Pedro Augusto Pinho*
Em dois artigos publicados no Portal Pátria Latina (“O Ideal da Distopia”, em 26/09/2021, e “Utopia, Distopia e Desenvolvimento”, em 28/09 /2021) mostramos como a sociedade foi falsamente colocada a optar entre dois modelos de desenvolvimento, caindo, ao fim, no retrocesso do modelo financista.
Dois pensadores sociais do século XIX, Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920), foram fundamentais para construção da dicotomia socialista/capitalista, em torno da qual se consolidaram as oposições “esquerda/direita” ou “comunista/democrática”, ao longo do século XX, no que se aproveitou o sistema financeiro anglo-judaico-estadunidense, restaurado pelos desgastes de seis séculos, com o artifício da plástica neoliberal – Ludwig von Mises (1881-1973) e seu apoiador Friedrich von Hayek (1899-1992) – para triunfar no século XXI.
Porém esta imposição de dois sistemas de desenvolvimento, como se fossem válidos para a diversidade de sociedades humanas, desconhecendo que cada uma se amolda na relação diferenciada do homem com a natureza, ou seja, com o ambiente em que vive e desenvolve sua cultura, acarretou a falência de todos os processos de desenvolvimento, da construção da sociedade melhor e mais justa que ambos prometiam.
O que se constata hoje, entrando na terceira década do século XXI, são sociedades em crises de toda natureza: econômicas, sociais, existenciais, políticas, confusas ideologicamente, que o embuste das finanças pretende colocá-las, mais uma vez, em dicotomia, agora do oriente x ocidente.
As soluções não se resumem a duas ou três ou quatro, mas serão tantas quantos as nações que tenham sido formadas em culturas diferentes. Existe, desde sempre, a imposição da pedagogia colonial, porém esta não copia, necessariamente, padrões estranhos ao do País.
Para discorrer sobre uma nova utopia, nacional desenvolvimentista, recorreremos ao sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) e ao gênio brasileiro, o antropólogo, pensador, político e educador Darcy Ribeiro (1922-1997).
De Bourdieu, traremos dois textos de 1971 e um de 1970, publicados pela Editora Perspectiva (SP, 2015, 8ª edição) em “A Economia das Trocas Simbólicas”, traduzidos por Sílvia de Almeida Prado, (a) Uma interpretação da Teoria da Religião de Max Weber (Archives Européenes de Sociologie, XII, 1, 1971), e por Sergio Miceli, (b) Campo do Poder, Campo Intelectual e Habitus de Classe (Scolies, 1, 1971) e (c) A Excelência e os Valores do Sistema de Ensino Francês (Annales, XXV, 1, 1970).
De Darcy Ribeiro, os cinco monumentais “Estudos de Antropologia da Civilização” e seu livro sobre o “O povo brasileiro”.
Iniciemos quando Bourdieu é explícito em “negar os dualismos ainda em voga” (c). Ele cita a definição de estilo de vida, encontrada em Robert Redfield (1897-1958), “The Primitive World and its Transformations” (Cornell University Press, NY, 1953) (tradução livre): “o murmúrio e o zumbido de implicações de uma cultura …… (são) expressões de valor expressas pela metade ou inexprimíveis”.
Embora com informações deturpadas pela mídia hegemônica, é possível entender que o desenvolvimento de Cuba, apesar de todas as restrições, embargos, bloqueios, ameaças que a ilha vem sofrendo desde 1958, a vida cotidiana de seus habitantes, os progressos científicos, especialmente na medicina e na farmacopeia, demonstram que há outras opções de progresso, diferentes da ostentação e do consumo irrefreável. Prova disso é o desenvolvimento de três vacinas contra o covid19, caso único na América Latina.
Se tomarmos o caso da República Islâmica do Irã, em grande parte com território inóspito, pelos desertos e pelo clima, porém com elevado nível de vida para população de 83 milhões de habitantes, e alto desenvolvimento tecnológico, também demonstrará que há desenvolvimento fora das dualidades apresentadas.
Vários outros casos confirmarão que há mais zumbido do que explicações, quando se trata de reconhecer as diferenças. Bourdieu traz a contribuição do antropólogo Bronislaw Malinowski (1884-1942), que passou a conviver com as populações estudadas para obter “mais objetivas” as informações, distinguir as nuances e o “algo mais” que construíam as diferenças. E vem um sistema tentar impor a universalidade de comportamentos! O fracasso era o resultado mais evidente. E nele estamos agora vivendo.
Como construir a utopia do desenvolvimento, passa a ser a questão. E não tem a simplicidade errônea e falsa dos neoliberais, que tudo entregam ao mercado.
Na crítica que Bourdieu faz da imensa obra sartriana sobre Gustave Flaubert (O idiota da família), chama atenção para os critérios de seleção “pouco explícitos e pouco sistemáticos”, embora na maioria das vezes de acordo com “os princípios que definem a maneira legítima de abordar a obra de arte”. “Sartre”, escreve Bourdieu, “contradiz o princípio da teoria do conhecimento do social segundo o qual as condições objetivas determinam as práticas e mesmo os limites da experiência, que o indivíduo pode ter de suas práticas e das conduções que as determinam” (b).
Obrigar ou induzir a sociedade humana, já complexa por natureza, cujo processo de formação histórica nem sempre foi corretamente registrado, cujas manifestações produtivas têm variados estímulos, e encontra diversas modalidades de convivência com o meio circundante, a natureza e outras sociedades, a se comportarem de modo homogêneo dentro de um sentido da falsa dualidade, é o desejo do insucesso. E sempre trará uma relação colonial. Exceto pela Era Vargas, o Brasil nada mais foi do que colônia: portuguesa, inglesa, estadunidense e financeira.
Para a construção de nova utopia, que reponha a confiança no futuro, a compreensão do Estado é fundamental. E, prosseguindo com Bourdieu vamos busca-la no seu curso no Collège de France, de 1989 a 1992, publicado com o título “Sobre o Estado”, pela Edições 70 (Lisboa, 2014, na tradução de Pedro Elói Duarte do original de 2012).
Estado seria o “campo da função pública do poder”, ou, aceitando Max Weber, “monopólio da violência legítima”, que Bourdieu adiciona, “da violência física e simbólica”. Mas o Estado ainda estaria muito abstrato. E Bourdieu introduz as “integrações lógica e moral do mundo social”, não como solução, mas “um terreno próprio para as desavenças”. Por analogia a Leibniz, seria Deus, “o lugar geométrico de todas perspectivas antagônicas”. A tradição marxista não questiona o Estado mas sua função, “em proveito dos dominantes”.
Fiquemos então com o Estado como o princípio da ordem pública, porém maior do que a estreita definição weberiana, que pratica atos abrangentes, de caráter público e oficial, para proporcionar segurança e futuro aos que habitam em sua jurisdição. E estaria faltando a gênese, que a cultura, na manifestação livre da população, faria surgir. E o Estado seria então e também um sociólogo, em difícil e interminável pesquisa, que o obrigaria a mudança sempre que se entendesse como sujeito e objeto simultaneamente. Uma pitada do deus leibniziano.
E esta população, a sociedade, também estaria em permanente transformação, etapas evolutivas, que Darcy Ribeiro (O Processo Civilizatório – Etapas da Evolução Sociocultural, Civilização Brasileira, RJ, 1968) apresenta como resultante da adaptação à natureza, da organização social e da visão do mundo.
*Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.