do Amazonas; do livro “O caminhar sob a luz, território Mbya à beira do oceano” da doutora Maria Inês Ladeira; das pesquisas de Ana Lucia Notzold e Flávia Melo e das dissertações defendidas na UFSC por Aguirre Neira, Ismênia Vieira, Helena Alpini e tantos outros.
Esses trabalhos criaram uma ponte entre os Guarani e a Universidade, confirmando aquilo que escreveu o antropólogo Darell Posey:
“Se o conhecimento indígena for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com sucesso por milhares de anos…”
A botânica é um campo que os Guarani dominam bem. No que diz respeito ao uso de plantas medicinais, muitas pessoas, mesmo de diferentes aldeias, até mesmo não-indígenas, se deslocam às vezes de longe em busca dos tratamentos do xamã Alcindo Moreira, tanto para doenças físicas como espirituais. O tratamento que ele dá é muito respeitado e sua sabedoria é requisitada em vários lugares, conforme testemunhou Diogo Oliveira, numa monografia feita para o Laboratório de Etno-botânica do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina:
Na aldeia de Biguaçu existe uma vereda – a trilha da escola, chamada Tape Poty, que significa caminho florido – onde foram colocadas placas com os nomes de algumas plantas utilizadas na medicina doméstica e identificadas por Wherá Tupã.
– Vocês pisam nos remédios e não sabem – ele costuma dizer.
A universidade e os índios
Esses saberes tradicionais foram, durante muito tempo, pisoteados e discriminados, por serem produzidos por culturas taxadas de “primitivas” e de “obstáculo ao progresso”. O índio Jorge Terena critica essa visão:
“Eles veem a tradição viva como primitiva, porque não segue o paradigma ocidental. Assim, os costumes e as tradições, mesmo sendo adequados para a sobrevivência, deixam de ser considerados como estratégia de futuro, porque são ou estão no passado. Tudo aquilo que não é do âmbito do Ocidente é considerado do passado, desenvolvendo uma noção equivocada em relação aos povos tradicionais, sobre o seu espaço na história”.
Hoje, diversas instituições, como a PUC de Goiás, percebem a necessidade da troca de conhecimentos e sobretudo o fato de que a permanência indígena na Universidade deve ser vista não apenas como uma política de inclusão social, mas principalmente como possibilidade de construção de uma outra universidade, capaz de repensar sua metodologia de produção e circulação de saberes e de conviver com taxonomias cujos critérios lógicos são outros.
Não se trata, portanto, de indagar o que a Universidade pode fazer pelos índios, mas de se perguntar o que os índios podem fazer pela Universidade, que acaba ganhando com a presença de representantes de outras culturas, de outras línguas, que trazem novos saberes e formas diferentes de produzi-los.
Dessa forma, existem propostas de criação de novos cursos, como o de agroecologia em terras indígenas, bem como de mudança curricular, com a introdução de novas disciplinas em cursos já em funcionamento. As bibliotecas universitárias também se enriquecem ao incorporarem saberes e conhecimentos, que normalmente não eram registrados por escrito.
A ciência aspira a universalidade, mas só é possível obter um conhecimento universal se houver diálogo entre saberes particulares. Esse diálogo começa a ser estimulado com a presença de índígenas nas salas de aula, nos laboratórios e nos corredores das universidades, como ocorreu nessa semana na PUC, quando alunos de escolas públicas participaram de várias oficinas que contaram com a presença de representantes de várias etnias.
Alcindo Whera Tupã conversou com as crianças e os jovens. Quem sabe essa nova geração aprende a falar com as árvores, cuidando delas, não deixando que sejam assassin
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