Pedro Augusto Pinho*
No câmbio incerto da vida
A libra sempre é o coração.
Vai, coração que não vibra
Com seu juro exorbitante
Transformar mais outra libra
Em dívida flutuante.
(Positivismo, Noel Rosa e Orestes Barbosa, 1933)
As realidades vividas nem sempre são compreendidas. Denomino pedagogia colonial esta formação cognitiva, que se inicia no berço e acompanha toda a vida das pessoas. Não ocorre apenas nas colônias políticas e econômicas, pois a pedagogia colonial é um sistema de dominação que também é importante na sede dos impérios. Ao dialogar com um inglês ou um estadunidense, o caro leitor encontrará uma vítima da pedagogia colonial. Pegue um livro de História dos Estados Unidos para estudantes estadunidenses e verá a mesma quantidade de doutrinações que encontra na História do Brasil para brasileiros.
Eric Hobsbawm escreveu, com outros autores, livro instigante: “A Invenção das tradições” (1983), onde se lê, na Introdução: “nada parece mais antigo e ligado a um passado imemorial do que a pompa que cerca a realeza britânica em quaisquer cerimônias públicas de que ela participe. Todavia, este aparato, em sua forma atual, data dos séculos XIX e XX”.
A MOEDA
O magnífico samba, como os são aqueles do genial Noel Rosa, ainda coloca a libra esterlina (pound ou british pound) como referência de valor monetário. Porém, em 1933, ano da publicação do “Positivismo”, a libra inglesa já sofrera irreparável derrota com a I Grande Guerra, com a Revolução Russa de 1918, e causava grande escândalo a imagem da futura rainha Elizabeth II fazendo saudação nazista na capa do jornal “The Sun”, com a rainha mãe e seu tio Eduardo, então príncipe de Gales, que reinou como Eduardo VIII, entre janeiro e dezembro de 1936.
Com a II Grande Guerra, o dólar estadunidense assume, por acordo (Bretton Woods, 1944) e na efetividade, a condição da moeda do mundo ocidental. E nesta condição começa a sofrer o combate das finanças apátridas; desde 1970, com as denominadas “crises do petróleo” e, a partir de 1980, com as desregulações financeiras nos próprios EUA e no Reino Unido, chegando ao século XXI como “papel pintado de verde”.
Mas os EUA já tinham iniciado a derrocada da sua moeda ao reconhecerem a incapacidade de cumprir o acordo de Bretton Woods, em 15 de agosto de 1971, ficando então na dependência de os países árabes exportadores de petróleo negociarem suas vendas (cerca de 600 mil toneladas de óleo cru) apenas em dólares estadunidenses. Em 2009, o volume atingiria mais de 1,5 milhões de toneladas, sofrendo quedas após a crise monetária 2008-2010.
Em síntese, o século XX inicia com a libra inglesa em queda, o que se acentua nas duas Grandes Guerras e na emergência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e termina com o dólar estadunidense (USD) com déficit impagável (estimado pelo Schiller Institute, na Alemanha, em dois quatrilhões de USD).
Com o fim da II Grande Guerra e o Acordo de Bretton Woods, o dólar assume o papel que a libra desempenhara no século XIX. Mas os capitais financeiros reagem e ao fim de 1980, reassumem o poder, não mais da exclusividade britânica, nem da situação estadunidense, mas no conjunto onde se incluem capitais marginais, oriundos de ações ilícitas – assim entendidas por legislações internacionais, como comércio de pessoas e órgãos humanos, tráfico de drogas, prostituição etc – a capitais rentistas europeus (do Reino Unido, Suíça, Luxemburgo, Mônaco, Países Baixos entre outros), das Américas, da África e da Ásia e Oceania. A este conjunto denominamos capitais apátridas, cujos endereços estão nos 85 paraísos fiscais existentes no planeta.
Estes paraísos encontram-se em territórios da Commonwealth Britânica (32), como a City londrina, as ilhas Bahamas, Cayman, Guernesey, Seychelles e Tuvalu; em territórios estadunidenses, como os Estados de Delaware, Nevada e Wyoming, em territórios holandeses (4), os próprios Países Baixos e Curaçau; em territórios franceses (2) e em países formalmente independentes (37), no Oriente Médio (Emirados Árabes Unidos), na Europa (Noruega), na Ásia e Pacífico (Ilhas Fiji), na África (Essuatini, ex Suazilândia) e na América Latina (Panamá).
No século XXI, estes capitais se organizam em empresas “gestoras de ativos” que assumem o controle das indústrias, de prestadoras de serviço e mesmo de financeiras por todos os países. Este controle ficou ainda mais fácil pelos processos de fusão, incorporação ou simples aquisições que ocorriam desde 1950. O Transactional Track Record, no relatório do 1º trimestre de 2022, para o Brasil, registra 569 transações de aquisições de ativos, aportes de capital e inversões financeiras, totalizando R$ 63,9 bilhões, fortemente concentrados nas áreas da informática. As teorias para estas ações eram e continuam apontando para sinergia, confiança dos mercados, possibilidade de elevar os investimentos, mas que, na realidade, apenas concentravam patrimônio e aumentavam as rendas de um número cada vez menor de pessoas. Antigos líderes empresariais eram substituídos por executivos anônimos, os chief executive officers (CEO).
O Brasil vê esvair sua possibilidade de conquistar a soberania, objetivo dos governos militares entre 1967 e 1980, com princípios que foram derrotados em 1822, pelos capitais ingleses, que conseguiram inclusive o exílio de José Bonifácio de Andrada e Silva, autor do primeiro Projeto de Nação Soberana para o Brasil. Projeto atualizado por políticos nacionalistas e militares positivistas, que proclamaram a República, e promoveram o movimento denominado “tenentismo”, chegando ao poder nacional com a Revolução de 1930, sendo então derrotados pelos interesses dos EUA. Nestes últimos 30 anos, os interesses da soberania têm sido combatidos pelos capitais apátridas neoliberais.
OS MILITARES
Assim como na economia, também o poder militar sofreu, desde 1900, diversas alterações.
Durante o Império o exército e a marinha de guerra brasileiros foram quase aniquilados, por questões de política interna nos I e II Impérios e pelo desinteresse do Imperador. A Guerra do Paraguai evidenciou esta precariedade, que, no entanto, foi se mantendo até a República.
Entre 1906 e 1912, a convite do Imperador alemão Guilherme II, contando com o apoio do ministro da Guerra e, posteriormente, presidente da República, Marechal Hermes da Fonseca, foram enviadas turmas de oficiais brasileiros à Alemanha com o objetivo estudarem a modernização das forças armadas nacionais,
Esta aperfeiçoamento tanto incluía a ampliação do poderio bélico e inovações táticas, quanto a venda de armamento e o envio de missões militares estrangeiras de instrução.
Estes oficiais, no retorno ao Brasil e por defenderem reformas tendo como modelo a doutrina militar alemã, seriam chamados pelos seus adversários de “Jovens Turcos”, em referência aos oficiais de Mustafa Kemal de forte influência positivista, que também estagiaram na Alemanha, ou de “Alemães”, entre seus colegas de arma.
Os “Jovens Turcos” brasileiros fundaram a revista “A Defesa Nacional”, em 1913, consagrando-a à reforma do Exército Brasileiro, traduziam obras de militares alemães e difundiam seu sistema de treinamento, práticas e costumes, e escreviam textos enaltecendo o Exército e a indústria bélica germânica, como exemplo para as brasileiras.
Essa reforma tinha em vista a modernização do exército, e respondia ao processo de conscientização política das forças armadas, orientada por Benjamin Constant, claramente influenciado pelo positivismo.
Entre os “alemães” estavam Bertoldo Klinger, Euclides Figueiredo, Estevão Leitão de Carvalho, Joaquim de Souza Reis, Epaminondas de Lima e Silva, Parga Rodrigues, Amaro de Azambuja Vila Nova e Francisco Jorge Pinheiro.
Após o término da Primeira Guerra, a opção dos jovens turcos pela Alemanha se tornou inviável e o Brasil contratou a missão militar da França, chefiada pelo general Maurice Gamelin – Missão Francesa (1920 a 1940) – para prosseguir na modernização do Exército.
Um dos fundamentos do treinamento francês foi o ensino de elementos universais, princípios filosóficos, que ajudariam a compreensão mais ampla das questões, ou seja, da política, das relações internacionais, e da interligação de fatores.
Estes princípios foram sendo abandonados quando os EUA assumiram a orientação das Forças Armadas brasileiras e, absolutamente esquecidos, a partir da chegada do neoliberalismo nas escolas militares, ao final da década de 1960.
Com o término da II Grande Guerra e o encerramento da Missão Francesa, o Exército Brasileiro passou a receber influências do Exército Estadunidense, o qual também tinha em suas origens de formação o Exército Francês (Major de Infantaria João Paulo Diniz Guerra, “100 anos da Missão Militar Francesa no Brasil e sua contribuição para a evolução da doutrina militar terrestre brasileira”, Escola de Comando e Estado-Maior do Exército – ECEME, trabalho de conclusão do curso, RJ, 2019).
Em 15 de março de 1952, o Brasil e os EUA assinam o “Acordo de Assistência Militar entre a República dos Estados Unidos do Brasil e os Estados Unidos da América”, com objetivo de garantir a “defesa do hemisfério ocidental” e que estabeleceu, basicamente, o fornecimento de material dos EUA para o Exército brasileiro em troca de minerais estratégicos. Este acordo abrigou diversas missões de militares brasileiros aos EUA e foi denunciado, em 11/03/1977, pelo Presidente da República, general Ernesto Geisel.
Em 21 de dezembro de 2021, por Decreto Legislativo, o presidente da Câmara dos Deputados aprovou texto do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América referente a Projetos de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação (Acordo RDT&E), assinado em Miami, em 8 de março de 2020.
No entanto a situação hodierna é bem diferente daquela que levou Getúlio Vargas a firmar o Acordo denunciado por Geisel. Os EUA são hoje um país que também está subordinado ao sistema financeiro internacional, e que luta para manter sua moeda endividada como referência para as trocas internacionais.
REFLEXÕES À GUISA DE CONCLUSÃO
Muitas mudanças ocorreram desde 1990, sendo as mais notáveis as na área da informação, com a digitalização e a virtualidade dominando este domínio fundamental. A moeda é cada vez mais virtual e seu controle só não está mais difícil e complexo porque os capitais marginais também fazem uso do mesmo sistema, ou seja, não desejam que a fraude venha governa-los.
As Forças Armadas, em especial o Exército, têm um invejável rol de cursos e estágios para ensino e aperfeiçoamento de seus quadros, de sargento a general. Há, infelizmente, um erro pedagógico. Este preparo é profundo mas limitado. Sem demérito para os militares, que são vítimas não proponentes, eles sabem tudo sobre nada. O aperfeiçoamento só tem o sentido vertical, não se inter-relaciona com outros saberes de modo a ser aplicável nas realidades, sempre muito mais complexas do que a única técnica pode entender, o que dirá atuar. O Catálogo de Cursos da Diretoria de Educação Técnica Militar tem 406 páginas descrevendo mais de 300 cursos. Mas a indispensável visão sistêmica está ausente. E disto resulta militares que, por mais absurdo que pareça, defendem o Estado Mínimo, que lhes tirará a profissão (para a repressão bastam polícia e até milícias) e, com ela, todas as consequências nefastas para dotar o País de defesa nacional.
Fica, portanto, bastante claro que dois símbolos da soberania do País se encontram hoje em mãos estrangeiras, que trabalham por sua extinção. Moeda internacional virtual (bitcoin?) e Estado Colonial sem forças armadas, como o tivemos antes de 1822, quando o exército e a marinha brasileira eram, na verdade, portugueses e, ainda mais, o que é pior: servindo ao Império Inglês.
*Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.