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quarta-feira, 27 março, 2024

Haroldo Furtado: jornalismo e futebol no Amazonas

José Bessa Freire

“Quando a Morte conta uma história, você deve parar para ler”.

Markus Zusak. A menina que roubava livros. 2017.

Conheci o Haroldo quando ambos nos iniciávamos no jornalismo. Repórter de O Paiz, no Rio, fui enviado em dezembro de 1968 ao Amazonas pelo diretor de redação Joel Silveira, para cobrir a morte do padre Calleri, que havia invadido o território Waimiri-Atroari para facilitar a abertura da estrada BR-174. Haroldo era repórter da Editoria de Esportes de A Crítica, chefiada por Belmiro Vianez, empresário português emigrado de Póvoa de Varzim. Apesar de focado no futebol, Haroldo me deu contatos com militares e indigenistas, que haviam transportado para Manaus, em um avião da FAB, os ossos e os crânios do padre e de mais oito membros da expedição.

Dizem, dizem, eu não sei, que Haroldo, autor de excelentes textos, era quem escrevia as colunas assinadas pelo Belmiro, responsável também pelo programa “A Hora da Onça” na Rádio Difusora. Um dia em que o jogo São Raimundo x Sulamérica terminou em pancadaria, Belmiro berrou na rádio: “Sangue vermelho no Parque Amazonense”, equivalente ao “Tá lá um corpo estendido no chão”. Quando um ouvinte pediu detalhes por telefone, Belmiro confirmou que o sangue não era azul, apesar de alguns jogadores serem príncipes e confessou publicamente, no ar, a existência do seu alter ego:

– Eu não vi. Eu não estava lá. Mas o Haroldo viu que o sangue era mesmo vermelho e me contou tudo.

Esse era o Haroldo. Ele via e contava tudo. No nosso primeiro e fugaz encontro, tomamos umas e outras no bar do Carmona, na rua Lobo D´Almada. Lembro que boa parte da conversa girou em torno do Nacional Futebol Clube, campeão de 1968 com Marialvo, Berto, Téo, Rolinha, Pretinho, Pepeta. Ele conhecia os jogadores, tanto os daquele momento, como os do passado distante, inclusive por seus apelidos folclóricos: Pololoca, Mão-de-Grude, Tongato, Pau Fedendo, Pau Vestido, Cururu, Fernando Bostinha, Cipó de Fogo, Passa-Fome,Peguei-te, Bololô e tantos outros que fizeram parte de narrativas publicadas na primeira revista esportiva mensal do Amazonas – A Bola.

O passe do PM

Nessa época, em que Manaus tinha pouco mais de 300 mil habitantes e vivia os primeiros momentos da criação do polo industrial da Zona Franca, os jornalistas Jefferson de Souza, Haroldo Furtado e Manuel Muniz criaram A Bola, chutando-a para o leitor amazonense. A revista bombou. Andei escrevinhando e publicando algo em suas páginas, como a matéria sobre o Rolinha, depois que uma torcedora do Nacional gritou no estádio: – “Rolinha, meu amor, faz um gol pra mim” e outra sobre o gordo Gonzalito, o paraguaio, então técnico do Sulamérica, que gostava de beber “cueca cuela” e praguejava “puerra” a cada instante.

A partir daí, construímos sólida amizade, reforçada quando logo regressei para trabalhar em Manaus, em janeiro de 1969. Convivemos então mais de oito meses quase diariamente na redação do jornal, de onde saíamos aos sábados, depois de cansativas jornadas de trabalho, para o Centro de Lazer e Recreação conhecido como “Lá Hoje”. Era uma turma boa: João Rodrigues – o Pinducão, iniciando carreira de repórter fotográfico, Geraldão – o Come-quieto, Tuta – o Dançarino, Cado – o Gostosão, às vezes Irandir e Abrahim Aleme e até o poeta e jornalista Luiz Pucu, que estava sempre em todas com sua máquina fotográfica ZENIT.

Haroldo gostava de contar alguns lances de futebol como naquele jogo Rio Negro x Nacional no Parque Amazonense. A bola ia saindo pela lateral, quando o atacante Pepeta correu para alcançá-la. Não deu tempo. Mas um policial da PM, torcedor do Naça que estava de serviço na beira do campo, devolveu a bola com um “biquinho”, um leve e discreto toque, permitindo que o atacante fizesse o gol no Rio Negro. Aviso que, qual Belmiro, nada vi nem ouvi, mas o Geraldão ouviu o Haroldo contar e me repassou. Parece que tem até foto feita pelo Pinducão.

O gol do tacacá

A outra história que o nosso repórter contava, mas essa Belmiro não assinou embaixo, aconteceu no Estádio da Colina em outro jogo. O mesmo Pepeta saiu do campo com bola e tudo pela linha de fundo, deu um “chapéu”, um “banho de cuia” na vendedora de tacacá que ficava atrás da trave, com tanta rapidez, que o árbitro validou seu gol de cabeça. Felizmente não havia VAR naquela época, só a VAR-Palmares em luta contra a ditadura empresarial-militar.

No jogo Seleção Brasileira 4 x 1 Seleção do Amazonas no Vivaldão, inaugurado em abril de 1970, foi tirada uma foto histórica do filho do editor Jeferson de Souza, o cantor Paulinho Kokai, com cinco anos, no colo do Pelé, publicada na revista A Bola com texto de qualidade do Haroldo, se a memória não me falha outra vez.

Falar de Haroldo Furtado de Paiva nos leva imediatamente ao futebol e ao jornalismo no Amazonas, que ele tanto amava, embora depois tenha explorado outros campos da mídia impressa, atuando como assessor de comunicação dos governadores Gilberto Mestrinho e Amazonino Mendes. O fato de eu criticar depois em minha coluna os dois próceres políticos, nunca interferiu em nossa amizade e no respeito mútuo. Aquela era uma época em que podíamos pensar diferente e discordar sem cultivar ódios.

Quando retornei do exílio, em dezembro de 1976, e ainda não havia feito concurso para a Universidade do Amazonas, Haroldo me indicou para trabalhar numa agência de publicidade como redator, o que não funcionou por não estar eu vocacionado para tal tarefa. Mas ficou o gesto solidário do amigo querido. Logo depois, ele montou a pequena gráfica Uirapuru, que não cobrou a impressão do livro do Tuta sobre o bairro de Aparecida.

O dia do adeus

Na quinta-feira (16), aos 73 anos, Haroldo nos disse adeus depois de passar uma temporada, enfermo, no Hospital da Fundação Centro de Controle de Oncologia do Estado do Amazonas (FCECON). Deixa esposa, dois filhos, muitas saudades, amigos, narrativas e lembranças fortes sobre sua presença na imprensa amazonense. Não sei se deixou documentos, ignoro se existem arquivados os números da revista A Bola, que bem merecem os cuidados de conservação do Laboratório de Imprensa no Amazonas (LHIA) da Universidade Federal do Amazonas, aos cuidados dos historiadores Luís Balkar Pinheiro e Maria Luiza Ugarte Pinheiro.

Quando jovem, Haroldo Furtado teve um acidente de moto quase fatal, foi salvo pela palavra, à semelhança de Liesel Meminger, a menina que roubava livros, redimida também pela palavra nas três vezes em que encontrou a morte.  De Haroldo, fica a lembrança de muita generosidade, uma delas o gesto tentando socorrer o amigo desempregado que voltava do exílio. Nesta altura do campeonato, só nos resta colecionar tais lembranças, até o dia em que a lembrança seremos nós. À família enlutada, os nossos sentimentos.

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