Para entender os efeitos e as consequências da securitização desse ouro para melhorar o fluxo de capital externo na Argentina, o podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, conversou com Renan Silva, professor de economia do Ibmec Brasília, e Matheus de Oliveira, professor de relações internacionais do Centro Universitário Belas Artes e pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes) da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
A saída das reservas de ouro do país foi alertada publicamente pelo deputado da oposição Sergio Palazzo, que enviou um pedido de informações ao Banco Central argentino em resposta a relatos sobre supostas “operações de envio de barras de ouro ao exterior” durante o mês de junho.
Caputo confirmou o envio de remessas de ouro para o exterior e argumentou que a ação permite
“obter retorno” em um momento no qual “
o país precisa aprimorar/maximizar o retorno dos seus ativos”.
De acordo com o Banco Central da Argentina, o país tem o equivalente a US$ 4,6 bilhões (R$ 25 bilhões) em ouro. Dados mais precisos sobre a quantidade de ouro enviada e o destino ainda não são de conhecimento público.
Para o professor de economia, usar o ouro como ativo para atenuar a dificuldade de
geração de crédito junto ao setor privado é
algo positivo.
“Eles querem otimizar a utilização desse ativo. É uma medida arrojada, que pode contribuir bastante para este momento de recuperação. Até porque acho que essa transferência ficou em torno de 10% da reserva total em ouro. Então, um montante que não prejudicaria a reserva como um todo. Estando no Banco Central, guardado fisicamente, não tem muita serventia”, opinou o professor do Ibmec.
Silva alertou, no entanto, que é preciso olhar as contas do governo nos próximos meses para acompanhar se a estratégia surtiu o efeito desejado, que é apaziguar a dívida e melhorar as contas.
Já para Oliveira, a medida é um ato desesperado do governo de Javier Milei para conseguir mais créditos no mercado externo.
“Acho que é uma medida desesperada, e uma medida até certo ponto atrapalhada, principalmente pela forma como as coisas foram feitas, porque ao fazer essa operação de transferência do ouro meio na surdina […], na calada da noite, digamos assim, já dá uma aparência suspeita, fica parecendo que o governo está querendo fazer alguma falcatrua.”
Oliveira concorda que o ouro é uma das poucas medidas disponíveis para a Argentina conseguir acesso a crédito externo, devido às dívidas internacionais acumuladas ao longo de décadas, ainda no governo de Mauricio Macri, que antecedeu o governo anterior de Alberto Fernández.
“Mauricio Macri fez o maior empréstimo da história do Fundo Monetário Internacional [FMI] para a Argentina. O país ainda está pagando esse empréstimo. O endividamento externo do país então já é bastante elevado e, além disso, a situação econômica geral da Argentina torna o acesso a esse crédito internacional muito limitado e muito custoso, porque hoje os juros que se cobram para a Argentina são elevadíssimos e tornam quase proibitiva a busca por crédito nas praças internacionais.”
O professor do Ibmec ressaltou que, a princípio, não há troca de titularidade nesse envio, mas uma transferência de custódia. Entretanto, pontuou que o governo indicou o desejo de ter mais mobilidade com esse estoque de ouro, a exemplo de operações de rede, onde esse recurso fica sob custódia do setor privado, com o intuito de ser usado como suporte a essas operações.
“Então, quando você transfere para a custódia, para uma custódia bancária, institucional, também consegue emitir títulos representativos dessa dívida e usar como garantia em diversas outras operações,
otimizando esse fluxo“, acrescentou Silva. “Ou até mesmo algumas operações de crédito, em que a Argentina poderia disponibilizar esse recurso como garantia a esses
novos empréstimos, principalmente do setor privado”, esclareceu.
Entretanto, explicou Oliveira, a depender da forma como serão construídos os eventuais acordos do governo argentino em torno do ouro, a lógica seria muito similar a de uma loja de penhores: um empréstimo de curto prazo que tem o ouro como garantia.
“Deixar o ouro que pertence a um Estado Nacional depositado em outro Estado Nacional é um risco. Sempre vai haver esse risco, que é um risco que vem principalmente de questões de caráter geopolítico, de caráter estratégico”, pontuou Oliveira. “Não por acaso, a Rússia há alguns anos repatriou o ouro que tinha fora do país. A Venezuela também fez esse movimento de repatriação”, destacou Oliveira.
O economista acredita que a securitização de reserva de ouro — agindo em conjunto com os
cortes de gastos e desvalorização cambial, realizados pelo governo — podem surtir o efeito almejado:
“As importações recuaram porque o consumo caiu. As exportações subiram bastante, na ordem de 26% no último ano. Isso significa que está tendo uma conta corrente um pouco positiva, recompondo essa reserva também cambial. Também acaba que, lá na frente, essa reserva de ouro retorna.”
“Diferente de imaginar que é uma medida desesperada, é uma medida complementar a várias outras ações positivas que estão sendo realizadas. Vejo como natural essa tentativa. E espero que, nesse cômputo, com todas as medidas aí, conjuntamente, ele consiga realmente ter mais crédito e mais folga no caixa.”
O professor de relações internacionais ponderou que economia não é uma ciência exata, e suas ações têm sempre uma lógica política e um impacto social muito evidente.
“A inflação caiu às custas do aumento do desemprego, queda dos níveis de renda, redução da atividade produtiva, redução do consumo. Graças a uma série de decisões que são, do ponto de vista social, extremamente custosas e penosas. Muita gente no país está sofrendo diariamente as consequências mais agressivas e brutais desse processo. Acho que seria importante explorar outros caminhos, outras possibilidades”, concluiu Oliveira.