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quinta-feira, 26 junho, 2025

Massacre da farinha em Gaza: por que civis estão sendo mortos enquanto aguardam ajuda humanitária?

Origem da foto: Reuters

Heba Ayyad*

Em uma das cenas mais brutais da história de guerras e cercos, filas de civis palestinos na Faixa de Gaza estão sendo alvejadas enquanto aguardam por um saco de farinha ou uma cesta básica. Os tiros não são direcionados a combatentes, mas sim aos famintos. Da Rua Rashid ao cruzamento de Netzarim, os massacres se repetem sem restrições. Este relatório analisa os contextos políticos, militares e ideológicos por trás desses ataques sistemáticos, revelando como a ajuda humanitária deixou de ser uma tábua de salvação para se tornar um campo de extermínio em massa, em meio ao silêncio internacional e à cumplicidade declarada.

Na Gaza sitiada, a guerra não é mais travada apenas com artilharia e mísseis; ela também se dá por meio da fome, que agora se converte em uma arma letal por si só, matando dezenas de palestinos diariamente enquanto aguardam por sacos de farinha ou caixas de ajuda.

Massacres em Centros de Ajuda

De acordo com a mídia governamental em Gaza, mais de 516 civis foram mortos enquanto aguardavam ajuda ou durante reuniões de distribuição de suprimentos, desde o início do chamado mecanismo de “ajuda EUA-Israel”, em 27 de maio de 2025. Mais de 3.700 pessoas ficaram feridas, enquanto cenas horríveis se repetem: corpos empilhados em frente a hospitais e sobreviventes gritando: “Saímos só por comida”.

Desde outubro de 2023, a Faixa de Gaza tem sido submetida a um dos mais severos cercos e campanhas de fome em massa dos tempos modernos, segundo a Anistia Internacional. A organização emitiu um comunicado em 12 de março de 2024, afirmando: “Israel está usando sistematicamente a fome como arma de guerra — uma grave violação do direito internacional humanitário e um crime de guerra documentado”.

Por sua vez, o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Volker Türk, declarou em discurso ao Conselho de Direitos Humanos:

“O que estamos testemunhando em Gaza é a destruição sistemática das necessidades mais básicas da vida e a fome forçada de civis. Atirar em pessoas famintas é horrível e injustificável em qualquer circunstância.”

Pontos de Distribuição Sob Controle de Fogo

Até o final de maio de 2025, o chamado “Mecanismo de Ajuda EUA-Israel” já se encontrava em operação. As estruturas de distribuição foram instaladas em áreas estratégicas da Faixa de Gaza, estando presentes também em várias outras regiões centrais do território.

Assim que os caminhões de suprimentos chegam aos cruzamentos da Rua Rashid, na região de Netzarim e em Rafah, eles passam a ser monitorados por forças israelenses. Esses pontos são promovidos como “corredores humanitários”, mas na prática, funcionam sob vigilância armada intensa. A presença constante de drones e atiradores dificulta qualquer sensação de segurança — não há controle efetivo da situação nem garantias de proteção para os civis nesses locais.

Ataques a Solicitantes de Ajuda Humanitária em Gaza

Em muitos casos, assim que os solicitantes de ajuda se reúnem nas proximidades dessas instalações, transformam-se em alvos expostos, sendo mortos ou feridos por fogo direto ou bombardeios surpresa. Isso desmente a alegação de que esses locais estariam sob proteção humanitária.

Por que Israel mira aqueles que aguardam ajuda?

Observadores acreditam que os ataques às filas de ajuda atendem a propósitos militares e psicológicos de Israel, entre os quais destacam-se: aterrorizar a população, impedir aglomerações, humilhar os civis, vincular a sobrevivência à aceitação dos termos da ocupação, desmantelar a solidariedade interna e transformar o acesso à comida em uma ferramenta de controle.

O acadêmico em direito internacional Michael Lynk, ex-Relator Especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados, afirmou em entrevista à TV WOW.

“Quando pessoas são mortas correndo atrás de um caminhão de farinha, isso não é um caso de caos, mas sim uma política sistemática que busca humilhar o povo palestino e obliterar sua dignidade.”

Em resumo, pode-se afirmar que Israel está atacando os solicitantes de ajuda humanitária em Gaza com tamanha brutalidade por diversas razões interligadas, relacionadas à condução da guerra, aos objetivos militares estratégicos e ao desejo de exercer controle sobre a sociedade palestina. Essas razões podem ser sintetizadas da seguinte forma:

  1. Fome como Arma de Guerra

Israel adota uma política de cerco e fome para subjugar a população de Gaza. O ataque a centros de distribuição de ajuda humanitária é utilizado como uma forma de exercer controle econômico e psicológico, pressionando a população a se submeter ou a abandonar o território.

A ocupação justifica os disparos contra civis nas proximidades de centros de assistência com alegações de “ameaça à segurança” ou presença de “militantes”. No entanto, testemunhos em campo e relatórios de organizações de direitos humanos indicam que a maioria das vítimas são civis desarmados.

  1. Justificativas de Segurança e Alegações de Ameaça

Frequentemente, o exército israelense declara que os ataques ocorrem em resposta a ameaças à segurança ou à suposta presença de militantes entre a multidão. No entanto, depoimentos de sobreviventes e observações de campo confirmam que, na maioria dos casos, não há militantes presentes, e as vítimas são civis vulneráveis em busca de alimentos.

Em algumas situações, o exército declarou as estradas que levam aos centros de ajuda como “zonas de combate”, advertindo a população para se afastar, mesmo ciente de que ali se concentravam pessoas famintas em busca de mantimentos.

4 – Punição Coletiva e Impunidade

A continuidade desses crimes reflete uma política de punição coletiva contra a população de Gaza, sustentada pela imunidade garantida no cenário internacional e pelo apoio político e militar dos Estados Unidos e de outros países ocidentais — o que confere a Israel uma sensação de impunidade.

Organizações de direitos humanos confirmam que o uso intenso e deliberado de força contra civis que tentam obter ajuda é legal e humanitariamente injustificável, constituindo um crime de guerra documentado.

5 – Objetivos Políticos Mais Amplos

Alguns analistas acreditam que os ataques contra solicitantes de ajuda também têm como objetivo minar os esforços internacionais de assistência, forçar a população ao êxodo, alterar a realidade demográfica da Faixa de Gaza e exercer pressão política e militar sobre a resistência palestina.

O ataque brutal a civis em busca de ajuda reflete uma estratégia deliberada de submissão da população por meio da fome e da violência. Israel tenta justificar essas ações com alegações frágeis de segurança, enquanto os fatos e os testemunhos em campo apontam para um objetivo maior: pressão e controles coletivos, diante da ausência de qualquer mecanismo internacional eficaz de dissuasão.

A Narrativa Israelense: Erro ou Política?

Por sua vez, Israel nega atacar civis de forma deliberada. Alega que tais incidentes ocorrem em decorrência de “superlotação, infiltração de elementos armados em locais de distribuição, proximidade de civis com supostos combatentes, tumultos, tomada de pontos de ajuda por membros do Hamas, trocas de tiros no local e erros de julgamento em campo”.

Investigação e Justificativas

No entanto, o jornal hebraico Haaretz publicou uma extensa investigação em 10 de junho, indicando que as instruções emitidas pelo comando do exército permitem “abrir fogo nas proximidades dos pontos de reunião se houver suspeita de elementos indisciplinados ou ameaças potenciais”. Especialistas militares descreveram essa diretriz como um “sinal verde” para o uso indiscriminado da força.

Israel acusa o Hamas de utilizar civis como escudos humanos, alegando que o movimento busca provocar cenas humanitárias sangrentas para constranger o Estado diante da opinião pública internacional. No entanto, o problema fundamental com essas justificativas é que elas não se sustentam diante da repetição sistemática dos mesmos incidentes, em diferentes áreas, sob supervisão internacional e diante das câmeras.

Testemunhos Documentados: “Não houve confronto”

A Human Rights Watch declarou, em relatório publicado em 5 de junho:

“Muitas das mortes em locais de distribuição de ajuda não envolveram confrontos armados. Civis foram baleados enquanto corriam em direção a caminhões de alimentos ou se reuniam nas praças — alguns foram mortos enquanto tentavam retornar com seus mantimentos.”

Em um depoimento documentado, o Dr. Thaer Ahmed — médico emergencista norte-americano e voluntário da MedGlobal, que atuou no Hospital Nasser, em Khan Yunis, entre janeiro e fevereiro de 2024 — afirmou que a natureza dos ferimentos observados no hospital indicava um padrão sistemático de ataques.

Em entrevista à mídia britânica, declarou: “Muitos ferimentos foram causados por tiros de precisão na cabeça e no tórax, e outros por drones que atingiram até mesmo, membros da equipe médica.”

Ele acrescentou que tais ferimentos não resultaram de bombardeios ou confrontos indiscriminados, mas foram “mais semelhantes a ataques deliberados de atiradores de elite contra civis, mirando pontos vitais e fatais do corpo”.

Embora não tenha se referido especificamente às filas de ajuda, seu depoimento aponta para uma política calculada de ataques contra civis, completamente consistente com o padrão observado hoje nos locais de distribuição de alimentos em Gaza.

A Ideologia da Fome

Pode não haver um édito religioso explícito, na fé judaica, que justifique a matança de famintos. No entanto, dentro da estrutura ideológica do Estado hebraico, o palestino — mesmo em momentos de fome — é frequentemente constituído como um elemento perigoso ou um excedente existencial a ser neutralizado.

Na literatura bíblica — grande parte da qual é reciclada no discurso ultranacionalista — aparecem modelos de povos “inimigos” famintos apresentados como instrumentos de purificação divina. Alguns rabinos extremistas chegam a reinterpretar essas passagens como justificativa para punições coletivas.

O rabino Dov Lior declarou explicitamente: “Na guerra, não há diferença entre um civil e um combatente, porque todos constituem um ambiente hostil.”

Essa visão se alinha à doutrina militar israelense conhecida como Doutrina Dahiya, que considera toda a comunidade um campo de batalha, tornando as filas de comida alvos legítimos dentro de uma rígida mentalidade de segurança.

No discurso político, descrições depreciativas de palestinos — como “ratos” ou “animais humanos” — tornaram-se comuns. Isso aprofunda sua desumanização e fornece ao agressor uma justificativa psicológica conveniente. Assim, no imaginário israelense de segurança, o palestino faminto é transformado em uma “bomba demográfica”, e não em um ser humano digno de proteção.

Analistas acreditam que o objetivo mais profundo de Israel, ao matar os famintos, é fragmentar a sociedade e desmantelar o tecido civil. Além disso, a matança de civis nas filas de ajuda não representa apenas um massacre físico, mas também um assassinato moral e psicológico da sociedade palestina — despojando-a de sua dignidade e capacidade de sobrevivência, conduzindo-a ao colapso completo, como prelúdio para a transformação da realidade demográfica, geográfica e política em Gaza.

Esses analistas afirmam que Israel está matando essas pessoas porque deseja impor sua vontade pela força a uma sociedade sitiada. Israel entende que a comida, assim como uma arma, pode ser utilizada para desmantelar ou humilhar um oponente. Trata-se de uma guerra contra a própria ideia de existência do ser humano palestino e contra sua sobrevivência.

A Dualidade da Narrativa Ocidental

Embora alguns líderes ocidentais tenham expressado preocupação com as “perdas humanitárias”, muitos governos continuam a apoiar o mecanismo de distribuição de ajuda coordenado com Israel. Isso levanta uma questão moral: o Ocidente é cúmplice — por silêncio ou por apoio — do crime de matar civis ou de deixá-los morrer de fome?

“A comida fornecida sob as condições da ocupação tornou-se um símbolo do colapso da ordem moral global, e Israel está explorando esse colapso para impor condições de rendição coletiva”, afirma Elisabeth Brosset, pesquisadora do Instituto de Estudos Internacionais de Genebra.

Direito Internacional

Do ponto de vista do Direito Internacional Humanitário, ataques deliberados a civis — particularmente àqueles que buscam assistência humanitária básica — constituem crimes de guerra. A proteção de civis é um princípio fundamental do direito internacional, e as partes em conflito têm obrigações claras de evitar atacá-los e de facilitar a entrega de ajuda.

O uso da fome como arma de guerra, como apontam diversas organizações internacionais em relação à situação em Gaza, representa uma grave violação de inúmeros tratados e convenções, incluindo o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.

Atacar populações civis em filas de espera por ajuda, independentemente de pretextos de segurança, é uma flagrante violação dos princípios de distinção, proporcionalidade e precaução — os pilares do direito internacional que visam proteger vidas inocentes durante conflitos armados.

Por fim, Gaza vive hoje em um mundo em que um saco de farinha se tornou uma ameaça à vida. Civis palestinos na Faixa de Gaza não estão morrendo apenas por causa dos bombardeios ou do cerco, mas por um pedaço de pão.

A pergunta que se impõe à consciência mundial é: continuaremos apenas contando os corpos — ou finalmente pararemos a matança?

*Heba Ayyad

Jornalista internacional Escritora Palestina Brasileira

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