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terça-feira, 15 outubro, 2024

No Congresso argentino se expõe a luta dos estudantes pelo futuro e o governo libertário pelo retrocesso

Foto- AFP

 Alba Gonzáles – direto de Buenos Aires

O povo argentino não está parado frente aos ataques sem trégua nestes 10 meses de governo libertário (LLA) de Milei, aliado ao PRO e boa parte da UCR, recuperando a hegemonia do neoliberalismo financeiro da era Macri com Caputo, às custas da demolição do Estado. No passado 2 de outubro, um milhão se mobilizou em todo o país contra a decisão presidencial de vetar a lei de financiamento das Universidades Públicas, já aprovada anteriormente pelo Congresso Nacional. Desafiando gigantescas manifestações de estudantes, professores, reitores, médicos, sindicatos, movimentos sociais em todo o país, desde Buenos Aires (capital), a La Plata, Córdoba, Tucumán, Rosário e várias cidades do país, Milei, usando poderes delegados pela Lei de Bases, vetou nesse mesmo dia a dita lei de financiamento das universidades públicas.

Diante disso, correspondia hoje, 9 de outubro, à Câmara de Deputados, em sessão especial rechaçar ou aprovar dito veto presidencial. A votação se deu na Argentina efervescendo com mobilizações de estudantes ocupando cerca de 40 faculdades em todo o país. À tarde, horas antes do pleito, uma manobra de segurança desproporcional de polícia federal, de fronteira, portuária, etc… circundou o Congresso. No recinto, após tantos conchavos, pressões ou compra de votos dos governistas, a oposição não conseguiu os 2/3 de votos para derrubar o veto presidencial contra a lei. 

A dita lei já havia sido aprovada no Senado em 12 de setembro, garantindo um orçamento para atualizar o salário dos professores e funcionários, a cada dois meses segundo a inflação, e um fundo para garantir o funcionamento das universidades; além de recompor o salário de novembro a julho deste ano em 45%.

Com 160 votos contra e 84 a favor do veto, o governo se impôs contra a Universidade pública, tendo, recentemente vetado também a lei de mobilidade das aposentadorias em 11 de setembro, rebaixando as chances de sobrevivência dos anciãos diante da alta do custo de vida, alimentos, transportes, aluguéis, remédios e tarifas de energia impagáveis. Isso tem gerado, permanentes protestos semanais dos aposentados frente ao Congresso, sob violenta repressão. Tantos reveses contra conquistas econômico-sociais dos trabalhadores, conta com interesses conjugados e castas oportunistas de poder que um partido minoritário como LLA concentrou: o macrismo (PRO), o radicalismo traidor dentro da UCR, MID, e alguns trânsfugas do peronismo (UP), incluindo 3 governadores. Deputados formados ou professores da universidade pública votaram contra a mesma na defesa declarada ou sub-reptícia do mercado financeiro e garantias aos credores e inversores internacionais. A aprovação destes dois vetos presidenciais consolida o ajuste do orçamento de 2025 que está prestes a ser apresentado no Congresso.

Esses, acima, fazem parte do governo libertário do retrocesso. Alguns analisam que esses vetos presidenciais são uma “vitória” parlamentar de Pirro, com um alto custo político ao governo, num contexto de relações de forças em desenvolvimento desfavorável à estabilidade de Milei. Seguimos a narrativa sobre o outro lado da moeda: o renascimento dos estudantes pelo futuro. Com o veto presidencial, hoje, há 62 universidades nacionais que se declaram em luto, mas em pé de guerra. 

A manifestação de 2 de outubro, comparativamente à de 23 abril na defesa da universidade pública, foi numericamente menos ampla na capital, mas representativa de uma acumulação de forças de descontento (já nos primeiros meses de governo libertário da LLA) da população idosa e aposentada que, corajosamente, vem enfrentado a repressão policial, em rechaço ao corte mortal de verbas à aposentadoria. Este 2 de outubro representou a defesa da Educação pública, pondo a capacidade de organização da juventude e do movimento estudantil e profissional médico e universitário, à disposição do resto das causas populares: aposentadoria, fome nos bairros e restaurantes populares, ao nível dos anos 2001. Grandes cortejos do pessoal médico do Hospital das Clínicas, e das faculdades de Agronomia e Veterinária.

Além de representações de grandes lápis derrubando serrote, cartazes com dizeres e palavras de ordem deram o tom político: “Os lápis vencem contra a motosserra”, “Pelo orçamento universitário, pelos aposentados, pelo sistema público de saúde, contra a fome, o desemprego e o aumento das tarifas”; “Ser educados não significa ficar endividados. Universidade Pública”; “Orgulhosa de haver caído na educação pública”; “Sou nutricionista e da geração de estudantes na família. Graças à Universidade Pública”; “Porque tanto medo a educar o povo?” 

Previamente à sessão extraordinária na Câmara de Deputados que aprovou o “veto de Milei”, a capital de Buenos Aires conviveu com várias agitações. Uma delas, a mobilização do pessoal médico, enfermeiros, funcionários e familiares de pacientes do Hospital público Laura Bonaparte que se ocupa de saúde mental. Um hospital exemplar, na cidade de Buenos Aires, ameaçado de fechamento na mesma linha de esvaziamento do Estado. Após dois dias de massiva mobilização solidária diante do Hospital, e negociações com o sindicato (ATE), o governo teve que recuar na sua decisão de fechamento, apesar de insistir numa incógnita “reestruturação”.  O nome do hospital, Laura Bonaparte se deu em homenagem à lutadora, psicóloga e mãe de 7 membros de família, entre esposo, filho, filhas e genros e nora desaparecidos na ditadura militar.

Outro fator de mobilização prévia à votação desta quarta-feira no Congresso, foi o aumento das ocupações estudantis nas faculdades da UBA. A assembleia dos grêmios de estudantes de Filosofia e Letras e Psicologia da UBA decidiram ocupar a faculdade em rechaço ao veto de Milei à Lei de Financiamento Universitário. Ao mesmo tempo, os professores universitários da FEDUN (Federação de Docentes Universitários) rechaçaram o irrisório aumento de 6,8% do salário, proposto pelo Ministério do Capital Humano (que abarca o Ministério do Trabalho) muito aquém da inflação. Diante deste ministério formou-se uma caminhada da fome, de 10 quarteirões manifestantes contra o desabastecimento dos restaurantes populares. Hospitais públicos de pediatria como Garrahan, com salários de miséria do pessoal médico se encontra em plena mobilização: “Saúde em luta”. O pessoal hospitalar foi à praça de Maio e representou aos transeuntes ações de RCP, respiração boca-boca a bonecos da saúde pública.

No mesmo momento em que a contestação social aumenta, Milei decretou o fim do fundo “Progressar” criado desde 2014 para financiamento de bolsas de estudo para estudantes de baixa renda, a secundários, universitários e adultos sem instrução. Segundo publicado no canal de TV C5N, o governo elimina o piso de 6% do PIB para Educação, o piso de 0,2% do PIB para Educação Técnica; suspende a obrigação de destinar 0,45% do PBI para Ciência, reduzindo em 2025 para 0,22%. O governo anuncia fechar a ENOHSA (Ente Nacional de Obras Hídricas e Saneamento) responsável pela distribuição de água potável e esgoto. Além disso, a privatização de 4 centrais hidroelétricas, somando-se ao DNU da privatização da estatal Aerolíneas Argentinas que já deu entrada na Câmara de Deputados. Tudo isso, em nome da redução de gastos do Estado e do “déficit zero” imposto pelo FMI e as finanças internacionais. Enfim, tudo indica o ódio declarado de Milei à “justiça social”; e que a dita “casta” são os mais necessitados e um povo tradicionalmente culto.

A Universidade pública de Buenos Aires é considerada uma das melhores em todo o mundo e uma das 10 primeiras colocadas na região latino-americana; razão pela qual tem sido uma escolha para vários estudantes estrangeiros, incluindo brasileiros e chilenos. O veto de Milei à lei de financiamento da Universidade Pública, acentua a discriminação contra a imigração, o racismo e o ódio de setores conservadores da classe média aos pobres e excluídos. A ameaça de cobrar taxas dos estrangeiros é a antesala da privatização contra os estudantes argentinos. Porém, tudo indica que a consciência, cultura e solidariedade do povo argentino não se elimina com decretos.

Sobretudo quando os números do provado centro de estatísticas, Indec, são contundentes. Em poucos meses de governo: 52,9% da população é pobre, ou seja, 25 milhões de argentinos. Desde dezembro, a pobreza aumentou em 10%. 18% da população são indigentes. De cada 10 crianças, 7 são pobres. 1/3 de crianças não tem para comer. A cada dia há 29 mil novos pobres. A paralisação das obras públicas, a crise industrial e o êxodo de algumas multinacionais, já redundou em cerca de novos 200 mil desempregos desde dezembro. O investimento nas universidades públicas caiu 30% este ano. Nas diversas intervenções dos estudantes defendem a Universidade Pública como instrumento para assegurar o futuro, o trabalho, rumo à igualdade social que a geração de pais e avós não puderam desfrutar. Universidade Pública e gratuita como direito e não um privilégio.

Tudo indica um novo momento histórico. Parte da juventude que, por rebeldia, constituiu uma base eleitoral libertária de Milei, caiu na real do que significa saúde, educação e transporte sem Estado. O novo movimento estudantil universitário, aberto e organizador de debates em assembleias, busca apoio transversal, e está decidido a unir-se aos aposentados e a convocar o apoio dos sindicatos e trabalhadores.

Um outro elemento novo para abrir um horizonte de esperança é que, apesar do clima de desconcerto, debates internos e crise a nível de direção política do peronismo, as mobilizações de rua, dos aposentados e agora, dos estudantes de 2 de outubro, dão um clamor e ultimatum. Neste contesto, aparece Cristina Kirchner que tem sido convocada para ser presidenta do Partido Justicialista (PJ) com o apoio da maioria das forças políticas do peronismo. Líder inquestionável, dupla histórica com Nestor Kirchner, 2 vezes presidenta do país tirou a Argentina do atraso e da dependência ao FMI. A perseguição do lawfare, levada ao extremo do atentado à sua vida, debilitaram as possibilidades e experiências não realizadas em vários campos na última gestão do governo peronista.

Cristina Kirchner enviou, dias antes da eleição no Congresso, uma carta à militância e aos argentinos, aberta a contribuir ao debate, ao ordenamento interior e à unidade necessária, sem exclusões no Partido Justicialista.  Hoje, Cristina acaba de se pronunciar criticamente aos “trânsfugas do peronismo” que votaram a favor do veto de Milei. Sobre uma revisão necessária no peronismo diz que “há que direcionar o que se torceu e ordenar o que se desordenou para construir o melhor peronismo possível”. Entre os vários pontos da sua carta, diz: “é preciso por em movimento o segundo rastreamento, incorporando as novas gerações nas escolas secundárias, universidades, sindicatos, movimentos sociais e, a partir daí recompor a presença nos bairros populares junto às igrejas, às sociedades de fomento, clubes de bairro e todas aquelas instituições organizadas desde a comunidade”. Leia a carta completa.

Dias antes à aprovação do veto de Milei, o governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof (UP), fez um efusivo discurso dirigido a apoiar a juventude, os estudantes e os professores para que pesassem na decisão dos deputados no Congresso: “A universidade pública forma parte da nossa identidade, é sinônimo de igualdade, progresso e futuro. Defendê-la no Congresso, nas aulas e nas ruas é uma obrigação e um compromisso moral e político com a nossa Pátria”.

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