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quinta-feira, 28 março, 2024

EUA: muito trabalho para ‘parecer que vence’ 

Foto: Win McNamee/Getty Images North America/Getty Images via AFP

Alistair Crooke, Strategic Culture Foundation

Depois da retirada de Cabul que consumou a débacle, o governo dos EUA corre com alucinada pressa para dar a Biden alguma aparência de sucesso na política exterior.

As contradições multiplicam-se: por um lado, os ‘falcões anti-China’ no governo dos EUA aceleram a devoração, pedaço a pedaço, do compromisso com ‘Uma só China’ e da conversa com Taipei de que ‘os EUA protegem vocês’, caso a China tente alguma reunificação da ilha usando força militar. No entanto, Taiwan será eventualmente integrada à China, já que a China será obrigada a prevalecer militarmente, caso a situação realmente se complique. Mas talvez Washington esteja vendo o seu trabalho de irritar e provocar Pequim como sucesso de uma ‘ação capilar’ política – ainda que o destino final de Taiwan já esteja ‘gravado em pedra’.

Há também notícias de que Israel estaria engajada no que tem sido descrito como exercícios militares ‘intensos’ de simulações de ataque a instalações nucleares iranianas. Blinken deixou bem claro que o governo dos EUA sabe e aprova o que Israel planeja. Reuniu-se com o ministro Lapid de Relações Exteriores de Israel, dia 13 de outubro, e disse que, caso falhe a diplomacia com o Irã, os EUA passarão a “outras opções”. Adiante Lapid confirmou que uma das opções dos EUA é precisamente ação militar.

Mas até os especialistas militares israelenses admitem que não há ‘Plano B’ realista para impedir o programa iraniano de enriquecimento de urânio. Um importante analista militar israelense recentemente observou que “Israel não tem meios para destruir o know-how nuclear do Irã. No ‘melhor dos casos’, alguma ação militar israelense apenas atrasará o programa “por um, dois anos, no máximo”. Se falharem as conversações de Viena, Israel terá de conviver com o Irã como ‘potência vizinha’. Ou que se preparem, os próprios israelenses, para guerra regional em vários fronts – o que já estão fazendo.

Em terceiro lugar, observamos a mais ostensiva (aparente) contradição: o ocidente tenta utilizar a ação da OTAN na Ucrânia como ameaça à Rússia, para o que a OTAN baixou recentemente o limiar de utilização de suas armas nucleares – e mesmo assim… não há como Kiev recuperar o controle sobre o Donbass. Moscou jamais permitirá que aconteça, e a OTAN sabe que não pode sobrepor-se à Rússia na Ucrânia, sem um impensável confronto nuclear.

Seja como for, os EUA – visivelmente – cortejam o fracasso. Ou a Ucrânia continua territorialmente no status quo, desintegra-se sob o peso da própria disfuncionalidade, do próprio colapso econômico e da corrupção endêmica. Ou, num gesto fútil, passa a combater forças do Donbass e termina desmembrada, no caso de a Rússia – muito relutantemente – ser forçada a intervir.

Qual, então, é a lógica disso tudo? Para a Ucrânia, é Cila e Caríbdis. Mas há sinais de que os EUA e aliados fornecem novas armas a Kiev. Macron é esperado em breve em Kiev para vender ali as armas com as quais ameaçar o Donbass. O processo de rearmamento parece já estar em andamento. Mas nem com novas armas Kiev tem chances de vencer o confronto.

Talvez o povo ucraniano creia que possa vencer – mas as autoridades em Kiev sabem que não. A esperança das autoridades ucranianas é que qualquer resultante intervenção militar russa forçaria o mais pleno e violento apoio europeu a Kiev. Claro que a UE apoiaria Kiev – no mínimo, para deter possíveis milhões de refugiados a caminho para a UE. Sim, o país teria sido balcanizado, mas os oligarcas russofóbicos corruptos lá estariam, firmes como rochas, intactos e politicamente ‘por cima’.

Tudo isso considerado, parece que ‘resolver o conflito’ para os EUA é dar a uma Rússia relutante nenhuma escolha, além de intervir. O objetivo claramente não é derrotar militarmente a Rússia, mas derrotá-la politicamente (como observou o Saker, analista político russo). O mesmo analista também destaca que Moscou compreende perfeitamente que líderes norte-americanos e da UE estão montando uma armadilha. Mas mesmo assim os russos terão praticamente nenhuma possibilidade de se manterem afastados, se seu próprio povo, no Donbass estiver sendo massacrado. (É possível que forças do Donbass defendam-se sozinhas, mas ainda assim as pressões para que o presidente Putin interfira seriam descomunais.)

Por que os EUA, no estado debilitado em que estão, querem arriscar pôr fogo em três tempestades ígneas de resultado impossível de prever?

O professor Mearsheimer conta que a China está sendo compelida a se autoconstruir como “o ‘Godzilla da Ásia’, porque é o único modo de conseguir sobreviver!” A China não pode confiar nos EUA, dado que jamais poderá ter certeza sobre intenções dos EUA. O medo domina nesse mundo arcaico selvagem. “Eis a essência trágica da política internacional: a imprevisibilidade das reais intenções” – conclui Mearsheimer.

Há muito o que pensar nessa ideia: o establishment norte-americano claramente teme, e vive apavorado por quaisquer riscos de vir a perder a supremacia. Os Democratas, em particular, historicamente temem ser vistos como fracos na preservação da hegemonia. Mas outro agente, mais antigo, talvez ofereça diferente insight: Jonathan Clarke, escrevendo em 1996 para o Cato Institute, diz que aí se constata a falha do Instinto de Atacar Capilares [no sentido de “nunca a veia jugular”] (ing. Instinct for the Capillary) dos EUA. De 1996 até hoje aquela falha proliferou e hoje já tem potencial para derrubar a hegemonia dos EUA.

Clarke referia-se ao desejo do governo Clinton de montar um colar de realizações as mais diversas, todas de rasa importância, a ser propagandeadas junto ao eleitorado como retumbantes sucessos, de tal modo que os eleitores concluíssem que a política exterior estaria em razoável boa forma. Mas os EUA sempre erraram. O esforço para propagandear os tais feitos rasos “ignorou o alarmante vácuo que se formava precisamente na área mais importante: a questão de se a política estaria trabalhando a favor ou contra alguma grande guerra que EUA teriam de guerrear em futuro próximo.” Os EUA são viciados em sucessos efêmeros, ao mesmo tempo em que ignoram sempre a erosão grave da própria estratégia, Clarke escreveu.

Era ‘instinto na direção dos capilares’ no sentido em que a água (no caso, os ‘sucessos’ insignificantes) pode avançar por tubos, mas só se forem tubos suficientemente estreitos e fechados:


“O apoio não nuançado à independência de Taiwan, sem considerar as reações chinesas e a propaganda a favor de ações clandestinas contra o Irã são dois destacados exemplos” Clarke escreveu então. “Tais ações não são sinais de abordagem coerente, muito menos de abordagem prudente (…) É abordagem que jamais promoveu a evolução na direção de relações estáveis, não voláteis com (…) Rússia e China. Ao contrário, os EUA estão quase no ponto de converter essas duas poderosas nações em adversários estratégicos, possivelmente já reunidos em aliança contra os EUA. Essa inquietante possibilidade está encoberta pela retórica de celebração leviana que o governo dos EUA usa na promoção desses tais ‘sucessos’ em questões secundárias. Pode até ser política efetiva [domesticamente], [mas] é o exato oposto do que os EUA têm de cuidar de construir. Os tais ‘sucessos’ (…) tendem a ser frágeis ou inacabados, estranhamente distantes dos verdadeiros interesses dos EUA – ou fundamentados na diplomacia mais absolutamente mal concebida”.

“Rápida olhada para a política dos EUA para a China ilustra esse ponto. A quantidade de questões contenciosas e mutuamente conflitantes chega a assustar: Taiwan, oportunidades comerciais, vendas chinesas de tecnologia avançada (inclusive nuclear), o gasto crescente da China, na própria defesa, expansionismo territorial no Mar do Sul da China e direitos humanos. Em várias dessas áreas, há o mesmo dilema norte-americano clássico entre realismo e idealismo. Mas o governo fez sempre muito pouco para resolver aquele dilema; ou para considerar devidamente o risco que os EUA podem suportar, na busca de determinados objetivos”.

“Em novembro de 1995 Joseph Nye, naquele momento secretário-assistente da Defesa para assuntos de segurança internacional, respondeu perguntas da China sobre a possível reação a movimento da China contra Taiwan, com declaração vaga de que “dependeria das circunstâncias”.

Até se admitiria tal formulação como circunlóquio em discussão pública sobre assunto de extrema gravidade, se houvesse algum senso de confiança de que o governo privadamente saberia como proceder e, assim sendo, já estaria tomando as devidas providências. Mas as autoridades norte-americanas sequer dão sinais de saber com clareza, na própria cabeça, se os valores democráticos norte-americanos estão mesmo sendo ameaçados em Taiwan, a ponto de o país arriscar confronto militar com Pequim”.

Isso foi escrito há vinte anos! Desde então, a prática ininterrupta dos EUA, sua insistência na sempre mesma retórica pomposa, arrogante, de provocação, em todas as questões de pequena ou nenhuma importância, já, como Clarke previu, converteu Rússia e China em adversários, e também já empurrou os dois países para uma parceria militar estratégica. Para que fique bem claro: Clarke disse que o peso dessas ‘vitórias’ – incoerentes em termos estratégicos –, constituía uma contradição que, fosse como fosse, acabaria por fazer implodir o poder dos EUA.

Biden talvez nem deseje guerra total com a China, mas sem dúvida deseja assinalar a beligerância ‘valente’ dos EUA contra o poder chinês em ascensão. Agora, a mídia comercial dominante nos EUA lambuza-se na questão de Taiwan. Para quê? Qual o objetivo disso? Talvez o ‘sucesso’ agora buscado seja alguma espécie de ‘participação significativa’ de Taiwan, na ONU e em outros corpos internacionais (amplificada pelo apoio barulhento e repetido dos ‘aliados’ ocidentais.

Numa palavra, para arrancar Taiwan, como ‘Kosovo’, da órbita chinesa: Kosovo foi separado e expulso da órbita da Sérvia.

Essas táticas dos EUA só ‘garantirão’ a derrota militar completa do governo de Taipei (e com isso a ‘Kosovização’ torna-se absolutamente efêmera). Nada muda: a Kosovização efêmera será apresentada como retumbante sucesso político dos EUA (‘defensores dos valores democráticos’). A ideia será então incansavelmente ‘repercutida’, como modus operandi a ser aplicado também na província de Jinjiang, de maioria muçulmana (onde a política dos EUA poderia ser pintada como de apoio a direitos humanos e, de quebra, também ‘pela diversidade’). Ah, sim, o custo em termos estratégicos continua presente e operante: qualquer confiança em Washington que ainda existisse em Pequim, seria destroçada. A China agora já não é só força adversária. – Está decidida a vencer.

Na Ucrânia, provocar intervenção militar russa, ainda que limitada, na parte oriental do país, é ação que será saudada como grande conquista política. Não interessam os danos nem os mortos. A Europa tombará sob total controle de Washington, e a OTAN redescobrirá sua raison d’être. Mas Europa e EUA estarão mais fracos – e mais, dos tradicionais estados-clientes dos EUA, se autoafirmarão, ao diversificar as próprias relações e projetar poder mediante alianças mais amplas. E quanto mais esses clientes tradicionais dos EUA olham na direção do oriente, mais profundamente se engajam ao lado da China.

Para o Irã, a ‘Ação Rumo aos Capilares’ já começou: instalações iranianas de petróleo sofreram ciberataques; os EUA impuseram novas sanções a figuras do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica; e demonstrações ‘musculares’ de impoluta virtude – combinadas com exibições navais de Liberdade nos Mares, no Estreito de Taiwan – já começaram. Ao longo do último fim-de-semana, os EUA voaram um bombardeiro estratégico B-1B de longo alcance sobre o Oriente Médio, e especificamente sobre o Estreito de Ormuz próximo do Irã, no que a Força Aérea dos EUA chamou de “patrulha de presença” (ing. ‘presence patrol’), como mensagem a Teerã (a questão é que o bombardeiro B-1B, que pode transportar ogivas nucleares, também transporta bombas norte-americanas gigantes ‘anti-bunker’). Simbolicamente, em vários pontos da rota – que foi da ilha de Diego Garcia no Oceano Índico ao Iêmen e dali até Israel e Jordânia e depois voou sobre o Golfo Persa – jatos de combate israelenses escoltavam o bombardeiro, periodicamente também com outros, da Arábia Saudita, Bahrain e Egito.

Nada além de outro ‘sucesso’ secundário, que desconsidera o alto risco estratégico contra os EUA, ao insistir nessa via de ‘sucessos’ efêmeros? As intenções de Israel são totalmente imprevisíveis, ainda que Blinken e Sullivan imaginem que Telavive os avisaria ‘antes de agir’. “Assim sendo” – resumiu o analista militar israelense, – “creio que veremos a continuação desse conflito de baixa intensidade” (na hipótese de que não se converta em conflito de alta intensidade) – “a menos que Israel decida atacar instalações nucleares do Irã”.

Será que os EUA consideraram – nos termos da análise de Clarke – qual nível de risco estão dispostos a correr, nessa ação de ‘promover’ tantos ‘sucessos’ secundários (‘passagens’ por mar e ‘sobrevoos’ do B-1B)? Ou a “retórica mais leviana” volta a ser a ordem do dia?

Depois da retirada de Cabul que consumou a débacle, o governo dos EUA corre com alucinada pressa para dar a Biden alguma aparência de sucesso na política exterior. Contudo, o peso combinado de todos esses ‘sucessos’ frágeis, mal acabados e estrategicamente desconectados, mais dia menos dia repercutirá muito mal e recairá sobre os EUA, de modos e por vias que superarão a capacidade de suportar do disfuncional sistema norte-americano.

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