Artigo de Lara Resende desmascara uma farsa: já não há sustentação teórica alguma para defender juros altos — apenas o interesse da aristocracia financeira.
Por Felipe Calabrez
Um artigo recentemente publicado no Valor Econômico atraiu a atenção de parte dos economistas e jogou lenha na fogueira do debate macroeconômico nacional. Sob o provocante título “Juros e Conservadorismo Intelectual”, André Lara Resende apresenta o debate dito de fronteira da disciplina e que apresentaria achados contraintuitivos e reveladores: O primeiro foi revelado por estudos que analisaram a política do Quantitative Easing na Europa pós-2008. A medida de estímulo à economia por meio do aumento da oferta de moeda revelou, ao contrário do que defendia a Teoria Quantitativa da Moeda, que não produz sempre e necessariamente efeitos inflacionários. De acordo com Resende, as versões dessa teoria, já desacreditadas, deveriam ser enterradas de vez.
O segundo achado seria ainda mais chocante para quem acompanha o debate econômico no Brasil: Ao contrário do que sempre se acreditou, a hipótese neo-fisheriana sugere que taxas de juros altas podem, no curto prazo, reduzir a inflação, mas no longo prazo podem aumentá-la. Essa inversão na relação entre juros e inflação no longo prazo sugere então que toda a teoria sobre a qual o Banco Central constrói seus modelos poderia estar errada, revelando-nos então que pagamos os juros mais altos do mundo, com um brutal custo fiscal, efeitos contraproducentes sobre a dívida pública e, acrescento, efeitos distributivos perversos, em troca de mais inflação
Como o próprio autor ressalta, é cedo, do ponto de vista da teoria econômica, para conclusões precipitadas. As hipóteses teóricas devem ser testadas e seus testes se dão em condições de nenhum controle sobre variáveis intervenientes, de modo que conclusões definitivas são impossíveis, como é, ademais, o caso de todas as ciências sociais. Deixemos então o desenvolvimento da “teoria pura” e a construção de hipóteses de modelos com seus especialistas e foquemos e uma advertência fundamental de André Lara, e que aparece também em seu segundo artigo: “A teoria monetária, mais ainda do que outras áreas da economia, sempre esteve associada a um contexto histórico e social específico”. É a partir dessa afirmação que procurarei desenvolver meu argumento.
A primeira coisa que chama atenção nesse debate não é tanto o questionamento das premissas que orientam a política monetária nacional, mas sim de quem parte o questionamento. André Lara Resende foi negociador da dívida externa e um dos elaboradores do inteligente mecanismo da URV, pelo que é considerado um dos “pais do Real”. Formado na PUC-RJ, com PhD no MIT, onde conheceu figuras graúdas do mundo das finanças, como Larry Summers, Resende é figura importante no processo de construção de nossa arquitetura institucional que lida com a política monetária e importante expoente do pensamento hegemônico desde então. Não por outro motivo, seu artigo atraiu a atenção no debate econômico, o que o levou a produzir um segundo artigo, este intitulado “Teoria, Prática e bom senso”. Peço licença ao leitor para reproduzir um trecho importante do referido artigo:
“No Brasil, a inflação é muito pouco sensível à taxa de juros. As razões da ineficácia da política monetária são muitas e controvertidas, mas a baixa sensibilidade da inflação à taxa de juros é indiscutível, uma unanimidade. Por outro lado, com a dívida pública em torno de 70% do PIB, uma taxa nominal de juros de 14% ao ano exige um superávit fiscal de quase 10% do PIB para que a dívida nominal fique estável. Com a economia estagnada e a inflação perto dos 6% ao ano, isso significa que é preciso um superávit fiscal primário de quase 5% da renda nacional para estabilizar a relação entre a dívida e o PIB. A carga tributária está perto dos 40% do PIB, alta até mesmo para países avançados, ameaça estrangular a economia e inviabilizar a retomada do crescimento. A dificuldade política para reduzir despesas é enorme. Fica assim claro que o custo fiscal da política monetária não é irrelevante.” (RESENDE, in Valor Econômico, 27/01/2017).
A passagem transcrita acima apresenta dois grandes pontos. Vamos por partes:
Primeiramente, afirma a ineficácia de nossa política monetária, isto é, o instrumento utilizado para controle da inflação, que é a taxa de juros definida pelo Banco Central, produz pouco efeito sobre o nível dos preços.
Essa crítica não é nova. Embora inexistente nos grandes meios de comunicação, que determinam os termos do debate, já foi bastante discutida no ambiente acadêmico, onde foram apresentadas diversas explicações para o fenômeno, inclusive a do próprio André Lara Resende, que falava em “incerteza jurisdicional”. Não entrarei nos argumentos internos de cada explicação para a baixa eficácia da política monetária. Quanto a isso quero fazer duas observações: A primeira é a de que, apesar de haver um importante debate acadêmico, que apresenta argumentos bastante razoáveis sobre como e porquê manter juros altos como mecanismo de combate à inflação é contraproducente, o “debate público” que vemos nas grandes mídias diariamente é absolutamente impenetrável a tais argumentos. Quanto a isso basta lembrar da repetitiva narrativa dos jornalistas econômicos sobre a sacralidade do “tripé macroeconômico” e sobre a necessidade de o Banco Central não “descuidar” da inflação, isto é, manter juros altos. Eis um debate interditado.
Em segundo lugar, a comunidade dos policy-makers responsáveis pela política monetária sabe muito bem dos fracos efeitos de transmissão de suas políticas, isto é, que aumentar os juros produz muito pouco efeito sobre o nível de preços. Ocorre que, ao invés de se fomentar um debate sobre a eficácia dos instrumentos e/ou revê-los em seus fundamentos, eis que a solução que encontraram é, pasme o leitor, aumentar os juros ainda mais, até o ponto em que se obtenha o efeito esperado. Para quem duvidar, basta ler as atas do Copom. Não por outro motivo, André Lara Resende termina seu último artigo perguntando se, diante dos indícios da baixa eficácia do remédio deve-se “ministrar doses maciças” ou “reduzir rapidamente a dosagem”, o que seria uma questão de bom senso. Há décadas a opção do Banco Central tem sido a primeira.
Agora passo ao segundo grande ponto levantado pela passagem transcrita acima: O custo fiscal da política monetária. Este ponto está interligado com o anterior (baixa eficácia da política monetária), mas diz respeito a seus efeitos colaterais, que são o enorme custo que as altas taxas de juros produzem para o Tesouro, produzindo déficits e inflando a dívida pública. Lembremos que, como afirmou Resende, a política monetária está mais associada a questões institucionais do que à própria teoria econômica. Então vejamos.
A taxa Selic, instrumento que o BC utiliza para controlar a inflação, é a mesma taxa que remunera parte expressiva do estoque de dívida pública. Assim, a cada aumento na taxa, sobe a conta de juros que o Tesouro irá pagar por sua dívida.
O Tesouro oferece vários tipos de títulos diferentes, com indexadores diferentes; alguns são pré-fixados, outros são pós-fixados. Dentre eles, há um título denominado Letras Financeiras do Tesouro (LFT’s), que é indexado à taxa Selic, esta determinada de tempos em tempos pelos diretores do Banco Central após ouvir as previsões do mercado. É, portanto, pós-fixado. Acontece que, pelo menos desde o lançamento do Plano Real, a taxa Selic se manteve altíssima no Brasil, devido a inúmeros fenômenos que fogem ao controle do Tesouro, inclusive devido aos próprios fundamentos do plano, que necessita atrair capitais externos para manter um câmbio sobrevalorizado e manter a estabilidade de preços. Se pegarmos as médias anualizadas da Selic, disponíveis no site do Banco Central, encontramos a seguinte média:
Selic Média (anualizada)
1996-2002 – 22,95%
2003-2017 – 13,76%
Fonte: Site do Banco Central. Elaboração própria
Quanto a seu impacto sobre a dívida, se pegarmos os dados de 1995 (primeiro ano do governo FHC), veremos que 37,8% de uma dívida pública de R$108,5 bilhões de reais (em valores da época) era indexada à taxa Selic. Se olharmos para 1998, um ano antes da construção do “tripé macroeconômico”, 69,1% de uma dívida de R$323,9 bilhões era indexada à Selic. Em maio de 1999, o Copom, por conta de “turbulências externas”, definiu a Selic em 45%a.a, taxa que passou a remunerar 61,2% de uma dívida que já estava em R$ 414,9 bilhões (também em valores da época).
Diante disso, não estranha que o segundo governo FHC tenha permitido que a dívida chegasse às alturas mesmo produzindo expressivos superávits primários. O governo teve, nesse período, uma média de gasto com juros de 7,9% do PIB. Portanto, a dívida subiu não porque o governo tenha sido “irresponsável” fiscalmente, mas porque os custos de rolagem de uma dívida tão cara superavam os esforços fiscais não financeiros alcançados para controlá-la, de modo que ela passa a crescer sobre sua própria rolagem. Essa situação não mudou fundamentalmente nos governos Lula, embora tenha-se tentado reduzir o peso das LFT’s na dívida, movimento revertido a cada sobressalto do mercado.
O problema aqui é que o Tesouro é responsabilizado por um deficit que ele é incapaz de controlar, porque sua origem é financeira e monetária. Diante disso, como advertiu André Lara, qualquer pequeno ajuste fiscal se torna draconiano.
E aqui passo ao aspecto que considero mais perverso desse mecanismo: Trata-se de um sistema de espólio que onera as contas públicas e alimenta um sistema financeiro parasitário. Se olharmos para hoje notamos que, em plena recessão e sob o imperativo do “ajuste fiscal”, o Tesouro oferta título com rendimentos de 14% nominais (descontada a inflação, mais de 7% de ganhos reais). Essa anomalia, verdadeira farra financeira, criou um sistema financeiro completamente disfuncional para qualquer projeto de desenvolvimento, pois é muito mais rentável e seguro aplicar em títulos públicos, que, além de tudo, permitem resgates em curto prazo. É uma verdadeira benção para o sistema bancário, que pode se dar ao luxo de cobrar taxas na casa dos 400%! ao ano para o tomador final em plena recessão, já que tem garantidos seus chamados “ganhos de tesouraria”, que advém do carregamento de títulos.
Essa verdadeira anomalia institucional também não é novidade. Economistas como Francisco Lopreato e Yoshiaki Nakano já alertaram para esse problema. Talvez um dos primeiros tenha sido Fernando de Holanda Barbosa, que já em 1992 alertava, em texto preparado para a CEPAL, para o fato de que, nessas condições, uma política monetária contracionista (juros altos) produz uma política fiscal expansionista, já que se tem títulos protegidos contra a inflação e sacáveis no curto prazo. Mas quando isso foi criado?
As LFT’s foram criadas no rastro do repique inflacionário, durante a gestão de Maílson da Nóbrega, e visavam garantir o financiamento do governo oferecendo títulos atrativos para o mercado. Se originaram das LBC’s, que foram criadas também no período de inflação aberta por Mendonça de Barros, Pérsio Arida e…André Lara Resende! Se voltarmos mais atrás chegamos nas ORTN’s de Campos e Bulhões, criadas na primeira reforma do regime militar.
A inflação foi controlada há mais de 20 anos, o grosso da dívida passou a ser em moeda interna, governos tucanos e petistas ocuparam a Presidência da República e até hoje não houve uma revisão desse mecanismo de espoliação e rentismo às custas do contribuinte e da economia real. A dívida virou negócio intocável, uma eterna moeda indexada.
Se argumentos em torno de distribuição, desigualdade e injustiça não comovem a comunidade de economistas e financistas do Banco Central e do mundo das finanças, que pelo menos atentem para os desajustes entre objetivos e instrumentos da política macroeconômica. Isso porque agora começa a ficar claro, mais que nunca, que tais desajustes são fruto não apenas de arranjos institucionais extrativistas, que sugam a renda nacional, como também – e este segundo é André Lara Resende quem o diz – de conservadorismo intelectual e falta de bom senso.
Imagem: Theodor Rombouts, O Arrancador de Dentes (1635)
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