Foto: Valter Campanato ABr
Não há qualquer dúvida em relação à pressão feita pelo ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, junto ao ex-ministro da Cultura Marcelo Calero para que o Iphan liberasse a construção de um prédio de 30 andares no entorno do forte histórico de Salvador.
Por Andrei Roman*, no El País
Também não há dúvida em relação aos interesses que motivaram essa pressão: o ministro adquiriu um apartamento no empreendimento imobiliário, avaliado em mais de 2,6 milhões de reais. Como os fatos já admitidos e verificados não poderiam enquadrar o tráfico de influência e o abuso de poder de forma mais clara, a lógica da permanência do Geddel no seu ministério não tem nada a ver com a presunção da inocência ou do suposto desencadeamento de uma investigação séria sobre o caso.
Em vez disso, estamos assistindo a mais uma manifestação da estratégia mais consagrada da política brasileira dos nossos tempos: deixando a poeira baixar. Geddel está sendo investigado por uma Comissão de Ética. Um membro pediu vista do processo, depois voltou atrás. De qualquer forma, uma decisão sobre o caso pode demorar várias semanas e mesmo condenado Geddel provavelmente continuará no cargo. A aposta do governo é que à medida que a cobertura midiática for diminuindo e outros eventos tomem espaço no debate público, salvar Geddel será bastante fácil. Trata-se, obviamente, de uma peça chave da hierarquia do poder; e a amizade pessoal e proximidade política que une Geddel e Michel Temer há décadas deve prevalecer.
Na política brasileira, deixar a poeira baixar é uma estratégia que funciona melhor que qualquer outra. Funciona tão bem, de fato, que vira quase imperceptível. É só considerar, por exemplo, o segundo evento mais importante da semana passada: Romero Jucá assumiu formalmente a liderança do governo no Congresso Nacional. Menos de seis meses atrás, Jucá, o principal articulador político do presidente Temer, se via obrigado a abandonar o Governo depois do vazamento das gravações em que estava defendendo um “pacto” com o Judiciário para “estancar a sangria” da Lava Jato. Na época, especulava-se que as gravações poderiam resultar no afastamento de Jucá do cargo de senador ou até na derrubada do governo recém instalado. Mas para a grande maioria, este episódio já foi remetido aos porões do esquecimento e, desta forma, Jucá livrou-se mais uma vez do peso do seu passado.
Alguém ainda lembra que o Jucá começou sua carreira política como indicação do Marco Maciel? Que enquanto presidente do FUNAI, o órgão encarregado pela defesa dos direitos indígenas, os territórios ianomâmis foram reduzidos em 75%? E que, pelo seu bom desempenho em defesa de garimpeiros durante o governo Sarney, o pernambucano Jucá acabou nomeado governador da área que viria a se tornar o Estado de Roraima, hoje por ele representado no Senado Federal?
Aos seus 97 anos, Aldo Mongiano, um bispo italiano que dedicou sua vida para lutar contra o genocídio dos ianomâmis, ainda lembra com muita clareza o papel central de Jucá na devastação da Amazônia. Quantos brasileiros poderiam dizer o mesmo? Os brasileiros se esquecem fácil demais. E os seus líderes aprenderam a aproveitar, esperando pacientemente depois de cada tropeço, enquanto a poeira baixa. Lula esperou a tempestade do mensalão passar e conseguiu a reeleição. Geraldo Alckmin esperou que as chuvas enchessem os reservatórios esvaziados pelo descaso – ou será que foi pela sede de ganhar mais uma eleição? Aécio espera que a Lava Jato passe sem ficar preso na onda. Igualmente Serra. Igualmente Temer. Igualmente mais da metade do Congresso.
Quanto maior o tamanho da crise, maior a necessidade de a gente esquecer para que tudo possa ficar igual. Gore Vidal uma vez falou: “Moramos nos Estados Unidos da Amnésia. Aprendemos nada porque lembramos de nada.” É a situação na qual nos encontramos. Na espera perpétua do esquecimento, a moralidade da nossa política é a moralidade da amnésia. Tudo que as pessoas esquecem está perdoado. De fato, tudo que as pessoas esquecem nem sequer aconteceu. O compasso moral da política brasileira se resume à tentativa de diminuir, com um discurso cheio de falsidades açucaradas, o incômodo cognitivo gerado pela corrupção sistêmica que lubrifica a governabilidade.
Moramos nos Estados Unidos da Amnésia. Aprendemos nada porque lembramos de nada
Haveria obviamente a opção de combater este incômodo através do combate frontal aos atos ilícitos ou de uma autêntica reforma política. Mas para os dinossauros do sistema, essas opções nunca farão nenhum sentido. Nas palavras do Geddel Vieira Lima: “Deixar o cargo por isso? Pelo amor de Deus!” Confrontado com as evidências do tráfico de influência e o abuso de poder por ele cometidos, Geddel vai negar o óbvio. Vai afirmar que desmantelar o patrimônio histórico de Salvador em troca da sua jacuzzi no 23º andar, com vista para o mar, é absolutamente essencial para gerar emprego num tempo de crise. Vai postergar qualquer decisão definitiva sobre o ocorrido, esperando que a neblina do tempo tome conta gradualmente da consciência coletiva. Na mente do Geddel, entregar o cargo seria uma resposta nada adequada. No final das contas, já que nós em seguida nos esqueceremos e nos acomodaremos, qual seria o bem social decorrente do Geddel parar de ser Geddel?
Em outubro passado, o eleitorado resolveu punir o PT. Com a economia em queda livre e o desemprego aumentando de forma galopante, esta foi sim uma vez em que as pessoas finalmente lembraram e agiram em decorrência disso. Lembraram das promessas falidas da eleição que Dilma teve a má sorte de ganhar. Lembraram também de uma promessa mais antiga, aquela de um partido que, por ser do povo e pelo povo, se diferenciaria de forma radical dos outros; uma promessa que acabou afogada no esgoto da Lava Jato. Mas quando a moralidade da amnésia domina, o ato de lembrar um fato por si só vira imoral. Vira imoral por ser arbitrário.
Quando nos esquecemos da maioria das coisas, lembrar só de algumas acaba gerando uma situação de patente injustiça. Os partidos com o maior número de envolvidos na Lava Jato, o PP e o PMDB, se fortaleceram ainda mais nas eleições municipais. Inúmeros prefeitos acusados de graves crimes de corrupção se elegeram. Se for lembrar só da corrupção de alguns para punir somente aqueles, esquecer e perdoar a de todos seria talvez mais justo. Certamente não seria uma saída. Mas será que tem saída alguma deste calvário?
A moralidade na política brasileira se assemelha a um deserto. De vez em quando, uma tempestade levanta ao céu mais uma nuvem de areia. Mas logo depois toda areia cai para baixo. As dunas mudam um pouco de contorno mas na essência tudo fica igual. E nada cresce.
Andrei Roman – Ph.D. em Ciência Política pela Universidade de Harvard, é sócio da plataforma Atlas Político