De acordo com o estudo encomendado pela Pesticide Action Network (PAN-Europe), uma coalizão de associações da sociedade civil de países europeus, intitulado “Pesticidas da UE, proibição de exportação: quais podem ser as consequências?”, o Brasil, em 2018, foi apontado, entre os países em desenvolvimento, como principal importador de pesticidas proibidos na Europa.
A investigação mostra que o Brasil importou, na ocasião, 10.080.462 quilos de pesticidas proibidos na União Europeia, o equivalente a 36%. Entre os 18 países que mais fizeram esse tipo de transação, seis são sul-americanos. Na lista, além do Brasil, estão Chile, Peru, Argentina, Colômbia e Equador.
“A Europa está enriquecendo às custas dos países sul-americanos. Eu vou dar dois dados muito claros disso. O primeiro é de que, nos últimos dez anos, o uso de agrotóxicos na União Europeia diminuiu cerca de 3% e no Brasil, no mesmo período, aumentou 78%“, argumenta Larissa Mies Bombardi, professora do departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora associada do Centro de Estudos Sobre a América, a Ásia e a África (CESSMA) da Universidade de Paris e autora de “Agrotóxicos e colonialismo químico” (2023).
A professora revela, também, que a América Latina é o lugar do mundo em que
mais cresce o uso de agrotóxicos. “
Nos últimos 20 anos, o uso de agrotóxicos na América Latina aumentou 143%“, diz.
“Nenhum outro lugar do mundo aumentou tanto assim o uso de agrotóxicos. A Europa enriquece às custas de países sul-americanos e o Brasil é o principal deles”, completa.
O relatório da PAN-Europe mostra que a União Europeia foi a principal exportadora de pesticidas em 2022. Ao todo,
714.000 toneladas de defensivos agrícolas foram exportados, em valor avaliado em
6,6 bilhões de euros (R$ 41,11 bilhões). Desse montante,
81.615 toneladas de 41 pesticidas proibidos foram exportadas para uso agrícola em outros países.
Nova Lei dos Agrotóxicos ou ‘PL do veneno’?
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva,
sancionou, com vetos, no final do ano passado, a Lei 14.785, de 2023, que ficou conhecida como Nova Lei dos Agrotóxicos. A norma é originária do projeto de lei (PL) 1.459/2022, proposto inicialmente pelo então senador Blairo Maggi em 1999 e modificado na Câmara dos Deputados na forma de um substitutivo.
Em maio deste ano, o Congresso Nacional derrubou parte dos vetos do chefe do Executivo federal e a lei passou a ter vigência.
O tema dos agrotóxicos também está diretamente ligado à
Reforma Tributária, uma vez que não foram incluídos no Imposto Seletivo pelo governo federal e pela Câmara dos Deputados. Além disso, uma reportagem
publicada pelo O Joio e O Trigo, em parceria com a Fiquem Sabendo, mostra que a reforma prevê que os agrotóxicos
recebam 60% de descontos no Imposto de Valor Agregado (IVA).
Eliane Kay, diretora executiva do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), entende que a Lei, resultante de um PL que tramitou por mais 20 anos no Congresso Nacional, “foi amplamente debatida com a sociedade civil organizada“.
“O texto aprovado reflete o anseio do setor por uma regulamentação mais moderna sem nenhum prejuízo do rigor técnico e da segurança ao trabalhador rural, à população e ao meio ambiente. O uso de defensivos agrícolas e o sistema regulatório brasileiro são rígidos e seguem os padrões de órgãos internacionais”, diz.
Por outro lado, segundo Bombardi, o projeto de lei, que tem recebido a alcunha de
PL do Veneno, “
rasgou o princípio de precaução que havia na Lei de agrotóxicos de 1989“.
A especialista comenta que, enquanto a Lei de 1989 diz que se “uma substância tiver indícios de que possa ser cancerígena, de que possa trazer efeitos sobre a formação dos fetos, de que cause problemas hormonais, essa substância pode ser revista e pode vir a ser banida”, enquanto a Nova Lei dos Agrotóxicos diz “que se determinada substância trouxer risco inaceitável de câncer”. Para ela, a ideia de risco inaceitável pode abrir precedentes do que pode ser ou não tido como aceitável.
“O que é risco inaceitável de câncer? Do que a gente tá falando? Cria-se uma janela jurídica enorme”, argumenta.
Além disso, a professora e pesquisadora destaca outra mudança: se antes os ministérios da Saúde, Agricultura e Meio Ambiente tinham equivalência na decisão ou não da aprovação do uso de determinada substância no Brasil, agora, com a nova lei, a competência para registros de pesticidas caberá apenas ao Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA).
“Isso também coloca em risco, obviamente, que substâncias que são nocivas ao meio ambiente, à saúde humana, possam ser aprovadas”, salienta.
Lobistas no páreo?
O tema é fruto de discussões entre setores políticos, econômicos e de saúde. Um relatório publicado neste mês pela Fiquem Sabendo (organização sem fins lucrativos especializada no acesso a informações públicas), mostra que o governo federal, no período de tramitação e aprovação do PL e da Reforma Tributária, recebeu agentes privados identificados como lobistas, conforme a definição de lobby adotada no relatório.
Segundo a investigação, o governo federal teve 752 reuniões com participação de ao menos um lobista ou empresa que defende ou produz agrotóxicos entre 18 de outubro de 2022 e 5 de agosto de 2024.
Conforme a própria organização, a análise tem como intuito problematizar “a atuação e influência
exercida por lobistas dos agrotóxicos, que integram o setor do agronegócio, nos espaços de poder público entre 2022 e 2024, considerando ainda o embate entre interesses empresariais e a saúde coletiva na elaboração de políticas de controle e redução dos agrotóxicos”.
O lobby é “objeto de discussão parlamentar já há muitos anos”, afirma o cientista político e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
Paulo Roberto Figueira Leal. A Câmara dos Deputados aprovou, em 2022, um
projeto de lei que regulamenta as atividades de lobby, mas a proposta está parada no Senado.
O projeto, segundo o cientista político, prevê uma série de obrigações”, como registro em agenda do encontro com agentes públicos e clareza de identificação de quem os lobistas estão representando. A proposta, entretanto, criou insatisfação em parte do segmento, revela Leal.
“Algumas instituições são favoráveis, outras são contra, mas eu acho que [o que] interessa à sociedade brasileira é quais são as obrigações no sentido de aumentar a transparência desses instrumentos de pressão sobre o parlamento, que, obviamente, representam riscos”, analisa.
Uso de agrotóxicos no Brasil
Dados disponibilizados pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) ao relatório da Fiquem Sabendo mostra um aumento considerável da aprovação de agrotóxicos em território brasileiro desde 2000. No ano de 2017, foi a primeira vez que o país registrou mais de 400 substâncias autorizadas.
Entre 2021 e 2023, 1.769 produtos foram liberados.
A diretora executiva da Sindiveg, Eliane Kay, ressalta que “todo produto utilizado no Brasil foi avaliado pelas autoridades regulatórias nacionais e atende aos requisitos legais vigentes, que são tão rígidos quanto os de qualquer outro país de relevância agrícola mundial”.
Ou seja, ao serem avaliados e liberados
para comercialização, são passados por uma série de estudos, como “análises toxicológicas e ecotoxicológicas conduzidas sob boas práticas laboratoriais e avaliadas pelas autoridades regulatórias (Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e Ministério da Agricultura e Pecuária – MAPA), segundo os critérios estabelecidos na legislação”, afirma.
Apesar dos processos legais, pesquisadores questionam alguns padrões brasileiros. Citando o livro “Agrotóxicos e colonialismo químico”, a professora associada do Instituto de Biologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Evelize Folly das Chagas, destaca que o tebuconazol, proibido na Europa, no Brasil, “é permitido estar presente na água potável em torno de 1.800 vezes mais do que o que está estabelecido na União Europeia“.
“Já foi constatado que ele causa problemas de má formação fetal e no sistema reprodutivo”, argumenta.
“O glifosato, que foi considerado potencialmente cancerígeno para seres humanos em 2015 pela Organização Mundial da Saúde, a gente autoriza um resíduo dessa substância 5 mil vezes maior na água, na água potável no Brasil, do que na União Europeia”, ressalta Bombardi.
Quando a Nova Lei de Agrotóxicos foi aprovada pelo Senado e seguiu para sanção do
presidente da República, o
Instituto Nacional de Câncer (INCA) publicou uma nota em oposição ao projeto, afirmando que o Senado ignorou uma consulta pública na qual 80% dos respondentes votaram contra o PL.
No posicionamento, além de se opor à norma, o INCA ressaltou “os
impactos nocivos à saúde humana e ambiental decorrentes da exposição a esse contaminante químico“, afirmando que “em torno de 80 a 85% dos
casos de câncer são decorrentes de exposições a agentes químicos, físicos ou biológicos presentes no meio ambiente”.
Como cada país segue sua própria legislação, Bombardi afirma que a COP30 tem um papel central nessas discussões e que ela, enquanto coordenadora da International Pesticides Standard Alliance (IPSA), pretende propor a discussão da necessidade de um marco regulatório internacional para agrotóxicos.
“Temos hoje três convenções mundiais para substâncias tóxicas, mas nenhuma delas é diretamente endereçada a agrotóxicos“, argumenta, destacando diferenças entre o que vale para a Europa e o que a Europa acha que vale para o resto do mundo.
“Do mesmo modo que durante o período colonial histórico, na Europa, não era tolerada a escravização de pessoas [atividade econômica rentável nas colônias das Américas], hoje, na Europa, algumas substâncias, como atrazina, que está ligada a diversos tipos de câncer, mal de Parkinson, infertilidade, malformação fetal, são substâncias proibidas na União Europeia há 20 anos, e essas substâncias continuam sendo vendidas pela União Europeia para os países do Sul [Global] e o Brasil é um dos principais consumidores”, finaliza.