Guatemala (Prensa Latina) Nove ataques armados a seis delegacias da Polícia Nacional Civil (PNC) em menos de 24 horas, três policiais mortos e oito feridos, mais um civil feriado, ativaram os alarmes e alentam à controvérsia na Guatemala.
Enquanto o Governo faz questão de que se trata de um contra-ataque das ligas, após desarticulação de uma centena de estruturas do bairro 18, várias vozes recordam que faz tempo estes grupos criminosos são utilizadas como braço armado cada vez que se trata de infundir terror à população.
Em qualquer caso vale considerar que a blitz iniciada na segunda-feira 20 de março na noite contra postos policiais de algumas zonas da capital, e do departamento ocidental de Quetzaltenango, surtiu o efeito de cortina de fumaça por trás da qual ficaram certos fatos que remeteram ao Governo.
De 5 a 11 de março Guatemala estremeceu-se ao compasso de marchas em massa de camponeses, indígenas, professores e mulheres, cujas demandas apontaram à urgência de mudar o modelo econômico e patriarcal prevalecente, bem como a conseguir a renúncia do presidente Jimmy Morales.
Este movimento cívico cobrou vigor a raiz das incoerências relativas ao incêndio no abrigo estatal Virgen da Asunción, de San José Pinula, onde eram frequentes os maltratos e violações sexuais a menores de idade, além da provável operação de uma rede de prostituição e tráfico de pessoas.
A morte de 40 meninas no albergue a cargo da Secretaria de Bem-Estar Social da Presidência (SBS) mobilizou um povo inteiro ávido de justiça – sem distinções religiosas, ideológicas ou de outro tipo- e a boa parte do mundo.
Ao mesmo tempo, alentou os receios a respeito da incapacidade do presidente para governar e de seu culpabilidade nos fatos, o que motivou inclusive a apresentação de denúncias legais em sua contra por tortura, execução extrajudicial, abuso de autoridade e incumprimento de deveres.
Ainda que falta muito por esclarecer no caso, e mais culpados por capturar, a tragédia é considerada um crime de Estado, depois que se conheceu o modo cruel no qual atuaram os policiais com respeito às vítimas.
O escândalo provocado pelo incêndio no centro de acolhida chegou no ponto que presidentes de diferentes países e até o Papa Francisco expressaram suas condolências e pediram que fossem realizados esforços para encontrar aos responsáveis por tamanho massacre.
Os gritos de ‘Foi o Estado’ ou ‘Foi Jimmy Morales, Eu não tenho presidente’, entre outros, ressoaram na praça da Constituição, que de forma consecutiva recebeu a milhares de pessoas empenhadas em demonstrar seu luto e conseguir uma resposta certeira das autoridades ao ocorrido em 8 de março.
Porém, quando a cidadania chorava às meninas do Virgen da Asunción, o presidente aproveitou para vetar a lei destinada a dignificar às parteiras e o Congresso avançou em sua agenda pró-empresarial, com mordomias fiscais para os pecuárias.
Também no meio do duelo apareceram propostas orientadas a afiançar a impunidade na Guatemala, como a reforma ao artigo 100 da Lei do Serviço Civil do Organismo Legislativo, para eximir de responsabilidade penal a quem participaram em atos parlamentares desde 2008.
E o projeto de modificação do Código Penal, opinou favoravelmente pela Comissão de Legislação e Pontos Constitucionais, para facilitar a obtenção de medidas sustitutivas aos implicados em casos de corrupção, entre os quais está o ex-presidente Otto Pérez Molina (2012-2015).
Como raio de luz no meio das tormentas caiu que a Corte Suprema de Justiça retirou a imunidade ao coronel aposentado e deputado Édgar Justino Ovalle, o poder por trás do chefe de Estado, apesar das acusações que pesam em sua contra por delitos de lesa humanidade durante a guerra interna (1960-1996).
No entanto, o ex-chefe de Inteligência na outrora Base Militar Coronel Antonio José de Irisarri de Cobán (Alta Verapaz, 1983) continua ausente do Congresso e com ordem de captura internacional por seu desaparecimento, o que arrisca a possibilidade de acusá-lo e de festejar o triunfo da justiça transicional ao ordenar sua detenção.
Ovalle, conhecido Puñalito, é acusado de cinco desaparecimentos forçados nesse enclave do Exército da Guatemala, reconhecido agora como Comando Regional de Treinamento de Operações de Manutenção de Paz (Creompaz).
Desde janeiro de 2016 este foi acusado pelos supostos crimes cometidos ali, mas argúcias legais de por meio lhe permitiram continuar desfrutando de sua cadeira -e de suas idas e vindas ao escritório presidencial- até que se diminuiu antes de ser despojado de seus fueros para ser investigado.
No meio das dúvidas em torno do paradeiro do secretário geral do partido que levou a Morales à presidência, a Frente da Convergência Nacional-Nação, voltaram a soar os alarmes, desta vez no Centro Juvenil de Privação de Liberdade para Varões, conhecido como Etapa II.
O recinto, localizado também em San José Pinula, a sudoeste da capital, estava destinado a menores de idade em conflito com a lei, mas dos 73 réus que conviviam aí, só 17 estavam nessa faixa e 56 eram integrantes da liga Barrio 18, dos quais 39 eram adultos, referem relatórios da SBS.
Segundo estimativas policiais, no domingo 19 de março estourou uma revolta no lugar e os pandilleros, como se chamam os membros dos grupos, tomaram como reféns sete internos, um dos quais morreu na mão de seus captores, e outros três faleceram após serem resgatados em uma operação depois de 30 horas de um diálogo infrutífero.
Tanto o diretor da PNC, Nery Ramos, como o ministro de Governo, Francisco Rivas, reconheceram o uso da força no operativo e do emprego de gases lacrimogêneos.
Atuou-se de maneira proporcional com a força que o Estado nos dá para restabelecer a ordem, declarou Rivas e espetou que ‘se eles foram feridos, provavelmente foi por oposição ao controle que se estava exercendo’.
Aplacado o motim na Etapa II, tiveram lugar os ataques às nove delegacias e as autoridades atribuíram-nos no instante aos membros da Quadrilha Barrio 18, enquanto o presidente da Guatemala falava de ameaça de alta intensidade pela delinquência e o crime organizado.
‘Dissemos que custe o que custar, não toleraremos que estruturas criminosas tentem desestabilizar a paz social’, declarou.
Assim Morales pediu ao Organismo Judicial colaborar com as decisões do Conselho Nacional de Segurança, para castigar em forma rápida e efetiva aos responsáveis pelos atentados.
‘O Estado através da PNC atuou na contramão de estruturas delitivas; e hoje observa-se uma reação destas bandas’, afirmou o titular do Mingob, segundo o qual são mais de 100 as estruturas criminosas do Barrio 18 neutralizadas.
‘Vamos continuar com as operações e a deter a estes criminosos covardes’, declarou o porta-voz da PNC, Jorge Aguilar, em um contexto marcado pela insistência de certos setores em reativar o aplicativo da pena de morte e pela existência de múltiplas agências de segurança.
Mas também pela surpresa de consultores políticos e observadores internacionais ante o nível de organização demonstrado pelas ligas em 21 de março, ainda que se conhece da intenção destas em atuar de forma temerária e em aberta impunidade.
‘As gangues na Guatemala são uma expressão violenta de uma sociedade produto de uma longa história de violência e estão relacionadas com a cultura de impunidade que prevalece porque o Estado não é um verdadeiro regulador da vida social’, comentou à Prensa Latina o filósofo e sicólogo, Marcelo Colussi.
Em sua opinião, estas sempre foram utilizadas por quem exercem o poder para este tipo de ações criminosas, para desestabilizar, e assim manter em angústia à população e afastá-la de seus verdadeiros problemas.
Quem tira que este março conflituoso, em que aumentaram as manifestações de rejeição ao presidente, seja o prelúdio de tempos mais tormentosos pela insistência de recorrer à militarização no âmbito do que alguns chamam de a restauração conservadora na Guatemala.
*Correspondente da Prensa Latina na Guatemala