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quinta-feira, 28 março, 2024

A era de Aquarius

ELA está morando sozinha num condomínio um pouco histórico, um pouco deteriorado, chamado Aquarius. Um empreendedor imobiliário voraz sonha em destruir o velho condomínio com vista para o mar do Recife à base de dinamite, de machadadas, mas sabe que no mundo moderno o uso da força bruta nem sempre pega bem. ELA é o empecilho que atravanca o progresso da força bruta e da força branda.
ELA passa a ser assediada brandamente, passivo-agressivamente, pelo som ao redor que quer transformar a saudosa maloca, maloca querida, em tower of power. O mundo de alta prevalência masculina que a cerca passa a demonstrar de modo crescentemente violento (embora quase nunca explícito) que o projeto de continuidade da vida como ela era não tem futuro.
As forças quase 100% masculinas que sustentam os alicerces do prédio começam a minar as estruturas silenciosamente, de dentro para fora. A árvore chamada edifício vai pouco a pouco se infestando de parasitas. Pouco a pouco, à medida que o edifício é corroído de dentro para fora, os nervos da quase velha senhora vão sendo postos em frangalhos.
A quase velha senhora é uma jornalista e escritora pequeno-burguesa que se chama Clara, apesar de ser ~acusada~ pelo jovem empreendedor formado em ~bizness~ nos Estados Unidos de ter a pele ~escura~ demais para ser digna de ocupar feito abelha-rainha soberana o condomínio que se almeja implodir. Ela, Clara, ganha cor, luz, formas, som e fúria na figura da atriz Sonia Braga, paranaense nascida em Maringá, também terra natal do juiz justiceiro Sérgio Moro (que não tem nada a ver com este filme do pernambucano Kleber Mendonça Filho, o mesmo diretor do rumorejante filme O Som ao Redor, de 2012).
O assédio acontece por todos os flancos, majoritariamente o moral. O jovem construtor é interpretado por Humberto Carrão, galã de novelas revelado pela Rede Globo, assim como foi nos anos 1970 a própria Sonia. Chamado Diego ou Diogo, o doce personagem primeiro testa a trilha da ~imoralidade~, via sexo e escatologia (assalto sexual?, corrupção?). Não funciona. A mulher solitária resiste.
Ele tenta a solução da moralidade cristã: cunha uma igreja evangélica no coração do edifício, povoa o habitat de fervor, atravanca a garagem da solitária com carrões de fiéis religiosos empenhados em servir a Deus e à justiça. Não funciona. A mulher resiste, isolada, temendo, mas sem temer.
Ele apela para a tática black bloc: toca o terror, queima colchões no quintal. Não funciona. A mulher resiste e caminha descalça pelas praias da Boa Viagem e do Pina, rumo à favela de Brasília Teimosa.
Ele (o diretor do filme) brinca à farta com os símbolos disponíveis da casa grande à senzala, com morada preferencial nas tribos indígenas de caetés e outros povos originais. O filme se abre (e se fecha) ao som de “Hoje” (1969), canção de protesto romântico do índio brasileiro nascido uruguaio Taiguara.
De cabelos longos, lisos e negros como as noites que não têm luar, a índia paraná-paraguaya Clara-Sonia-Gabriela dança a bondade passivo-agressiva da canção romântica “O Quintal do Vizinho” (1975): “Sonhei que entrei no quintal do vizinho e plantei uma flor/ no dia seguinte ele estava sorrindo, dizendo que a primavera chegou”. Quem canta é Roberto Carlos, capixaba que, como o gaúcho Getulio Vargas, nasceu em 19 de abril, dia do índio.
(Atenção ao dobrar uma esquina, atenção, menina: revelações apimentadas relacionadas a Sonia Braga teriam sido um dos supostos motivos do “rei” para exigir a proibição judicial da biografia Roberto Carlos em Detalhes, quase-publicada em 2004 pelo historiador baiano Paulo Cesar de Araújo.)
Embora tratada com franca simpatia pela trama, Clara é personagem burguesa de classe média alta disposta ao ~egoísmo~ de morar sozinha num edifício condenado e até a operar uma chantagenzinha aqui e outra ali. Mesmo dona de cinco imóveis e do apartamento de costas para o morro valorado pela ambiciosa construtora em R$ 2 milhões, ELA é uma espécie de quase sem-teto, quase sem-terra, candidata a índia cigana nômade exilada desterrada: ocupe Estelita, se conseguir fazer frente aos tubarões machos que a pretendem sangrar e devorar.
Sobretudo, Clara é SONIA BRAGA. Sua presença em Aquarius reescreve não só a trajetória da própria atriz como a história de todo o cinema brasileiro. Não deve ser grande o rol de atores e atrizes que podem empunhar em público uma linha cronológica como a dELA, que parte da nudez jovial, empreendedora imobiliária, de filmes de Bruno Barreto Arnaldo Jabor, e vem desaguar, esplendorosa, na nudez madura e sem freios morais do filme de Kleber Mendonça Filho. Inteira, a Sonia que brilha nua em Aquarius é o que não tem vergonha nem nunca terá, o que não tem governo nem nunca terá, o que não tem juízo.
ELA à parte, ele (Kleber, o diretor) é jornalista e crítico cinematográfico antes de ser cineasta, e talvez por isso saiba brincar como ninguém com os signos do jornalismo e de sua suposta decadência. Além de índia pseudo-sem-terra, sua Clara é uma sem-MP3, uma ex-leitora de jornais que tomou asco pela antiga matéria-prima, uma ex-rata de redação que sabe como cavar informações ~constrangedoras~ sobre ~inimigos~ quando isso se faz ~necessário~.
O modo iconoclasta como Kleber se refere ao exercício do jornalismo (e de outras profissões ~amigas~ do poder) talvez ajude a explicar a relação de amor e ódio que a mídia brasileira tem desenvolvido com seu Aquarius. Talvez haja bem mais entre o filme e seus potenciais espectadores, admiradores, críticos e censores do que faz supor a mera cena de vida real de um protesto político de atrizes e atores ~subdesenvolvidos~ no mundialmente cobiçado Festival de Cannes.
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Talvez as razões para os gritos de “fora Temer” que têm explodido ao final de diversas de suas sessões país afora estejam encapsuladas dentro do próprio filme, e não em nada que ocupe tapetes vermelhos e esteja alheio ou exterior a ele.
Quem sabe Aquarius seja um filme exemplar da tal era de aquário de que tanto falavam os velhos hippies?
Também já escrevemos sobre:
Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)

Fonte: Carta Capital

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