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quinta-feira, 28 março, 2024

‘Instabilidade do Mercosul citada por Bolsonaro foi criada por sua própria gestão’, diz especialista

© Foto / CC BY 2.0 / Palácio do Planalto / Clauber Caetano

Sputnik – Presidente voltou a fazer comentários sobre o Mercosul dizendo que se o Brasil “estivesse livre do bloco” seria melhor, e apontou que a organização sofre “instabilidades”. A Sputnik Brasil entrevistou analista para saber até que ponto os argumentos do presidente procedem com a realidade mercosulina.
De tempo em tempo, o governo Bolsonaro emite declarações sobre o Mercosul não muito amigáveis e bastante focadas no fato de que se o Brasil não integrasse o bloco sul-americano, talvez tivesse mais êxito em sua economia.
Tal argumento foi proferido mais uma vez pelo próprio mandatário, Jair Bolsonaro (PL), nesta segunda-feira (10), quando disse que o Mercosul “sempre foi instável” e tem “prós e contras”, conforme noticiado.
Ao mesmo tempo, não é só o chefe do Executivo que tem esse pensamento, o chefe da Economia, Paulo Guedes, também já deixou claro que o Brasil poderia fazer acordos comerciais sem precisar da autorização de países-membros do Mercosul e que uma maior flexibilização do bloco é necessária.
Sputnik Brasil entrevistou Roberto Uebel, professor de Relações Internacionais da ESPM Porto Alegre, para saber até que ponto as instabilidades apontadas pelas autoridades brasileiras são reais e se corre o risco de, futuramente, o país se desprender do Mercado Comum do Sul.
LIX Cúpula de Chefes de Estado do MERCOSUL e Estados Associados (videoconferência), 17 de dezembro de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 12.01.2022
LIX Cúpula de Chefes de Estado do MERCOSUL e Estados Associados (videoconferência), 17 de dezembro de 2021
Uebel discorda da instabilidade apontada por Bolsonaro uma vez que o Mercosul é um bloco consolidado, o qual completa 31 anos este ano, e que as variáveis que ocorrem são comuns em qualquer “outra organização regional de caráter internacional. Sempre há períodos de maior integração e de maior afastamento dos seus membros, de forma natural, como podemos ver recentemente entre países da União Europeia (UE), por exemplo”.

“Dizer que é instável significa que sempre esteve mais próximo da instabilidade quando na verdade isso não se verifica. Nós temos hoje uma série de acordos e tratados em comum no âmbito do Mercosul […] em diversos campos que trazem verdadeiros avanços para integração de seus Estados-membros.”

Entretanto, o especialista ressalta que os benefícios só acontecem quando os integrantes se comprometem a cumprir “com as cartas de princípios e os tratados constitutivos da organização”.
“A situação do setor de exportação do Brasil estaria muito pior se não tivéssemos o bloco do Mercosul e as parcerias estratégicas com os demais países que ele proporciona.”
Em termos das vantagens e desvantagens, um ponto negativo levantado pelo professor é o “andamento e o funcionamento de suas instituições que ainda dificultam uma plena integração do bloco”.
Cerimônia de abertura da III Conferência de Comércio Internacional e Serviços do Mercosul, com a presença do vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, realizada na sede da Confederação Nacional do Comércio, no Rio de Janeiro, 5 de novembro de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 12.01.2022
Cerimônia de abertura da III Conferência de Comércio Internacional e Serviços do Mercosul, com a presença do vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, realizada na sede da Confederação Nacional do Comércio, no Rio de Janeiro, 5 de novembro de 2021
“Temos, por exemplo, a questão da unificação de tarifas para uma série de produtos, mas ainda temos barreiras para exportação de calçados no âmbito do bloco, principalmente no caso de Brasil e Argentina.”
Ao mesmo tempo, Uebel acredita que os conflitos políticos internos entre as nações por ideologias distintas pesam na fluidez da integração.
“No Brasil temos um governo de extrema direita, se pudermos chamar assim, enquanto temos governos mais progressistas, como o de esquerda na Argentina e como os de centro-direita no Paraguai e Uruguai que têm um diálogo, e nisso o Brasil fica muito distante. Quando Bolsonaro fala de uma instabilidade no bloco, na verdade, ele encontra essa instabilidade a partir de uma política externa criada por seu próprio governo de afastamento dos Estados-membros”, analisa o especialista.
Jair Bolsonaro e o ex-presidente da Argentina, Maurício Macri, se abraçam na cúpula do Mercosul em 2019. Durante as eleições na Argentina no mesmo ano, Bolsonaro torceu publicamente a favor de Macri causando mal-estar entre ele e o vencedor atual mandatário do país, Alberto Fernández (foto de arquivo) - Sputnik Brasil, 1920, 12.01.2022
Jair Bolsonaro e o ex-presidente da Argentina, Maurício Macri, se abraçam na cúpula do Mercosul em 2019. Durante as eleições na Argentina no mesmo ano, Bolsonaro torceu publicamente a favor de Macri causando mal-estar entre ele e o vencedor atual mandatário do país, Alberto Fernández (foto de arquivo)

Acordo com a União Europeia

Mesmo que o acordo entre Mercosul-UE tenha sido concluido durante o governo Bolsonaro, Uebel afirma que ele foi “fechado, mas não entrou em vigor e dificilmente entrará neste ano”, e que as políticas do governo colaboram para que não se tenha efetivado o pacto.
Os países europeus, ao observarem as políticas da atual gestão para o enfrentamento do desmatamento e para preservação do meio ambiente, não veem uma condução competente dessas questões “que são temas caros para UE e que, por isso, os países europeus exercem pressão e não ratificam o acordo”.

“É um acordo aprovado, mas não entrou em vigor em virtude das políticas do governo brasileiro que se afastou muito dos países europeus durante a atual administração. […] A gestão Dilma Rousseff [PT] se afastou da cena internacional, incluindo a comunicação com a UE, o [Michel] Temer [MDB] se aproximou realizando várias viagens internacionais, mas o Bolsonaro se afastou em demasia, inclusive tendo atritos com o presidente da França, Emmanuel Macron.”

relutância europeia em colocar o acordo em vigor também acontece porque os países buscam uma agenda “cada vez mais verde”, visto que percebem nesta dinâmica a chance não só de preservar o ambiente, mas também de crescer sua economia ao investir em fontes alternativas de energia.
O presidente do Brasil Jair Bolsonaro gesticula durante o lançamento do programa Brasil Fraterno, no Palácio do Planalto em Brasília, Brasil, 11 de novembro de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 25.11.2021

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Livre comércio fora do bloco

Sobre os acordos bilaterais executados por países integrantes do bloco que não passam pelo Mercosul, como a intenção do Uruguai de fechar acordo diretamente com a China, Uebel afirma que pactos neste estilo são normais, e que o Brasil também tem vários acordos com Pequim que não transitam através do bloco.
“A partir do momento que o Paraguai, Estado-membro, reconhece Taiwan como país, fica muito difícil para o Mercosul fechar um acordo com a China, portanto, o Uruguai percebe uma possibilidade de ter benefícios próprios andando fora da organização.”
Esse movimento “por fora” não contribuiria para uma saída do Brasil do Mercosul “pelo o menos agora em 2022”, segundo o especialista. No entanto, o que se evidencia, é uma “certa estagnação da agenda de integração do bloco que é substituída por outras agendas”.
O presidente do Uruguai Luis Lacalle Pou durante cúpula de 30 anos do Mercosul - Sputnik Brasil, 1920, 12.01.2022
O presidente do Uruguai Luis Lacalle Pou durante cúpula de 30 anos do Mercosul
“Bolsonaro tentou levar adiante a agenda do Prosul [Foro para o Progresso da América do Sul] e não progrediu porque todos os líderes políticos que ratificaram a criação do foro praticamente não estão no poder hoje […] ou seja, a agenda de integração mínima que o Brasil se propõe não se executa“, pontua.
Ainda se tratando de integração, é possível observar o crescimento da Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), que vem prosperando desde o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, segundo Uebel.
“Mas eu não vejo o fim do Mercosul, […] ele continuará, pois tem um propósito muito além do que a integração econômica, ele promove também uma integração política, social, cultural, educacional, questões de saúde e imigrações, temos hoje inclusive uma placa comum nos veículos, reconhecimento automático de diplomas, etc.”
Portanto, o especialista não vê “em um horizonte próximo” o termino do bloco e salienta que, de acordo com o resultado das eleições no Brasil, pode ser que ele ainda se fortifique dependendo da política externa da nova gestão, e cita o ex-presidente Lula e o ex-governador, Ciro Gomes (PDT), como sendo candidatos que manteriam essa aproximação do país com o bloco.
Em São Paulo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), posa com apoiadores e funcionários de um restaurante após jantar com políticos, incluindo o ex-governador paulista, Geraldo Alckmin (sem partido), em 19 de dezembro de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 20.12.2021

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Relações exteriores atuais do Brasil

Em relação ao desenvolvimento da política externa atual, mesmo após a polêmica gestão do chanceler Ernesto Araújo, dizer que o Brasil voltou ao cenário internacional, do ponto de vista de Uebel, é um equívoco, visto que acontece “uma total desconexão do Brasil com os principais temas prioritários da agenda internacional e também, em certa medida, há um descolamento do país da própria região”.

“O país se desconecta da agenda política regional e tece parcerias muito específicas com nações que não eram parceiras tradicionais do Brasil como a Hungria, Israel, assim como uma tentativa com Taiwan no começo do governo e depois com a vitória do Biden um afastamento muito grande do país dos EUA. Vale lembrar que Bolsonaro foi o último presidente a parabenizar Joe Biden pela sua vitória.”

O especialista salienta que o quadro internacional brasileiro é muito diferente do que já foi anteriormente, quando o país tinha grande representatividade internacional.
“No seu acumulado histórico, o Brasil foi um dos grandes atores internacionais, desde a criação das Nações Unidas, em 1945. Tanto é que, até hoje, continua abrindo a Assembleia Geral da ONU, mas nesses últimos anos perdeu muito desse prestígio. No entanto, não diria que essa é uma característica única do governo Bolsonaro, começou na Dilma, mas agora há uma consolidação dessa falta de protagonismo do Brasil”, complementa.

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