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quarta-feira, 9 outubro, 2024

No Amapá, para cada pedido de ajuda, dúzias de balas de borracha

por Manoel Alves/Le Monde Diplomatique

Protestos da população diante da situação de emergência instaurada pelo apagão são respondidos com violência do Estado. Publicação da ARTIGO 19 alerta para a perpetuação de violações ao direito de protesto

Vítima de uma crise instaurada pelo apagão energético que deixou treze dos dezesseis municípios do Amapá sem eletricidade, a população do estado reivindica que providências sejam tomadas pelo poder público. Foram quatro dias na escuridão absoluta – de 3 a 7 de novembro –, até que a energia fosse parcialmente restabelecida, em um sistema de rodízio. Treze dias depois, a situação ainda não foi estabilizada e o cronograma de rodízio não é obedecido. Os bolsões de riqueza, com seus condomínios de luxo, tiverem a energia assegurada e restabelecida em tempo integral, em detrimento do restante do estado. Em meio a uma pandemia, a maior parte dos municípios amapaenses está sofrendo também com os efeitos decorrentes do corte de energia elétrica, como a falta de água potável, precariedade do sinal telefônico e de internet, falta de gasolina e perda de alimentos – situação que também prejudica escolas, postos de saúde e comerciantes.

Mesmo diante desse cenário calamitoso, o governo federal se esquivou do compromisso de agir para sanar o problema ou oferecer a ajuda necessária à população durante os primeiros dias de apagão. Já o governo estadual respondeu às manifestações populares em diversas cidades do mesmo modo que outros governantes brasileiros se habituaram a lidar com crises: com farda, coturno, bombas e um punhado de balas de borracha. Até o último sábado (15), foram registrados pela Polícia Militar amapaense mais de oitenta manifestações populares. São velhos e jovens, homens e mulheres que estão vivendo em privação de recursos essenciais à vida, e que, diante do abandono do poder público, recorrem às ruas para serem vistos e ouvidos.

A forte repressão policial, inclusive com destacamento do batalhão de choque, tensionou os protestos, especialmente em Macapá e Santana. Os relatos e vídeos feitos mostram que a PM/AP tem agido não só para dispersar manifestantes, mas também para coibir novos protestos e criminalizar aqueles que tenham algum envolvimento com as manifestações. Não bastasse o clima de indiferença ao sofrimento da população, a polícia tem realizado rondas que instauraram uma verdadeira perseguição aos manifestantes. Ou seja, o poder público não só nega direitos, mas busca reprimir sua reivindicação pela população e punir os reivindicantes.

As numerosas denúncias, frequentemente acompanhadas de registros filmados por cidadãos e cidadãs que sofreram ou presenciaram ações policiais violentas, levaram à instauração de dois processos administrativos que investigam o abuso do uso da força nos protestos no Amapá, especialmente do uso de armamentos com munição de elastômero, a famosa bala de borracha. Amplamente criticado em todo o mundo, o uso desse armamento tem feito diversas vítimas com as mais diversas lesões. Em Macapá, durante uma manifestação no dia 6, o garoto Lucas Matheus Cavalcante Abreu, de 13 anos, foi atingido por um tiro de bala de borracha. A avaliação médica informa que a lesão irá custar a Lucas a visão de seu olho direito. Segundo a família, que tem comércio na rua onde o tiro foi disparado, o garoto sequer participava da manifestação. Quando foi ferido, a família relata ter pedido socorro à polícia, que ignorou os apelos.

No mesmo dia, pelo menos outras quatro pessoas foram atingidas nos membros superiores do corpo, violando os parâmetros internacionais que regulam o uso da força e o emprego de armamentos “menos letais”. Entre elas está o professor Fausto Suzuki, de 40 anos, atingido por duas balas de borracha no braço. Casos como o de Lucas e de Fausto são rotineiros no Brasil. Só em São Paulo, de 2018 para 2020, houve um aumento de 475% no uso da munição de elastômero pela Guarda Municipal em operações de segurança contra a população na região da Luz. Foi também na capital paulista que os comunicadores Sérgio Silva e Alex Silveira perderam a visão após serem atingidos por balas de borracha enquanto faziam a cobertura jornalística de protestos, em casos que se tornaram emblemáticos e que mostram como essa violência é uma prática intencional e consolidada. Ainda que os agentes públicos venham a ser responsabilizados – o que nem sempre ocorre –, o sistema de justiça não nos mantém a salvo das violações futuras, nos oferecendo, no máximo, uma punição a quem disparou. Para as vítimas, a lesão é permanente. E a violação se perpetua – de São Paulo ao Amapá, do Brasil ao Chile – onde 285 pessoas sofreram trauma severo nos olhos por causa de tiros de bala de borracha e gás lacrimogêneo, segundo dados compilados no Relatório Global de Expressão.

Crise de energia no Amapá, apagão em Macapá tem protestos no bairro de Santa Rita. Créditos: Rudja Santos/Amazônia Real
Uso de armas “menos letais”

Embora comumente tidos como os armamentos mais recomendados para “controle de multidões” (crowd-control weapons), seu uso pode mutilar e matar, e por esse motivo, mesmo a terminologia “armamentos não letais” não parece adequada. Há muito tempo busca-se produzir recomendações para redução dos danos resultantes do uso desses armamentos, a exemplo dos princípios básicos sobre o uso da força e armas de fogo pelos funcionários responsáveis pela aplicação da lei, das Nações Unidas.

Segundo a recomendação da ONU, o uso da força deverá sempre obedecer aos princípios da “necessidade, legalidade, proporcionalidade, conveniência e moderação”. O potencial letal das balas de borracha não deve ser subestimado: um estudo de revisão sistemática da literatura médica realizado pelas organizações International Network of Civil Liberties Organizations (INCLO) e Physicians for Human Rights (PHR) aponta que os projéteis podem causar lesões severas, invalidez e morte. Quando os disparos são efetuados de longe, os tiros são imprecisos e podem atingir as partes mais vulneráveis do corpo ou ferir transeuntes, como ocorreu com Lucas, no Amapá. Os pesquisadores concluem que alguns modelos de armas “menos letais” têm, em realidade, o mesmo potencial de penetração na pele que a munição convencional, podendo ser igualmente letais. Não seria possível garantir, portanto, um uso simultaneamente seguro e eficaz desse tipo de armamento.

O uso de balas de borracha, de bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, além de atentarem contra a vida dos manifestantes, fomentam um mercado lucrativo de armamentos que aposta no agravamento das condições sociais. Quem afirma isso é um dos dirigentes da Condor, a maior empresa de tecnologia dita “não letal” do Brasil, especializada na venda de balas de borracha e granadas lacrimogêneas, de pimenta e de efeito moral, ao afirmar que via nos protestos contra o governo de Jair Bolsonaro uma grande oportunidade comercial. Nesse contexto e diante da eclosão dos protestos no Amapá, a ARTIGO 19 publica nesta quarta-feira (18/11) um caderno de referência sobre o exercício do direito de protesto no Brasil, trazendo informações sobre os cuidados necessários a serem tomados antes, durante e após a manifestação. A publicação aborda aspectos jurídicos e de segurança física e comunicacional, além de estratégias para, quando possível, registrar violações ao direito de protesto como corajosamente têm feito os amapaenses. A publicação foi preparada antes do apagão e dos protestos no estado, mas trazia um alerta que se aplica ao contexto atual como uma tragédia anunciada: assim como as táticas como caldeirão de Hamburgo (keting) e o envelopamento, o uso de armamentos menos letais coloca a vida dos manifestantes em risco e atenta contra as liberdades de expressão, manifestação e associação – especialmente quando elas são mobilizadas para reivindicar outros direitos fundamentais.

É necessário e urgente que pensemos e coloquemos em prática melhores formas de lidar com os tensionamentos gerados por protestos populares; não podemos naturalizar a possibilidade de, no exercício de nosso direito à liberdade de expressão e manifestação, perdermos a visão de um olho, ou mesmo a vida. Devemos nos mobilizar para que o uso das munições de elastômero seja abolido, evitando que outros jovens como Lucas sejam vitimados – acidental ou propositalmente – em virtude do exercício legítimo ao direito de protesto.

Manoel Alves é assessor jurídico do Centro de Referência Legal da ARTIGO 19 e mestre em Ciências Criminais.

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