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quinta-feira, 28 março, 2024

Eu sou um Aluno.

E comecei a ser ALUNO desde o primeiro dia que saí da barriga de minha mãe, quando abri um berreiro danado, sem certamente sequer saber o que eram vogais & consoantes, numa eventual onomatopéia de pranto assustado, em alto e bom berreiro de récem-nascido. O meu primeiro olhar lambido. O meu primeiro cheiro tenro.
O meu primeiro dodói inusitado, tudo isso, afinal, foram aprendizados primordiais para mim. Confesso agora, que já estava nascendo ali, o “apreendedor” de tantas sábias ilusões da vida. Também aprendi zelos e ternuras. Luzes e sonhos. Seios e beijos. E desde um toquinho ainda, eu, de alguma maneira inexplicável,  já “lia” muito bem.
De movimentos a somas. De carinhos a pitos. De calores maternos a gestos gerais.  Eu era tão pequenino e viera ao mundo para ser o melhor aluno, o melhor aprendiz dessa vida louca. Depois vieram outras espécies de lições. De todos os tipos. Febres. Tristezazinhas. Abraços apertados.
O adorável colo de mãe. A vida era uma enorme lousa sem tamanho. Cenário de família com parentes. Quintais e romances. E eu ali ainda nas primeiras frases mal feitas, tipo “nenê mamá”. A primeira coisa que ouvi e entendi, compreendendo, e depois certamente ouviria ainda por milhares de vezes, foi o meu sagrado Nome de Batismo.
Era ali o meu documento-vida, a minha identificação-chave. Minha vida era uma história a ser escrita por mim mesmo, aprendendo dia após dia… ao meu jeito, como diz a canção  Falei logo. Mamã. Riram alvissareiros. Gostei.
Repeti todo posudo e cor-de-rosa. Me beijaram. Adorei. Passaram talquinho em mim. Legal. Depois, acho, falei papá (comida), ou papai. Das duas, uma. Vim aprendendo pela vida. Adoro aprender.
Depois vieram os tropeços e tombos. Escuros e sombras. Desencontros. Doeram. Dodói mesmo eu logo aprendi dizer com beicinho mole. Rendia. Remédios. Pitos. Castigos que eram mais gestuais, como sonoros chius esticados. Afetos. Nódoas. Remédios.
Correria. Minha mãe com os olhos vermelhos, dando beijinhos doces e molhados em meu machucado calinho marrom. Doeu, Mamãe!. Aliás, minha mãe era um livro aberto em milhares de páginas que sorriam doces lições cheias de encantários para mim. Fui crescendo e aprendendo. Sempre.
Cada segundo era uma aula enorme. Cada minuto uma medida-limite. Cada dia um bonito questionário. Cada aprendizado um exercício de estima para multiplicar-me em palavras e afetos. Cada luz ou dor circunstancial,  uma fixação no arquivo sensorial da minha memória atiçada.
Fui crescendo e aprendendo territórios e mapas em casa. Música, Garnisés, Canteiros, Política. Meu pai tinha programa de rádio, regia corais e bandas, e adorava João Goulart, o Presidente. Fui politizado mesmo antes de ser alfabetizado. E adquiri logo a tal inteligência musical, depois artística, imagética.
E ainda pondo senso crítico em tudo. Muito resmungão, diziam minhas irmãs que eram um grude comigo, o chamado bendito fruto.  Meu genitor muito sabido, logo ensinou-me algumas vogais, escritas no papelão de caixas de sandálias velhas. Depois consoantes complicadas, em retalhos de compensados de pinhos com nós vermelhos.
Em seguida o Pai me ensinou a “ler” as horas certas, num relógio antigo do tamanho de uma panqueca. E ensinou-me a oração sagrada, o Pai-Nosso. Custou mais aprendi. Ela quase perdeu a paciência. Mas eu acabei pegando o jeito. Fiz bonito, afinal.
Depois o meu querido velho me falou sobre as naturais estações do ano. Primavera, verão, outono inverno. Épocas de plantios e colheitas. Luas e mudanças dela. Época boa pra pescar, ou pra podar roseiral.
A rua era meu mais belo paraíso predileto. Um céu de aventuras e conquistas. Espaços e descobertas. Amigos e trocas. Na rua aprendi brincar, amar, ser feliz. Amizades e dribles da vaca, nos garrinchas piás polacos rueiros. Compreendi desde cedo que os diferentes eram iguaizinhos.
Descobri-me uma espécie de Robinson Crusóe sem lenço e sem documento. Bolinha de gude, bola de meia, bola da papel. E o baita sol, uma espécie de enorme Sonrisal alto pendurado lá nos repolhos azuis de Deus.
Auroras e prelúdios.  Sanfonas de ventos e leques de nuvens. Depois as brincadeiras adoráveis. Pular carniça entre fogueirinhas de papel de pão. Roda cotia. Paca, Tatu, Cotia Não! Balança caixão. Serra Serra Serradô.
Atireium pau no gato. Até que um dia – eu era feliz e não sabia – nos tiraram a liberdade e as brincadeiras sadias dela. De sermos crianças inteiras, plenas, vivas, como se páginas puras e em branco aprendendo algarítimos de afetos, somas de companheirismos, escritas cuneiformes de ilusões. Era tempo de irmos para  escola.
O que seria aquilo? Devia ser um sonho, uma graça, uma belezura. Foi?  A primeira professora. Candura de mãe e cheia de charme especial. Um quadro preto chamado de lousa, que na verdade era uma pedra lisa que estava sempre cheia de riscos, orações e desenhos.
E toma A E I O U com explicações novas de vogais ensaboadas de sons e montagens de palavras diferentes, caprichadas. Depois frases pueris. “O sapo baba no bule”. Será isso? Caminhos suaves.  Uma turma diferente. Carteiras com duas pessoas. Eu e meu primeiro amigo bem diferente de mim. Recreio e merenda. Sopa de arroz-quirera de terceira.
A parte que mais adorávamos, era o banzé do intervalo, pois ali no pátio-chão brincávamos como nas ruas de nossa infância, de nossa criação caseira que esbarrava cercas e milharais em trepadeiras e janelas.
Estudar assim ficava gostoso. Ser aluno tinha seus momentos hilários, outros, entocados.  O triste mesmo era ficarmos um tempão sentados na madeira dividida, copiar palavras da lousa cheia de novidades, escrever coisas interessantes, saber tabuadas de cor, decorar datas magnas e oficiais.
O pior era ser privado das ruas de terra vermelha, das árvores com ninhos e arapongas, dos distantes céus azuis, dos borbulhantes córregos de girinos e sem pinguelas, dos gostosos frutos maduros nos pés carregados, dos mandorovás-camaleões ardidos e abelhas zangadas, mais a piazada em atiço atrás de gabirovas amarelas ou verdes ariticuns silvestres cheios de formigas saúvas. Eu adorava estudar. Também pudera.
Em casa mesmo, menos do que Nota Nove em qualquer linguagem, era a pedagogia do chinelo no bumbum. O que mais doía era a vergonha de não saber, levar esculacho por medo de zero na nota. Então aprendíamos.
Aprendi a gostar de escrever, fazer lições, trabalhos de casa e mesmo a ler bastante, que, no começo, na marra até era aplicado como modelo.  Aliás, em casa era uma espécie de castigo (que sossegava o espeloteado guri perguntador e curioso) discutir os verbos ler e estudar. E toma a ler Bíblia, Dicionário, o jornal O Estadão, Seleções, Palavras Cruzadas. Que bem isso me fez, meu Deus. Como eu agradeço meus pais por esses castigos que me abriram mundos e tiraram véus de ignorâncias.
Eu era o guri mais pobre da nossa sagrada Estância Boêmia de Itararé, e, no Grupo Escolar Tomé Teixeira, ali na Rua XV de Novembro, centro velho da cidade,  saquei que para ser alguém na vida, só tinha uma saída: Estudar muito. Deus me deu essa visão precoce. Eu captei tudo, claro. Ser pobre era meu destino ali. Ser burro era opção minha.
E eu podia mudar tudo, como, afinal, mudei mesmo, estudando muito, sendo eterno aprendiz, um estimado aluno, amigo de todos os maravilhosos professores. Estávamos nos idos alvoroçados dos Anos 60. Eu já rascunhava minhas frases completas, meus trocadilhos inocentes, meus poemetos infantis, meus primeiros rascunhos nos álbuns de várias irmãs.
Ou nos cadernos das namoradas secretas que eu namorava escondido, mas já escrevia bonito e pomposo pra elas. Eu as namorava e as amava por dois; por elas mesmas, pois elas na verdade não sabiam que namoravam comigo.
Eu era muito inocente e puro. E as amava com os olhos pendurando cristais, com as oportunas balinhas de limão, com uma gasosa chamada Crush, com um ocasional poema feito às pressas, com alguma rima e sem ritmo, sem muita filosofia, mas que elas aceitavam encantadas como se dálias íntimas de minha criação especial, no jardim da inocência sensível. Na Escola já declamava textos de outros, depois invenções minhas, e toma eu a brilhar no Dia do Índio,
Dia da Pátria, Dia da Árvore. E toma a ler depressinha os contos infantis que mestra passava – à bença, Dona Nancy! – depois historinhas divertidas, ditados grandes, lendas e invencionices gostosas que caiam como melancias em minha vida cheia de esperança por dias melhores com sabedorias inteiras. A formatura foi só um pulo. Um primeiro degrau para o céu. Eu estava a caminho, eu sentia isso. Depois tinha outro turno de estudo. Outro  necessário e seguinte ciclo. Meu pai que era rico, ficou pobre, doente, e eu tive então que ir vender picolé de groselha preta na rua. Mas eram ruas distantes, descalças, ou com cacau quebrado (paralelepípedos), em cantos estranhos, periféricos. E eu batalhando.
Tudo era  mesmo aprendizado. Às vezes um tombo de bicicleta, às vezes um troco que eu errava – nunca fui com com números – às vezes um sol forte e minha febre terçã. Minha mãe já não me acompanhava, a não ser com promessas e orações-mantras alongadas por meus sonhos.
Tive que cair na luta e apanhar de relho da pobreza. Fiquei forte com isso. Adquiri cascão para outras batalhas. Um dia fui trabalhar na Marcenaria Estrela. Novos amigos. Tudo de novo. Um novo lugar. Um novo lar diferente e alegre. Cortei minha infância pela metade. Mas eu sobrevivi. E criei meus personagens. E aprendi a fazer poesia para ter companhia.
Meus livros eram meus filmes. Minha imaginação ficou sadia. Minha solidão era preenchida com baladas que eu bolava, com cenas de teatro que eu montava, com sonhos de ser escritor, ser feliz, vencer na vida, ser alguém, dar orgulho pro meu pai, cuidar de minhas seis irmãs bentas, de meu irmão caçula, de minha saradinha sobrinha órfã.
Vim aprendendo pela vida. Sempre. Gastei mais com livros, jornais e estudos, do que com uma casa que custei a comprar, pois eu sempre quis  as posses variadas das culturas e dos conhecimentos. Ajudei amigos e parentes. Amei e fui amado. Apanhei da vida e tornei-me um guerreiro pela própria natureza.
Eu, que sempre fui apaixonado por todas as minhas professoras, acabei saindo de trabalho jurídico no escritório e fui estudar para ser professor. Deus me selando num destino de ser árvore para dar flores, sementes e frutos? Hoje vivo disso. Sei o referencial que sou. Sei o amor que tenho pela pedagogia, pela educação em si. Tudo é aprendizado. Meus alunos me adoram.
São meus alunos-filhos. Alguns me pedem benção. Outros pedem socorro.  Dar aulas é minha maior rebeldia. Tenho satisfação e orgulho. Sou um Tiofessor que sabe o valor do aprendizado e adora estar nessa busca infinita de evoluir, crescer, aprender a Voar.  Afinal, bem ou mal, sou aluno ainda, pois, como disse Guimarães Rosa, “mestre é quem de repente aprende”. E, confesso, eu quero morrer em sala de aula, como um aluno bem velhinho e caprichoso, de galocha, chapéu de nuvens e aparelho de surdez. Aprendendo, talvez, fauna marinha, física quântica, hebraico, ou como dirigir asa-delta.
Confesso que esse aluno que sou nasceu no dia em que saí da barriga de minha mãe. Abri um berreiro sem conhecer palavras, e, a partir daquele dia, vim sendo um ALUNO no sentido mais mágico, mais pleno da palavra.  Sei que, quanto mais estudo, mais leio, mais escrevo, mais penso, cismo, conjecturo, mais pesquiso, ainda mais vou perdendo lastro e ficando leve, doce, meigo, sereno…
Uma vida inteira é pouco para um aprendizado total. Tenho consciência disso. Até acho que aprendi a ser aluno em algum lugar do passado distante, e no espaço cósmico futuro vou ainda por muitas vidas e dimensões, sendo isso mesmo que adoro ser cem por cento:
UM ALUNO.
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Poeta Prof. Silas Corrêa Leite
Membro da UBE-União Brasileira dos Escritores
Filiado ao Centro do Professorado Paulista;
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SILAS CORREA LEITE
Professor, conselheiro diplomado em direitos humanos, jornalista comunitário, ciberpoeta e escritor premiado, consta em mais de oitocentos links de sites, até no exterior, entre eles Cronópios, Observatório de Imprensa, Correio do Brasil, EisFluências e outros, Prêmio Lygia Fagundes Telles Para Professor Escritor, Prêmio Paulo Leminski de Contos, Prêmio Ignácio de Loyola Brandão de Contos, Prêmio Biblioteca Mário de Andrade (São Paulo, Gestão Marilena Chauí), Prêmio Literal (Fundação Petrobrás, Curadoria Heloisa Buarque de Hollanda),   Prêmio Instituto Piaget/Cancioneiro infanto-juvenil, Portugal, vencedor do Primeiro Salão Nacional de Causos de Pescadores (USP-Parceiros do Tietê/Jornal O Estado de São Paulo/Rádio Eldorado) entre outros, publicou em revistas, jornais, tabloides, fanzines, como Revista da Web, Trem Itabirano, Panorama Editorial, Revista Construir, DF Letras, Mundo Lusíada (Portugal), etc. Autor, entre outros, de Porta-Lapsos, Poemas, All-Print, SP, Campo de Trigo Com Corvos, contos premiados, Editora Design, SC (finalista no Telecom, Portugal), DESVAIRADOS INUTENSILIOS, Editora Multifoco, GOTO, A Lenda do Reino do Barqueiro Noturno do Rio Itararé, romance,  GUTE GUTE, Barriga Experimental de Repertório, romance, e O Menino Que Queria Ser Super-Herói, romance infantojuvenil, ambos a venda site Amazon e do ebook de sucesso O RINOCERONTE DE CLARICE, onze contos fantásticos, cada ficção com três finais, um final feliz, um final de tragédia e um terceiro final politicamente incorreto, destaque na grande mídia (Estadão, Diário Popular, Revista Época) inclusive televisiva, por ser o primeiro livro interativo da rede mundial de computadores, tendo sido entrevistado por Márcia Peltier (Momento Cultural/Jornal da Noite, REDE BAND), Metrópolis e Provocações (TV Cultura), entre outros, e a obra, por ser pioneira e única no gênero, foi recomendada como leitura obrigatória na matéria Linguagem Virtual, do Mestrado de Ciência da Linguagem da UNIC-Sul de SC, tese de Mestrado na Universidade de Brasília e tese de Doutorado na UFAL. Seu estatuto de poeta foi vertido para o espanhol, francês, inglês e russo. Contatos: poesilas@terra.comr.br

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