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domingo, 16 novembro, 2025

Luís Fernando Veríssimo, o artista que retratou o Brasil

(Marcello Casal Jr./ABr – Agência Brasil/Reprodução)

São Paulo, Brasil (Prensa Latina) Conheci Luís Fernando Veríssimo na casa de seus pais, Mafalda e Érico Veríssimo, no arborizado bairro de Petrópolis, em Porto Alegre, em 1974, após minha saída da prisão. Fui agradecer a Érico pelas várias caixas cheias de livros que ele havia enviado, a meu pedido, para a biblioteca da Penitenciária de Presidente Venceslau (São Paulo), onde a ditadura me isolou entre presos comuns por quase dois anos.

Frei Betto*, colaborador da Prensa Latina

Interessado em reler “O Tempo e o Vento”, que Pedro, meu companheiro de cela, tinha em seu poder, insisti com ele durante semanas para que terminasse de ler. Um dia, ele me confessou que vinha adiando a entrega do livro porque gostara tanto que comprara cadernos grossos para copiar cada volume da trilogia à mão. Fiquei tão chocado que contei o incidente em uma carta para Érico. Semanas depois, ele enviou caixas com seus e outros livros para a penitenciária.

Eu frequentemente encontrava Lúcia e Luís Fernando em eventos literários, tanto na casa deles em Porto Alegre quanto em Recife, no apartamento de Leda Alves e Hermilo Borba Filho, onde o casal e eu nos hospedávamos durante nossas visitas à capital pernambucana. Parecia que as conversas naquela sala, com vista para a praia de Boa Viagem, já eram autorais, prontas para virar peça de teatro, conto, crônica, anedota de bar ou até mesmo discurso de formatura.

Certa tarde, quando questionado sobre a política atual, Veríssimo disse algo tão simples e devastador que, até hoje, me parece uma síntese do Brasil: “O problema não é que sejamos mal governados. O problema é que somos bem governados por aqueles que não deveriam governar.” Disse isso enquanto mexia o café, como se estivesse falando sobre o tempo. E então, calou-se. Em qualquer contexto, Veríssimo tinha a peculiaridade de estar presente e, ao mesmo tempo, parecer um personagem em si mesmo, refugiando-se no silêncio, absorto em sua subjetividade como um monge budista. Era como se tivesse sido inventado por Henfil, escrito por Millôr e interpretado por Chico Caruso.

Nos lançamentos do meu livro no Rio, no Esch Café, no Leblon, Veríssimo estava acompanhado de Chico Caruso e Jaguar. Entre amigos, ele parecia um clandestino de navio que, ao ser descoberto, não foi expulso, mas convidado a reger a orquestra. Ele ouvia mais do que falava, e quando falava, era em frases curtas e precisas, tão precisas que pareciam ensaiadas ao longo de séculos de reflexão.

Quando convidado para dar palestras, Veríssimo nunca se detinha no tema; preferia deixar que o público o questionasse. Assim, a natureza dialógica do evento dava vida ao evento. Principalmente quando ele parava de tagarelar, pegava seu saxofone e improvisava uma apresentação de jazz.

Veríssimo escrevia como quem toma café sem açúcar, em goles rápidos e quentes, às vezes amargos, mas sempre pertinentes. Seu humor político desafiava todos os padrões proselitistas. Ácido e contundente, tanto na escrita quanto nas charges, ele era imbuído de inteligência.

Foi um cronista que não se limitou a escrever sobre o Brasil; radiografou a condição humana. Seus personagens, como Ed Mort, o detetive particular desastrado, o Analista de Bagé, a Velha de Taubaté, as Cobras, a Família Brasi e Dora Avante, expressam e refletem nossas facetas mais ocultas, mas ao mesmo tempo ridículas e verdadeiras. Veríssimo foi o gênio da banalidade, um elogio superlativo a um artista que tocava mais de sete instrumentos: escritor, humorista, chargista, tradutor, roteirista, dramaturgo e romancista. Foi também assessor de imprensa e revisor de texto.

Ele era o personagem fantasiado mais convincente. Escrevia sobre um casal brigando pelo controle remoto e fazia parecer que estava narrando a Guerra de Troia. Descrevia um jantar sem graça como se estivesse pintando o teto da Capela Sistina. E fazia as pessoas rirem. Rir de verdade, rir de si mesmas, rir tanto que não sabíamos por quê. Em plena ditadura, no universo de Verissim, o riso não era uma escolha estética, era uma forma de sobrevivência.

Veríssimo não precisou de grandes acontecimentos para escrever. Bastou um espirro, um engarrafamento, um pedaço de queijo esquecido na geladeira e voilà! Virou crônica. Sua genialidade residia em compreender que o cotidiano é um palco onde todos atuamos sem ensaio, e que o riso é o aplauso involuntário de quem reconhece a própria falta de jeito.

Nos lançamentos de seus livros, os leitores talvez preferissem pedir a receita da felicidade em comprimidos em vez de um autógrafo. Porque, no fundo, todos suspeitavam que ele escondia no bolso a fórmula simples para rir dos infortúnios antes que eles rissem de nós.

Não pense que Veríssimo era apenas um comediante com um livro de erudição debaixo do braço. Ele possuía a melancolia elegante dos verdadeiros comediantes. Sabia, como poucos, que a ironia é irmã da tristeza e que, às vezes, o riso é apenas uma maneira de dizer que não adianta chorar. Seu segredo era rir e fazer rir com poesia, zombar com delicadeza, atirar pedras com a mão enluvada.

E pensar que eu o tinha visto tantas vezes e nunca lhe perguntei como ele conseguia manter tanta leveza naquele corpo enorme. Talvez a resposta fosse esta: aprenda a rir de si mesmo com a seriedade de quem sabe que a vida, se não for divertida, não tem graça.

(Luis Fernando Verissimo morreu em Porto Alegre no sábado, 30 de agosto, aos 88 anos. Com mais de 80 títulos publicados, ele foi um dos escritores brasileiros contemporâneos mais populares. Filho do também escritor Erico Verissimo, uma das figuras mais proeminentes da literatura brasileira.)

* Escritor brasileiro e frade dominicano, internacionalmente conhecido como teólogo da libertação, autor de 60 livros em diversos gêneros literários. Ganhou duas vezes o Prêmio Jabuti, a maior condecoração literária do país, em 1985 e 2005. Em 1986, foi eleito Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores. Assessor de movimentos sociais como as Comunidades Eclesiais de Base e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, tem se envolvido ativamente na vida política brasileira nas últimas cinco décadas.

**Cartunistas brasileiros de destaque

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