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domingo, 13 outubro, 2024

Intelectuais de internet chegam ao poder

Por Tatiana Roque, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

Dizendo proteger a democracia ao suprimir o comunismo da sociedade, formam-se cruzadas que, ironicamente, suprimem a democracia – ao tolher o dissenso e a liberdade de expressão. Grupos organizados atuam em universidades e escolas para vigiar e denunciar supostos comunistas, sem provas, listando nominalmente professores e acusando-os de doutrinar e seduzir estudantes. Comitês governamentais são instalados para limpar a máquina estatal de funcionários ideologicamente suspeitos.

Essas são características definidoras da chamada onda do Medo Vermelho (Red Scare) que acometeu a sociedade norte-americana entre 1947 e 1957. O medo foi reforçado pela teoria conspiratória do “inimigo interno”, propalada pelo senador Joseph McCarthy, que denunciava insistentemente a suposta presença de agentes comunistas dentro do governo.

A semelhança entre o macarthismo e o que vivemos hoje salta aos olhos, com uma única diferença: naquela época, o comunismo era uma força política com possibilidade de conquistar alguma hegemonia; hoje, não. Após a Segunda Guerra Mundial, os partidos socialistas e comunistas estavam fortes, os sindicatos se beneficiavam com uma situação favorável aos trabalhadores, a União Soviética demonstrava poder na cena internacional. Nos Estados Unidos, com a crise do capitalismo após a Grande Depressão, o Partido Comunista havia crescido em número e em expressão. A caça aos comunistas usava métodos antidemocráticos e autoritários para pintar como ameaça destrutiva uma mudança de regime com alguma chance de ocorrer. E hoje, perguntamo-nos atônitos, de onde tiraram a ideia de que vivemos sob algum risco comunista? Os atuais partidos comunistas até gostariam que fosse verdade, mas todo esse circo mais se parece com tantos falsos planos que, ao longo da história, serviram de pretexto para a instalação de regimes antidemocráticos. Só que, por outro lado, nem todo regime antidemocrático é uma ditadura como a que tivemos a partir de 1964.

A fragilização de nossa jovem democracia se dá por meio de uma grave crise institucional, com esferas de poder e de controle extrapolando suas funções e interferindo onde não é de sua alçada, mas, sobretudo, com o papel dos mediadores sendo colocado sob suspeita, como é o caso de jornalistas, políticos e intelectuais. Influenciadores digitais decidem ou se tornam ministros, grandes empresários cuidam da economia, agentes da justiça fazem política. A eliminação dos intermediários é uma marca do processo atual de enfraquecimento da democracia. Naomi Klein aponta algo similar no governo Trump: em vez de mediar a tomada do espaço público pelas grandes corporações, a ocupação passa a se dar sem intermediários, com um presidente que é ele próprio uma corporação e que coloca empresários interessados em postos que deveriam servir para calibrar interesses divergentes. Sem mediação de conflitos não há democracia.

No Brasil, várias esferas intermediárias do poder político estão sendo esvaziadas. Bolsonaro já se solidarizou com o sofrimento dos patrões, em razão das leis trabalhistas, para eliminar o Ministério do Trabalho, responsável pela fiscalização das condições de trabalho. Ao mesmo tempo, um megaempresário assume a economia e o planejamento. Esses são apenas alguns exemplos, que incluem ainda ruralistas gerindo o meio ambiente ou setores específicos da Igreja ditando políticas de direitos humanos. Os ataques à escola, às universidades e ao lugar dos intelectuais é parte do questionamento generalizado às instituições democráticas. O dado ainda mais grave, contudo, é que isso não está sendo feito à revelia da população, pois setores sociais relevantes apoiam as medidas. No caso da escola, movimentos como o Escola sem Partido contam com o apoio de parte da sociedade.

A ascensão da extrema direita é um fenômeno social de nossos tempos, e análises de suas raízes são cada vez mais necessárias – de suas crenças, de seus métodos de operação e do segredo de seu sucesso. Como compreender, nesse bojo, os ataques aos intelectuais? A posição dos experts tem sido cada vez mais relevante no debate público sobre questões candentes. Basta ver o destaque que os intelectuais têm tido em debates públicos sobre temas econômicos, ecológicos, sobre política de drogas ou de gênero – em geral encarnando posições progressistas. O ressentimento contra os intelectuais pode não ser uma manifestação de seu declínio, e sim de sua proeminência no debate público.

Não é a primeira vez que a desqualificação dos intelectuais surge como modo de enfraquecer as opiniões embasadas na disputa pública de posições. Aconteceu algo semelhante nos Estados Unidos, em meados do século XX, quando se cumpria uma etapa importante na consolidação da democracia liberal: a institucionalização da posição do expert – aquele que vem a público oferecer uma opinião qualificada, pois embasada em critérios científicos. Durante o período do New Deal, iniciou-se uma participação mais efetiva dos intelectuais no espaço público: criaram-se milhares de empregos para quadros qualificados, surgiram projetos culturais que empregavam artistas, o clima nas universidades era de otimismo e expansão, acadêmicos assumiam o papel de conselheiros do governo. Além disso, os intelectuais eram responsáveis pelas teorias que embasavam o pacto democrático. A Segunda Guerra Mundial reforçou a aproximação entre os intelectuais e o poder, com as demandas geradas por estratégias e tecnologias de guerra, reforçando um sentimento cada vez mais forte de credibilidade na opinião embasada de experts, fenômeno social que chegou a ganhar a alcunha de “confiança no cérebro” (brain trust).

É nesse contexto que surge, nos anos 1950, uma onda tão forte de anti-intelectualismo que o próprio termo passa a ser adotado, como mostra Richard Hofstader, autor de Anti-intelectualismo na América, ganhador do prêmio Pullitzer. Escrita em 1963, a obra ressalta que o anti-intelectualismo surgiu nos Estados Unidos como reação à ampliação do papel do intelectual, em particular com a função de expertise consolidando sua figura na esfera pública. Mesmo a Guerra Fria e o governo do general Eisenhower faziam uso estratégico de experts para legitimar suas políticas, com todas as contradições que isso envolvia. Naquele momento, a afirmação do papel do expert enfraquecia o anti-intelectualismo em geral, mas a desqualificação do intelectual sobrevivia encarnada no macarthismo. Sob o pretexto de caça aos comunistas, selecionavam-se os intelectuais que mereciam ser ouvidos e os que deviam ser silenciados. Ou seja, o anti-intelectualismo macarthista funcionava, de modo mais ou menos intencional, como uma forma de pressão para converter todo intelectual em expert a serviço do poder político.

Essa tendência foi reforçada com o lançamento do Sputnik, em 1957, quando o mundo científico dos Estados Unidos sofreu um golpe brutal, levando toda a sociedade a reavaliar a posição dos acadêmicos. Essa classe não podia mais ser desprezada, sob risco de colocar os Estados Unidos em segundo plano em relação aos avanços científicos da URSS, que impressionavam o mundo. Esse reconhecimento levou a uma revalorização dos intelectuais, só que não todos eles. O poder passa a recorrer frequentemente ao conhecimento, mas não em busca de sua função crítica e especulativa, e sim ávido pelo conhecimento que possa servir às necessidades imediatas de governo.

Além de gerar resistências, essas mudanças produzem uma crise de identidade no meio intelectual, habituado a defender sua função pela valorização da busca do saber desinteressado. O livro de Hofstader oferece bases sólidas para a hipótese de que, nos anos 1950, o anti-intelectualismo foi também uma reação à imagem do intelectual desconectado da sociedade, refratário aos problemas que preocupam diretamente a população. Enfim, uma crítica ao intelectual da torre de marfim (expressão, aliás, muito usada na época).

Essas disputas continuam vivas. Até hoje nos perguntamos até que ponto os intelectuais devem estar a serviço do Estado, das demandas da economia ou da sociedade – a autonomia defendida como essencial para que se possa investir em pesquisas sem aplicação prática imediata ou para incentivar a função do saber como motivação do espírito crítico.

A dicotomia é bastante similar à que sustenta a antiga divisão entre universidade humboldtiana e napoleônica. No primeiro caso, afirma-se que a universidade deve ser autônoma em relação ao Estado e à indústria, com ensino indissociável da pesquisa. No segundo caso, a inspiração vem de instituições voltadas para a formação de quadros para o Estado, com papel na formação técnica para a produção, e autonomia apenas relativa em relação ao governo. Até hoje existe – e insiste em nossas universidades – uma polarização entre um saber técnico, voltado para as demandas do setor produtivo e do poder político (e, portanto, não imune ao risco de compactuar com esse poder), e um saber desinteressado, voltado para fins civilizatórios e emancipatórios (ainda que, por vezes, mais preocupado em manter seu próprio sentido de pureza do que em dialogar com os problemas de nosso tempo).

A tensão entre ciências exatas e ciências humanas é um dos reflexos dessa polarização, pois algumas áreas das exatas são mais aplicáveis, como é o caso das engenharias, ao passo que o papel de instigar o pensamento crítico estaria nas mãos das humanas. Nos tempos atuais, quando nossos problemas são tão profundamente transdisciplinares, essa divisão pode parecer obsoleta, mas continua a vigorar no debate público. Não foi simples criar uma relação de confiança entre o público e os acadêmicos. É fato que a relação de confiança com o público assenta-se em pressupostos distintos nas humanas e nas exatas, justamente pela facilidade dos intelectuais das exatas de se apresentarem como experts. O cientista seria detentor do saber embasado, ao passo que o intelectual de humanas abordaria assuntos sobre os quais todo mundo tem algo a dizer. A divisão se dá quanto aos papéis sociais de cada um, mas também quanto aos critérios de legitimação dos diferentes saberes de que são porta-vozes. Hoje, contudo, essas diferenças importam pouco, pois até mesmo os enunciados científicos mais estabelecidos são contestados (como o fato de a Terra ser redonda). A reconquista da confiança é um desafio urgente de nossos tempos. Ainda que vá se dar por vias diferentes em cada área, as perdas colocam todos no mesmo barco.

Durante muito tempo, os cientistas conseguiram conquistar a confiança dos leigos com um ousado pedido de carta branca: quanto mais desinteressado, mais o saber científico serviria aos interesses da sociedade. Ao longo de boas décadas, o pedido foi atendido e a opinião pública teve uma confiança algo indiferente em relação aos rumos da ciência – contanto que se produzissem resultados. A promessa era de que o produto final valeria a pena, como foi o caso com o Sputnik. Mais do que fazer um igual, os Estados Unidos tinham a missão de enviar o homem à Lua. E entregaram a encomenda. Depois disso, a crise começou.

Juntando tecnologia de guerra e tecnologia espacial, ambas com sofisticadíssima demanda de inovações na comunicação, surgiu a invenção que abalaria definitivamente a antiga relação de confiança, o crédito que permitia ao saber científico fazer escolhas sem prestar contas a ninguém: a internet. Demorou até que a internet gestasse um novo tipo de intelectual, o sábio de redes sociais, que assombra não somente o Brasil, onde ganham ministérios, mas todo o mundo esclarecido. Universidades são atacadas em várias partes do mundo e se dão conta, em sobressalto, de que não se comunicam bem, não falam a linguagem certa. Mas o problema é mais grave. Desde os anos 1980, nomes como Jean Marc Levy Leblond, Bruno Latour, Isabelle Stengers e Donna Haraway vêm apontando para a necessidade de uma inteligência pública da ciência ou de uma ciência situada em seu tempo e seu meio. Não se trata somente de divulgação cientifica, pressupondo que, bem explicada aos não cientistas, a ciência vá recuperar sua carta branca. A saída vai além disso: passa pela criação de espaços em que seja possível a um público informado participar dos debates sobre os rumos da ciência; um meio exigente e culto com potencial para ir além da confiança indiferente que transfere aos cientistas o julgamento de prioridades que afetarão todo mundo.

Organismos transgênicos, aquecimento global, Projeto Genoma, novas tecnologias da informação e de fármacos são exemplos eloquentes de questões científicas que deveriam envolver uma participação ativa do público. Foi no vácuo de medidas para renovar a confiança, em bases mais democráticas, que floresceu a desconfiança radical incorporada atualmente por negacionismos e teorias da conspiração.

Parte significativa da sociedade manifesta insatisfação com os espaços protegidos da academia. Por trás do anti-intelectualismo de nossos tempos existe uma contestação da torre de marfim. Se repararmos bem, os sábios de internet não são anti-intelectuais. Ao contrário, eles têm seus próprios intelectuais, seus próprios veículos, seus próprios critérios – todos criados à margem dos mediadores oficiais e reconhecidos pelo poder acadêmico. Esse setor social se sente excluído dos espaços em que o poder intelectual se reproduz. Em razão desse ressentimento e investindo em antagonismos que atualizam uma verdadeira luta de classes pelo poder intelectual, eles foram conquistando, aos poucos, uma hegemonia paralela – e hoje chegam ao poder.

Com o leite derramado, não adianta reivindicar espaços protegidos e ascéticos, clamando pela volta de uma confiança cega nos acadêmicos e em seus modos de aferição da verdade ou apelando para argumentos de pureza e excepcionalidade do conhecimento científico. A saída não é andar para trás, e sim propor um novo acordo a ser estabelecido entre acadêmicos, experts, políticos, jornalistas, internautas, youtubers, think tanks, ONGs e tantos atores que têm algo a dizer sobre temas-chave que envolvem o conhecimento. A reconciliação entre exatas e humanas terá um papel estratégico nessa empreitada. Se, por um lado, desconfiamos do poder econômico e do contágio de um saber produzido para confirmar interesses econômicos ou políticos, por outro já não é mais suficiente reivindicar um saber puro e desinteressado. Esse é o dilema que assola nossas universidades e que precisamos vencer, deixando para trás a separação anacrônica entre modelos humboldtiano e napoleônico (um debate do século XIX!).

Universidades mais diversas nos dão grande vantagem nessa tarefa. Resta irmos além da democratização do acesso e atingirmos os padrões epistemológicos em vigor. Não dá mais para manter divisões rígidas de saberes, critérios disciplinares, hierarquias acadêmicas e depois ir “conquistar” um público amplo e leigo no YouTube. As redes sociais também são produtoras dos saberes de nossos tempos, não apenas consumidoras dóceis. Negligenciar essa insatisfação pode aumentar o ostracismo e o descrédito das opiniões acreditadas pelas instituições do saber intelectual – justamente na hora em que o que se exige de nós é sair dos nichos e das bolhas.

* Tatiana Roque é professora da UFRJ, pesquisadora em Filosofia e História da Ciência. Autora de História da Matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas (Zahar, 2012).

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