Por João Vitor Santos
O sociólogo espanhol Manuel Castells afirma que vivemos na época da sociedade da informação . Logo, não é difícil aceitar que a transformação dessa sociedade tenha na informação o instrumental para a mudança. Embora redes sociais e a própria Internet se apresentem como meio mais democrático de gerar e consumir informação, os grandes conglomerados de comunicação ainda detêm certo poder. Pensar uma sociedade diferente, que não siga os ditames do poder do capital — que faz girar a grande mídia — e, de fato, valorize o potencial social passa por pensar uma mídia alternativa. O italiano Ermanno Allegri é uma daquelas pessoas que pensa nessas possibilidades. Sua história de vida se mistura à constituição do conceito de mídia alternativa. “É procurar oferecer e colocar como protagonistas aqueles que são realmente protagonistas da sociedade e os fatos que mudam a sociedade”, define.
E é, de fato, isso que o sorridente e muito bem-humorado senhor de cabelos grisalhos faz. Desde muito jovem, quando era coroinha, envolvia-se em fazer boletins informativos na sua paróquia. Queria fazer circular o conhecimento e provocar as pessoas a pensarem. “A sociedade precisa de um empurrão. Devemos publicar o bem que fazemos, para que as pessoas percebam que existe o bem na sociedade”, diz, durante um bate-papo com a IHU On-Line. Nesta conversa, o italiano, que vive há quatro décadas no Brasil, destaca o papel formador da mídia alternativa em momentos de crise. “Vamos falar de crise colocando os dados e, com isso, não quero dizer que é para poupar o PT [Partido dos Trabalhadores], a Dilma [Rousseff, presidenta do Brasil] ou quem quer que seja. Vamos dizer o que foi o PT e quais foram as esperanças que ele traiu, orientar e sugerir sobre quais são os passos que devemos dar”, analisa. “No caso do Brasil, tem que sustentar essa esquerda. Porque é a única que, neste momento, oficialmente, pode barrar o que está aí, a proposta desse grande capital, que quer tomar conta do Brasil”, complementa.
Ermanno Allegri e sua luta incansável pela democratização da comunicação. |
Ermanno Allegri é padre italiano, naturalizado brasileiro. Há mais de 40 anos vive no país, onde foi coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), criou uma agência de notícias chamada AnotE (Agência de Notícias Esperança), com o intuito de inserir nas grandes mídias notícias sobre as atividades sociais realizadas no Estado do Ceará. Atualmente, é diretor executivo da Adital [Agência de Informação Frei Tito para a América Latina e Caribe], uma agência de notícias sediada em Fortaleza, que trabalha para levar informação e conteúdos relacionados à área social latino-americana e caribenha.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quando e como o senhor descobriu a comunicação, vendo nela uma aliada do trabalho pastoral?
Ermanno Allegri – Quando era criança, com nove anos, fui coroinha e existia um grupo de seminaristas na minha cidade, ainda na Itália, que fazia um boletim, um informativo chamado La Vetta (em italiano, significa o topo da montanha). Era algo muito paroquiano, feito pelos seminaristas e por quem estivesse interessado. Não sei se essa mania — de fazer comunicação — eu peguei daquele tempo. Só sei que, depois, já como estudante no seminário, começamos a nos perguntar: por que não fazemos um boletim? E, logo que surgiu a ideia, eu pensei: sim! Eu gosto muito de fazer. Assim, comecei a trabalhar nesse informativo, já tendo entre 18 e 20 anos, e acabei sendo um dos editores desse boletim. Colocava notícias curtas, coisas sarcásticas e cômicas, sempre gostei muito disso.
No Brasil
Depois, vim para o Brasil, em 1974, e fui trabalhar no interior da Bahia, em Santa Maria da Vitória. Nosso trabalho era, sobretudo, com a área rural. Era muito pesado, não tinha sindicato e ainda havia muita grilagem, fazendeiros que expulsavam posseiros, assassinavam. E, nesse local, para alcançarmos as comunidades, fizemos um boletim. No chamado “A voz do campo”, escrevíamos artigos e reproduzíamos outros, e também colocávamos poesias. Há sempre pessoas que escrevem poesia, que possuem esse talento de fazer os versos. Fizemos até um livretinho, com o título “É chegado o nosso tempo”, cuja frase foi retirada de um poema feito por um lavrador.
Depois, quando fui para Goiânia [Goiás], na Comissão Pastoral da Terra (CPT), ficava encucado com o fato de que aconteciam coisas horríveis com os trabalhadores do campo. Ao mesmo tempo, nós da Pastoral e outras tantas comissões do campo fazíamos um trabalho muito bom de conscientização e organização, mas isto não aparecia, não era notícia. Quando acontecia alguma coisa que interessasse a eles, a imprensa nos procurava. Nós até procurávamos jornais, mas éramos ilustres desconhecidos. As pessoas nos recebiam, mas só publicavam algo se fosse de interesse delas. Até que, um dia, um jornalista foi até a Pastoral da Terra e me disse: “olha, padre, eu só noticiei esporte até hoje. Agora, cheguei de manhã e me disseram que era para fazer uma entrevista sobre reforma agrária. E eu não sei nada sobre reforma agrária”. Pronto, eu precisava explicar tudo.
Acabamos fazendo a entrevista, depois, pedi ao jornalista que me enviasse uma cópia antes da publicação para dar uma revisada, para evitar erros e problemas de desinformação. Ele mandou e fiz os apontamentos. Essa história é importante para dizer que, quando estive em Goiânia, de 1986 a 1990, foram os anos mais duros. Em 1987, ano da Constituição, foram mais de 300 assassinatos, sobretudo de lideranças rurais. Andava como um maluco, indo de um enterro a outro.
A contrainformação
Em 1990, fui para Fortaleza, onde estou até hoje. Cheguei na época do governo de Tasso Jereissati e observei que ele chamava a imprensa para dizer que o Ceará saía do atraso, fazia uma série de louvores, dizia que era o novo estado de progresso do Nordeste. Mas nada era verdade. Entretanto, o fato é que ele conseguia vender essa imagem. Isto nos fez pensar em fazer um documento para revelar, de fato, como é o Ceará. Assim, reunimos as pastorais sociais e começamos a fazer esse trabalho de organizar o documento, que nunca saiu.
E por que não saiu? Percebemos que cada pastoral era absolutamente ignorante sobre o trabalho social que outra pastoral realizava. Elas não se conheciam e não conheciam a realidade como um todo. A Pastoral da Terra era a única que tinha um conhecimento sobre a realidade rural, números de terras de latifúndio, para reforma agrária, etc. A Pastoral da Criança, uma das mais ativas, sabia quantas crianças atendia, mas não sabia quantas crianças estavam com fome, qual era o percentual de mortes, entre outras informações. Foi, então, que começamos a pensar: não é questão de fazer um documento. É neste momento que começo a lançar a ideia de uma agência de notícias. Conhecia a experiência de uma agência de São Paulo, a Agen, que já havia morrido e poderia ser uma oportunidade de fazer outra, pelo menos para o Ceará. Ali nasceu a AnotE, Agência de Notícias Esperança.
IHU On-Line – Mas, na verdade, o senhor queria era a trabalhar a formação dessas pessoas que já atuavam nesses grupos?
Ermanno Allegri – A ideia era a seguinte: se nós queremos chegar até a imprensa, se queremos fazer frente diante daquela informação que o governador estava vinculando, devemos ter um canal permanente com os meios de comunicação. Não seria levando um documento até eles que mudaríamos as informações que eram veiculadas sobre o Ceará. No caso de ter o documento pronto e entregue, seria noticiado um dia e, pronto, acabaria a conversa. Por isso, devemos ter esse canal de comunicação permanente, porque nós, das pastorais sociais, estávamos fazendo um trabalho muito bom, com sindicatos, movimentos sociais.
E qual foi o formato que escolhemos? No interior e na cidade, nas periferias, as pessoas escutam rádio, não têm o hábito de ler jornal. Assim, fazíamos toda semana umas 10 ou 12 notícias sobre aquilo que estávamos fazendo, não essas notícias sobre acidentes ou crimes. Nossa pauta era o que a Pastoral da Terra estava fazendo, por exemplo, em Iguatu, onde está sendo construída uma barragem. Como se opor, se não à barragem, ao despejo das pessoas? E a Pastoral Operária, naquela greve em que morreu um operário, o que ela fez nesse caso? E a Federação dos Trabalhadores Rurais, que cursos de formação estava promovendo? Enfim, eram essas notícias que reuníamos.
Foi diante dessas notícias que uma jornalista teve a ideia de formatarmos esses conteúdos para o rádio, para alcançarmos o maior número de pessoas. E respeitávamos o formato, pois fazer notícias para rádio era texto de no máximo 10 ou 12 linhas. Começamos a mandar para as rádios. E foi um sucesso! Assim, os jornalistas de jornais começaram a reclamar e queriam saber por que não mandávamos para eles também. Bem, começamos a mandar.
IHU On-Line – Esse apelo pelas informações de vocês era feito pela mídia tradicional?
Ermanno Allegri – Chegamos a ter nossas notícias na primeira página de jornais locais, como O Povo, o Diário [do Nordeste]. Porque isso era notícia. A dificuldade era convencer o pessoal das pastorais sociais e movimentos de que aquilo que estavam fazendo era notícia. Eu me lembro de um encontro da Pastoral da Terra do Ceará, em que eram sete ou oito dioceses, e o pessoal contava o que estava fazendo. A agência já existia, mas eu estava conhecendo o que estavam fazendo somente ali. Eu me indignei: “E vocês, fazendo tudo isso e não me mandam nada”. E me questionaram: “Mas que notícia é essa?”. O quê?! Fiz uma lista do que cada um havia dito sobre suas ações e mostrei que só ali havia 12 notícias. “Ah, isso é notícia…”, diziam eles.
Valor da notícia
Não se considera notícia o que se faz diariamente, pois é o comum, mas, certamente, isso é que é notícia. Por quê? A nossa linha de trabalho era: vamos mostrar o que fazemos de bom e positivo, de organização, de conscientização, e isto, além de motivar outros, também serve para colocarmos na sociedade um sangue novo, para que a sociedade tenha mais esperança. Porque uma boa informação não é aquela que trazem os programas policiais sobre tiros e mortes, em que o repórter corre com policiais, perde o fôlego e aponta o ladrão lá no fundo (da imagem). Quem vê isso faz o quê? Se fecha dentro de casa e não sai mais. Já, se você dá um tipo de notícia diferente, cria nas pessoas uma esperança. As pessoas pensam: tem coisa errada, mas também tem coisa boa.
Essa orientação foi que fez sucesso com muita gente, mas não só isso: também motivou sindicatos, organizações não governamentais e movimentos sociais a terem uma assessoria de imprensa própria. Descobriram que eles podem chamar os jornalistas, mostrarem o que faziam e o jornalista iria entender o valor daquela notícia. Aliás, com o material que produziam, já enviavam direto para os veículos de comunicação, sem passar pela AnotE.
IHU On-Line – Como surgiu a Adital?
Ermanno Allegri – Depois de certo tempo, ainda na AnotE, passamos a publicar as notícias e, na última página, um artigo. Em 1999, enquanto o Frei Betto estava na Itália, um empresário o procurou e sugeriu que fizesse, no Brasil, uma agência de notícias, que mostrasse as ações da Igreja no país. Existia uma agência chamada Adista, na Itália, que serviria de modelo. Esse empresário nos relatou que, através do que via na Adista, observou como a Europa estava explorando a América Latina. Aliado a isto, esse empresário conheceu a Teologia da Libertação e ficou fascinado, odiava a hierarquia de Igreja e, ao ver essa Teologia, se sentiu atraído pela nova linha.
O empresário acabou vindo para São Paulo com o diretor da Adista, para nos apresentar uma proposta. Queriam fazer uma agência nos padrões da Adista, que, naquele tempo, noticiava mais coisas de Igreja. Com essa proposta de noticiar Igreja, ficamos meio em dúvida. Pensei em recusar, já que tocava uma agência como a AnotE com a sociedade e fazer uma agência para a América Latina, somente para falar de Igreja, soava estranho. Durante o período do encontro, foi publicado um artigo do Frei Betto na Folha de São Paulo. E, enquanto conversávamos com eles, explicando que não era esse tipo de trabalho que queríamos fazer, que queríamos envolver a sociedade e não só a Igreja, mostramos o artigo e dissemos que, se esse mesmo artigo saísse nos boletins das paróquias, ele ficaria só entre nós, os religiosos, e não sei quantos iriam ler. Agora, só a Folha imprime, ou imprimia na época, 400 mil cópias. A estatística diz que a cada jornal que se vende, três pessoas leem; então, são 1 milhão e 200 mil pessoas que podem ler o artigo do Frei Betto.
O representante da Adista ficou nervoso, questionando se o trabalho de Igreja não interessava. Claro que interessa, mas em outro contexto. Quem entendeu melhor foi o empresário. Ele quis saber como faríamos uma agência assim para a América Latina, envolvendo sociedade civil. Disse que era preciso se articular, já trabalhávamos com sindicatos e entidades do tipo. No fim, ele topou financiar e ali começou o trabalho, dentro do espírito da AnotE, de ter a sociedade envolvida e mostrar o que se faz de bom na América Latina.
IHU On-Line – De que forma o Fórum Social Mundial influenciou a criação da Adital?
Ermanno Allegri – Foi nesse contexto (enquanto acertavam detalhes para iniciar os trabalhos) que aconteceu o primeiro Fórum Social Mundial. Participando do encontro, percebi que esse era exatamente o momento de uma agência como a Adital. Essas eram as fontes de informação da Adital; havia 870 oficinas naquela semana do Fórum e o que impressionou era a variedade de oficinas, variedade de pessoas. Fiz contatos e, a partir desse Fórum, começamos a recolher listas de pessoas que trabalhavam com direitos humanos no Brasil e em nível internacional, pessoas que trabalhavam com políticas para mulheres, com os indígenas. Assim fomos montando um banco de dados com uma série de fontes, e — acho eu — ninguém tem tantas fontes de trabalhos sociais na América Latina como nós.
O papel da Igreja
Conseguimos fontes muito boas porque são aqueles que trabalham diretamente, que construíram a cidadania e que, na macropolítica, representam os países com os governos, digamos, progressistas. Sem esses, não nasceria a América Latina, que, aliás, hoje, já está um pouco diferente. Foi então que descobrimos uma coisa muito importante: se a Igreja não tivesse tido a atuação que teve, dando força a todo esse movimento e disposta a trabalhar junto com as entidades cristãs e não cristãs para organizar a sociedade, a América Latina não seria o que é hoje. Poderia ter sido de outro jeito, mas fato é que a Igreja foi uma das grandes forças.
Tanto é que fizemos, em 2003 e 2004, uma reportagem em cada país sobre as ações da Teologia da Libertação. O objetivo era mostrar que o trabalho que havia começado há 20 ou 30 anos estava continuando e pegava rumos diferentes. Esse material originou até mesmo um livro.
IHU On-Line – Por que é importante levar essa informação das pastorais e movimentos para “além dos muros da Igreja”? Por que buscar esse espaço também na imprensa, na mídia tradicional?
Ermanno Allegri –Desconsiderando o fato de que trabalho na Igreja (risos)… Comecemos com o Evangelho, quando Jesus Cristo fala “o que eu digo aos seus ouvidos, publiquem pelos telhados”. E isto não com a finalidade de aparecer, mas, como diz no Evangelho, para que vejam suas obras boas e glorifiquem o Pai do Céu. Então, nós devemos publicar o bem que fazemos, para que as pessoas percebam que existe o bem na sociedade.
Segunda questão: análise sociológica. É preciso criar na sociedade, de forma ativa e organizada, uma sensação, um clima bom na relação com as pastorais sociais, que eram condenadas até dentro da Igreja, para mostrar que essas são as pessoas que, de fato, querem a mudança na sociedade e que temos de participar desses movimentos. Assim, além da análise religiosa, a análise social foi fundamental para dizer que a sociedade precisa de um empurrão.
Nós trabalhamos muito em parceria com a sociedade civil porque, de fato, seria impossível não trabalhar. A Pastoral da Terra, por exemplo, trabalha com os sem terra, com sindicatos, com a iniciativa de trabalho rural. Então, se tivéssemos, por exemplo, problemas em uma barragem, numa situação em que pessoas eram despejadas, a Pastoral da Terra nunca ia sozinha até o local. Estávamos ao lado do sindicato, da organização social da área e se fazia um trabalho conjunto.
Trabalho para o Reino de Deus
Essa ação é o que chamamos de trabalho para o Reino de Deus. A Igreja é um instrumento para o Reino de Deus. Dentro desse trabalho você encontra um monte de gente como Jesus encontrava, os pagãos, em que se dizia nunca ter visto tanta fé em Israel. Fazendo esse trabalho sempre junto com a sociedade, mostramos para essa mesma sociedade que precisamos seguir juntos. De fato, quando havia grandes manifestações pela reforma agrária, chegava-se a ter 50 ou 60 entidades, era incontável porque se juntavam pessoas das cidades também, além das pastorais e das pessoas diretamente atingidas no campo.
IHU On-Line – Então, com base na sua experiência e no que nos relatou, o que podemos entender por mídia alternativa?
Ermanno Allegri –Alternativo para nós é o conteúdo. Recebemos muitos e-mails de pessoas elogiando o trabalho da Adital e dizendo que não há trabalho como esse. Eu sempre chamo a atenção de que há 15 anos era quase a única nesse sentido, mas, hoje, existem muitos sites que fazem isso e há os que trabalham especificamente com mulheres, indígenas, temas da ecologia, por exemplo. Para nós, mídia alternativa é procurar oferecer e colocar como protagonistas aqueles que são realmente protagonistas.
Se havia um despejo de trabalhadores rurais, por exemplo, o jornalista ia aonde? Ia ao delegado, ao prefeito e ao latifundiário que havia sido prejudicado. Nunca ia ao sindicato ou aos despejados para saber o que eles tinham a dizer. Nós devemos colocar a voz desses que nunca são consultados, para mostrar que não são doidos, que não vão sair por aí fazendo besteira, mas que são pessoas que, de fato, querem pensar em alternativas para a sociedade.
Qualidade técnica
Era preciso ocupar esse espaço porque, até nas rádios populares, ocorria o seguinte: o vigário ia até o grupo de jovens e buscava dois ou três para fazerem o programa da paróquia. Eles iam e não sabiam o que fazer, pois não foram treinados e não eram especialistas em comunicação. Então, faziam coisas como pegar o jornal e ler o horóscopo. Para dar conteúdo a isso e ser alternativo, de fato, você não deve ficar amarrado ao oficial, que não fala da vida das pessoas. É preciso criar meios, oferecendo material para que os comunicadores tenham elementos para noticiar.
Fizemos isto na Adital, o que ajudou a criar uma rede. Por exemplo, em Fortaleza, ocorreu um encontro da mídia alternativa. Apareceram 200 pessoas de rádios e de boletins. Alternativo era fazer com que esses meios populares tivessem uma atuação, um sentir a vida e a comunicação de forma própria e que, de fato, expressassem aquilo que se fazia, para valorizar a sociedade e pensar uma sociedade alternativa. Senão, a gente reproduz, sem querer e por incompetência, o pensamento do poder hegemônico.
Alternativo e não raquítico
Precisamos tirar da cabeça essa ideia de que mídia alternativa é mídia raquítica. Veja um jornal da paróquia, que faz em torno de 1.000 a 1.500 cópias. Por que não pode fazer 50 mil cópias? É preciso correr atrás, ou vai esperar que alguém dê 50 mil cópias feitas? O que precisamos perceber é que o que fazemos, pelo conteúdo, pode ser como uma Rede Globo. Quando dizia que estava satisfeito porque a Adital tinha 200 mil visitas por mês — agora, está em alguns milhões —, eu me questionava: quanto é 200 mil no Brasil? Comparado com os 200 milhões de habitantes, esse número é nada. E vamos tentar ter mais porque a gente não pode se acostumar e considerar nossa mídia alternativa como raquítica na divulgação.
Precisamos fazer uma coisa mais séria, mais bem feita, mais bem pensada e que chegue a mais gente. Cerca de 80% da população não estão em nenhuma organização, nem de Igreja, nem de partido, nem de organização social, e essas pessoas são aquelas que dão seu voto para qualquer um, para aquele que faz a melhor propaganda pedindo voto. São pessoas que não têm o filtro crítico para perceber o que é verdade e o que não é. Precisamos pensar em como chegamos nessas pessoas. Pensar como ajudo as pessoas a terem conteúdo e pensarem criticamente para que, de fato, também — mas não só isso — seu voto não contribua para construir um péssimo Congresso Nacional, que é o que temos hoje.
Complexificando a pauta
Podemos pensar em fazer algo para chegar naquelas pessoas que só leem a mídia tradicional. Vamos fazer, por exemplo, programas para rádios, para rebater tudo que a grande mídia diz. Por exemplo, essa história de Petrolão. Outro dia, uma pessoa me disse que a Dilma era a mais corrupta e que tinham que tirá-la do poder. Mas tirar Dilma e colocar quem? As pessoas não sabem isso.
Se fizermos um programa com as rádios, pode ser uma ou duas vezes na semana, vamos fazer com que todos tenham uma boa linha de análise e o mesmo impacto junto ao público contra aquela informação hegemônica. Vamos informar as pessoas, por exemplo, sobre terceirização, quantas pessoas acharam que a proposta é interessante, e vamos dizer o que é de fato. Veja por exemplo a CUT [Central Única dos/as Trabalhadiores/as]. Quantos programas de rádio têm os sindicatos? As pastorais e as paróquias? Quantos boletins existem e quantas pessoas trabalham com o Facebook? Vamos chamar pessoas que trazem atrás de si muitas pessoas, trabalhando na comunicação.
IHU On-Line – Quem é ou como deve ser o profissional dessa mídia alternativa? É o jornalista, mas só o jornalista ou somente com formação jornalística?
Ermanno Allegri – Os jornalistas dizem que têm de ser jornalista, eu acho que têm esse direito até para garantir o emprego. Mas há articulistas muito lidos que não são jornalistas, pode ser um teólogo, analista político ou alguém que gosta de ecologia. Para trabalhar nessa área, penso que é preciso ter sensibilidade e faro para os fatos que temos de noticiar. E também o tipo de reflexão que se tem de fazer e, depois, a capacidade de falar, de forma um pouco mais simples.
Fizeram um panfleto por ocasião de uma caminhada em prol do pré-sal e lá estava escrito “queremos que os royalties sejam nossos”. Pergunte o que é royalties à primeira pessoa que passar por você na rua para ver se ela sabe definir. Não digo que o povo não tenha que aprender palavras novas, isto é importante, mas se deve chegar com um tipo de linguagem que seja acessível. O profissional deve ser uma pessoa que, ao mesmo tempo, saiba escrever e que tenha a sensibilidade de saber como, de fato, pode ser compreendido, levando as pessoas a pensarem.
IHU On-Line – Então, nessa perspectiva, a mídia alternativa se coloca como outra frente de formação?
Ermanno Allegri – Deve ser de formação, ajudar a pensar, oferecer os elementos para que a pessoa possa julgar, e não vamos fazer a cabeça. Assim, por exemplo, se começo a escutar que falam de terceirização, preciso saber o que é terceirização, de fato.
IHU On-Line – Falamos e ouvimos na grande mídia que vivemos no Brasil uma crise política e econômica. Qual é o papel da mídia alternativa nesse dito estado de crise?
Ermanno Allegri – É colocar: essa crise vem de onde e quer levar para onde? Vamos ver o que ela diz e o que é verdade dentro disso. Por exemplo, crise política por causa da corrupção, nunca se roubou tanto no Brasil como o PT roubou. Vamos, por favor, ver o que é corrupção.
Em Fortaleza, num programa de rádio, dei uma cacetada numa universidade porque colocaram, em alguns pontos da cidade, o impostômetro, que mede a arrecadação de impostos. Por que essa universidade não coloca também um sonegômetro? Quanto é que sonegamos? Quem é corrupto? O PT que roubou “só” — entre aspas mesmo — 10 bilhões de reais, não é questão de se roubar pouco pode, e muito não pode, mas quanto é que se sonega num ano? 500 bilhões de dólares. Quais são os nomes desses que sonegam? Cadê os nomes da Operação Zelotes? Cadê a lista do [banco] HSBC ? Como é que um corrupto como Eduardo Cunha não sai daquela cadeira?
Vamos falar de crise colocando os dados, e com isso não quero dizer que é para poupar o PT, a Dilma ou quem quer que seja. Vamos dizer o que foi o PT e quais foram as esperanças que ele traiu, orientar e sugerir quais são os passos que devemos dar. Eu, por exemplo, sou daqueles que analisam que a esquerda, não só no Brasil, é como “bananeira que deu cacho”. Ou seja, não espero que o PT consiga se renovar, para chegar àquela política que se pensava no começo.
Nessa crise, a mídia alternativa pode oferecer elementos para pensar. Você quer a corrupção? Qual a finalidade da corrupção? É a ética? Já que se é contra a corrupção por que não se divulga a lista completa da Lava Jato? Por que as empresas financiam campanhas políticas? Enfim, por que se quer destruir Dilma e o PT? Por que se quer falar contra a corrupção? Para ter a corrupção total nas mãos, para pegar o dinheiro do pré-sal destinado à educação e à saúde para dar a empresários estrangeiros e para as multinacionais? A Petrobras, por exemplo, recebeu um prêmio mundial, em maio [de 2015]. Por que ninguém falou sobre isto? Por que não se disse que superaram e aumentaram a produção da empresa? Precisamos fazer um discurso claro.
IHU On-Line – Como analisa esse momento da esquerda, não só no Brasil, mas em toda América Latina?
Ermanno Allegri – No caso do Brasil, tem que sustentar essa esquerda. Porque é a única que, oficialmente, pode barrar o que está aí, a proposta desse grande capital que quer tomar conta do Brasil. E, se cai o Brasil (nas garras desse capital), cai toda a América Latina. E esse é o investimento que estão fazendo em nível mundial. É o caso desse grupo do recém-criado Tratado de Livre Comércio Transpacífico – TPP, que deixou bem claro: escolheram os países para fecharem o Pacífico. Podemos ver o Japão, que tem bastante dinheiro, e o resto são todos miseráveis. Qual é a proposta? De que o capital comece a governar os países, inclusive, entrando na Justiça contra o governo dos países.
IHU On-Line – Quais são as alternativas? Estão dentro da própria esquerda?
Ermanno Allegri – Estão também dentro da própria esquerda. Estou de acordo com aqueles que analisam que a esquerda é “bananeira que deu cacho”, no sentido que já se contaminou com o capital. Para construir um novo esquema, é necessário pelo menos cinco anos, dentro desse novo esquema até acho que muita gente da esquerda pode entrar, porque apesar de elencar os problemas do PT, sei que no PSOL [Partido Socialismo e Liberdade], no PCdoB [Partido Comunista do Brasil] e até no PT mesmo tem um monte de gente muito boa.
Mas como é que se faz isso? Essas pessoas podem continuar trabalhando nos partidos oficiais, mas vamos multiplicar os trabalhos de base, a conscientização das pessoas. Dentro desse trabalho de conscientização, no próprio trabalho de mídia alternativa, podemos encontrar gente boa, pessoas que acreditam e que começam a despertar para uma proposta diferente. Não vejo alternativas. Não dá para pensar que virá um salvador da pátria e vai fundar uma nova esquerda.
A incompreensão de 2013
Esse grupo, Raiz Movimento Cidadanista, ligado à [deputada federal] Luiza Erundina [Partido Socialista Brasileiro – PT – São Paulo], ficou um tempo na Espanha com o Podemos. O pessoal do Podemos também veio um tempo ao Brasil e até Marina [Silva, candidata derrotada à Presidência nas últimas eleições] faz uma referência com o Podemos, mas acho que não há nenhuma possibilidade de se instituir um Podemos do Brasil. Aqui, estamos num outro momento histórico, diferente do que levou o Podemos a surgir na Espanha. Um bom momento para fundar um “Podemos do Brasil” teria sido 2013, que nós todos, nas pastorais sociais, na esquerda, nos partidos, não soubemos entender e como entrar nesse movimento. Ficamos todos de boca aberta, olhando.
Aparelhamento
Em Fortaleza, há o grupo Levante Popular, mas é composto pelos jovens simpatizantes do PT. Então, é para levantar o povo ou para transmitir o que o PT quer para juventude? Ou o caso da UNE [União Nacional dos Estudantes] — que é PCdoB —, é para os estudantes ou é para passar para os estudantes os programas do PCdoB? É a velha história de correia de transmissão, e se coloca, de novo, como primeiro interesse, o partido, e não a situação da classe popular. É o aparelhamento, talvez com mais boa vontade, mas ainda sem coragem para anunciar: vamos começar uma mudança de fato.
Há o movimento da Frente Nacional de Esquerda, que acho ótimo, mas vai até quando? Imaginemos que saímos dessa crise tranquilos e vamos para frente, mas e a próxima crise? Será daqui um mês ou daqui um ano? Ou se começa, de fato, um discurso novo, de raiz nova, ou vamos empurrando com a barriga, de uma crise para a outra, até que consigam nos derrubar. E aí será um desastre. Em geral, sou otimista, mas, ultimamente, sou quase que pessimista. Não sei se damos conta de acelerar nosso trabalho, para passar na frente do trabalho que outros fazem. Quando li o conteúdo do Tratado do comércio do Pacífico, fiquei apavorado, pois é o investimento do grande capital contra mais uma área de países, e é um começo que não chega nem a ser o ovo da serpente. Já é a serpente nascida.
Fim do Estado
O Tratado demonstra mais um passo que o grande capital faz para eliminar a intermediação dos Estados, desaparece a soberania nacional, desaparece o Estado de Direito, o político, social, econômico e cultural, para os Estados serem, inclusive, processados e para pagarem os prejuízos das multinacionais. É o fim da picada. É, de fato, o que fizeram com as crises dos bancos, que nunca ganharam tanto. Tem banco que foi à falência e que, hoje, tem 10 vezes mais do que tinha.
Fórum Social Mundial, berço da Adital. |
Não sei se isso acontecerá pacificamente porque já vimos, por exemplo, na França, o caso dos demitidos da Air France. Eles entraram na diretoria da empresa e distribuíram pancadas nos diretores. Não gosto de pancadas, mas os diretores precisam ver o que significa um povo passar fome. Quando falamos em mudança de época, não significa que se precise de um tempo curto, de 2008 até 2016, para acontecer, acho que precisa de mais 20 anos. O que vai acontecer nas sociedades nacionais e internacionais? Acredito que haverá embates muito fortes, não gostaria, mas devem ser embates muito violentos. O que acontece na Europa com os países como a Líbia é o resultado do que a própria Europa e os Estados Unidos semearam.
IHU On-Line – E dentro desse espírito de formação e motivação para uma potência de sociedade, como analisa o momento da Igreja, hoje?
Ermanno Allegri – Precisamos analisar os 27 anos de João Paulo II, que foram um desastre para a Igreja e para a sociedade, e os sete anos de Ratzinger [Bento XVI], que já não foram tão diferentes dos anos anteriores, mas foi quando desabou o modelo que se sustentava. Não vou entrar nisto para não me alongar, mas, com certeza, a América Latina sofreu. João Paulo II não entendeu nada de América Latina e sua atuação foi negativa em relação a isto. O mérito de Bento XVI foi que, em Aparecida [São Paulo, Brasil], abriu para a comunidade eclesial de base a Teologia da Libertação e o novo trabalho da Igreja na América Latina. Isto foi um fato positivo que, juntamente com sua renúncia, resgata Ratzinger.
Agora, esse momento… Acho que o Espírito Santo ficou com ciúmes da sociedade (risos). O Pentecostes, do primeiro século, foi Jesus Cristo e os apóstolos, o segundo Pentecostes, do segundo milênio, foi São Francisco de Assis; e o terceiro milênio começou com outro Pentecostes, que foi o Fórum Social Mundial. Ou seja, a sociedade mostrou que ela estava construindo o Reino de Deus, quer dizer, a justiça social, governos progressistas, menos fome, menos injustiça. Assim, acho que o Espírito Santo ficou com ciúmes e disse: “espere aí, vou mandar o Papa Francisco, para que a Igreja também, no começo do terceiro milênio, tenha uma palavra” (risos).
Tempo diferente
Hoje, vivemos um tempo diferente dentro da Igreja. Tão radical que muita gente ainda não entendeu nada. Dizem que é bonitinho o Papa, que saiu do congresso estadunidense dentro de um carro pequeninho. Mas o que isto significa? Um carrinho desses, num país onde o carro menor tem 20 metros? Não é simplesmente um fato bonitinho e simpático, é uma quebra de protocolo, de esquema. Ou a Igreja entra com peso na sociedade, ou o futuro da humanidade como um todo vai ser triste.
O Papa Francisco é um Jesus Cristo que te coloca o verdadeiro sentido de ser Igreja. É outra Igreja. O Papa tem um jeito novo, mas o que ele faz não é tão novo. Ele se baseia no Evangelho, que é uma coisa antiga. O lugar social e a finalidade do que ele faz não é a Igreja, é a sociedade para o mundo, é a própria sociedade. Assim, o que é Reino de Deus é a prioridade dele. Tanto é verdade que a Laudato Si’ deve ter o apoio de 20% de pessoas da base da Igreja e o resto é de fora da Igreja, porque ele pediu a opinião e as informações de cientistas sociais. E, quando ele fala as pessoas escutam, porque é a palavra deles e não só do Papa. É dessa forma que você influencia, de fato, as pessoas, não é se colocando como uma autoridade. A fala do Papa não é de autoridade, mas sim de proposta.
Quando há variedade de pessoas que ajudam a constituir a proposta, ela é mais bem aceita. As pessoas se sentem reforçadas e encorajadas a continuarem aquele trabalho. Esta é uma linha que precisamos potencializar. Sabemos que isso vai ser pesado, porque há os que colocam que você não é mais Igreja porque faz análise de conjuntura sem falar em Deus, e que nós devemos ficar só na espiritualidade. É um embate bem pesado, mas se não fizermos isso perderemos uma oportunidade de salvar a humanidade, e não somente salvar a Igreja. Porque é bom lembrar: a Igreja é um instrumento, não é o Reino de Deus.
IHU – Unisinos
Instituto Humanitas Unisinos