Um futuro totalmente desconectado das tradições e voltado para o novo. Ao longo de anos, esse foi um pensamento dominante que estruturou a cultura de cidades e projetos arquitetônicos de países mundo afora, como Belo Horizonte, a então nova capital mineira ainda no início do século XIX, em que um histórico vilarejo de quase 200 anos foi totalmente demolido para dar lugar às “modernas” construções da região planejada.
Esse fato que ocorreu muito antes já sintetizava uma ideia que se consolidava no pós-Segunda Guerra Mundial, em que entidades norte-americanas fomentam a ideia de um desenvolvimento das cidades voltado para a eliminação total de um passado, para assim construir novos tempos.
Mas para fazer frente a essa perspectiva, considerada ultrapassada, o BRICS, sob a presidência rotativa da Rússia, promoveu em Moscou na última semana o fórum “Civilização inteligente: conexões horizontais de organizações da sociedade civil, universidades e empresas inovadoras do BRICS — a chave para moldar um futuro comum”.
O evento reuniu especialistas das mais diversas áreas, e quem levou a experiência brasileira para o centro das discussões foi Marta Fernandez, diretora do BRICS Policy Center, entidade ligada ao Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
À Sputnik Brasil ela ressalta que uma das tônicas do evento foi também demonstrar que a
modernidade não está vinculada à ocidentalização (ideia de desenvolvimento ligada às grandes potências).
“Com isso, a ideia de civilização e modernidade são, em grande medida, antagônicos, e, nesse sentido, para desenvolver e mirar o futuro, você precisa, de alguma forma, apagar tudo que é lido como tradições. No pensamento ocidental em geral, o que é visto como estranho também é automaticamente inferiorizado e sujeito às práticas de eliminação. E esse fórum trabalhou muito a questão de que é preciso ter um respeito pelas diferentes culturas para pensar o futuro a partir também das diversidades”, resume.
Além disso, a especialista cita uma
série de lições dos países do BRICS que conseguiram superar a fome e a pobreza, além de garantir o bem-estar através da infraestrutura, “sempre partindo de
condições concretas, materiais e culturais, de cada um dos Estados”.
Conforme Marta Fernandez, é um consenso entre o grupo a rejeição aos modelos únicos que não levam em consideração a heterogeneidade cultural que leva a diferentes entendimentos de modernização.
“Até porque hoje, como toda a discussão sobre mudança climática e desenvolvimento sustentável, não podemos equiparar modernidade com ocidentalização. Existe um famoso teórico, que é o [Walt Whitman] Rostow, que coloca que a modernização implica em altos níveis de consumo — pelo menos a entendida de forma convencional —, só que hoje
não é possível equiparar os níveis de consumo aos dos países do chamado Norte Global sem gerar uma catástrofe ambiental […]. E é preciso pensar esse processo levando em consideração que essas potências se desenvolveram a partir das interações materiais, sociais e intelectuais com o Sul Global,
a partir da história colonial“, enfatiza, ao acrescentar que os termos “desenvolvimento e subdesenvolvimento estão intimamente conectados”.
Quais países compõem o BRICS?
Originalmente formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, o BRICS teve uma expansão inédita neste ano, que trouxe outros membros ao grupo: Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã.
Para a especialista, a mudança trouxe uma diversidade
tanto cultural quanto econômica e política, o que contribui ainda mais com as discussões.
“O que eu entendo é que, de alguma forma, o agrupamento vem tentando construir a ideia de que essa diversidade, longe de ser a fraqueza do BRICS, é a força do agrupamento. E, nesse sentido, o respeito às diferenças vem sendo colocado como, vamos dizer assim, fundamental”, declara Fernandez.
Com relação ao Brasil, a especialista lembra que levou ao fórum a questão dos povos indígenas do país, que possuem uma outra visão sobre a relação dos humanos com a natureza, o que exemplifica essa diversidade gerada pela tradição.
“Se a gente está pensando em futuro, em futurologia, por exemplo, é importante que a gente justamente pense em como esses conhecimentos ditos tradicionais têm uma enorme potencialidade para a construção de futuros alternativos, mais equitativos e mais sustentáveis”, diz.
Por que Bretton Woods chegou ao fim?
Instituições como
Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial são fruto de anos de discussões que levaram aos acordos de Bretton Woods, entre 1944 e 1971, também no contexto pós-guerra.
Nas últimas décadas, a eficácia e atuação dessas entidades globais têm sido colocadas diariamente em xeque pelos desafios diários, a exemplo também da defesa pelo Sul Global da valorização da diversidade. “O BRICS traz uma defesa de que essas instituições sejam reformadas e democratizadas, de forma a atender não só aos interesses dos Estados, mas das suas respectivas sociedades”, diz.
É também, explica a diretora do BRICS Policy Center, a defesa pelo grupo de uma justiça redistributiva em todo o mundo, face ao poderio acumulado por anos pelas potências ocidentais.
“Então a própria questão da justiça climática, como que a gente vai alcançar essa justiça climática sem transferência de recursos, sem transferência de tecnologia, sem uma reforma das instituições financeiras internacionais? E no caso do Brasil, a gente está vendo agora, inclusive com o G20 sediado no Brasil este ano, como que o presidente Lula vem colocando a questão da desigualdade como uma questão central na agenda, ou seja, não dá para falar sobre mudança climática, não dá para falar sobre uma série de temas sem que o tema da desigualdade não seja visto como um tema estruturante e transversal às diferentes agendas”, declara.
Por fim, a especialista defende que o Brasil avance na troca de conhecimentos com os novos integrantes do BRICS, principalmente acadêmicos, científicos e tecnológicos, o que ajudará a contribuir com o país em diversos âmbitos.
“O fórum trouxe também a possibilidade de nos conhecermos melhor e, a partir daí, reconhecer a potência de cada uma das civilizações e buscar também conectividade. Ou seja, como que a gente pode conversar e se conectar através da diferença, tendo aí sempre a desigualdade transversalizando essa agenda“, conclui.