Che Guevara, então ministro da Indústria de Cuba, em 1963 (Foto de René Burri/Domínio Público)
Em 13 de dezembro de 1964, o então ministro de Indústrias de Cuba comparecia aos estúdios da rede de televisão estadunidense CBS para conceder uma entrevista aos jornalistas Paul Niven e Richard C. Hottelet (CBS) e Tad Szulc (New York Times) durante o programa “Face to Nation”.
A Televisão Cubana recuperou a entrevista e a exibiu na última semana no programa “La Pupila Asombrada”, do canal Cubavisión.
Abaixo, a transcrição, reproduzida pelo portal Cubadebate e traduzida para o português pelo Diário Liberdade.
Sr. Niven: Comandante Guevara, em seu discurso na Assembleia Geral anteontem, o senhor acusou os Estados Unidos de ajudar os vizinhos de Cuba a preparar novas agressões contra ela. Nós, por outro lado, temos acusado frequentemente seu governo de promover a subversão em outros países latino-americanos. Você vê alguma saída a esta situação, algum modo de melhorar as relações?
Comandante Guevara: Eu acredito, com relação às soluções, que há soluções, e creio que só existe uma. Temos dito repetidas vezes ao governo dos Estados Unidos que nós queremos apenas que eles se esqueçam de nós, que não se preocupem conosco, nem por bem nem por mal.
Sr. Niven: Comandante Guevara, temos outras perguntas acerca das relações de Cuba com este país e com os países comunistas e sobre sua própria situação interna. Comandante Guevara, o senhor disse à pouco que gostaria simplesmente que nós, os norte-americanos, esquecêssemos de Cuba. Seu discurso de outro dia sugere que o senhor não pode se esquecer de nós. O senhor nos considera um governo hostil a 90 milhas? Como o senhor pode esperar que nós os esqueçamos?
Comandante Guevara: Eu não disse exatamente que tinha a esperança de que vocês nos esquecessem. O senhor me perguntou por uma solução e eu disse qual é essa solução, no momento atual. Se isso é possível ou não, essa é outra pergunta.
Sr. Szulc: Sr. Guevara, em várias oportunidades recentemente o Premier Fidel Castro sugeriu em entrevistas com jornalistas visitantes e em outras ocasiões que deve ser feito um novo esforço para normalizar as relações entre Cuba e Estados Unidos, particularmente no terreno do comércio e do intercâmbio. Como economista, o senhor entende pessoalmente que o restabelecimento de relações desta natureza seria útil ou proveitoso para Cuba? Em outras palavras, gostaria de ver essas relações se normalizarem?
Comandante Guevara: Não como economista, porque nunca me considerei um economista, mas como um funcionário do Governo Cubano, como mais um cubano, creio que as relações harmoniosas com os Estados Unidos seriam muito boas para nós do ponto de vista econômico mais do que em qualquer outro campo, porque toda a nossa indústria foi estabelecida pelos Estados Unidos e as matérias-primas e as reposições que temos que fazer com grandes dificuldades ou trazê-las de outras áreas poderiam vir diretamente. Além disso, o açúcar, para o qual tivemos tradicionalmente o mercado norte-americano, que também está próximo.
Sr. Szulc: Comandante, se não me falha a memória, em 1960 o senhor pronunciou vários discursos, particularmente um em março de 1960 em que disse que, para Cuba, continuar vendendo açúcar aos Estados Unidos era uma forma de colonialismo a qual Cuba estava submetida. O senhor mudou de opinião sobre isso?
Comandante Guevara: Naturalmente, porque aquelas eram condições distintas. Nós vendíamos açúcar sob condições específicas estabelecidas por compradores norte-americanos, que por sua vez dominavam o mercado e a produção interna de Cuba. Atualmente, se vendêssemos açúcar aos Estados Unidos seria o governo cubano o único que o venderia e todos os benefícios seriam para nosso povo.
Sr. Hottelet: Doutor Guevara, Washington tem dito que há duas condições políticas para o estabelecimento de relações normais entre os Estados Unidos e Cuba. Uma, o abandono de seus compromissos militares com a União Soviética. A outra, o abandono da política de exportar a revolução para a América Latina. O senhor vê alguma possibilidade de mudança em qualquer desses dois pontos?
Comandante Guevara: Absolutamente, não. Não colocamos condição de nenhum tipo aos Estados Unidos. Não queremos que eles mudem seu sistema. Não pretendemos que cesse a discriminação racial nos Estados Unidos. Não colocamos condição alguma para o restabelecimento de relações, mas tampouco aceitamos condições…
Sr. Hottelet: Mas minha pergunta é se o senhor aceitaria essas condições estabelecidas pelos Estados Unidos para o restabelecimento de relações normais.
Comandante Guevara: Não aceitaremos condição alguma dos Estados Unidos. Não aceitaremos condição alguma imposta a nós pelos Estados Unidos.
Sr. Hottelet: Mas sobre o assunto dos projéteis russos em Cuba e as relações militares cubanas com a União Soviética, como os Estados Unidos podem estar seguros de que Cuba não será uma ameaça estratégica novamente? O senhor aceitaria a inspeção das Nações Unidas ou a inspeção da Organização dos Estados Americanos?
Comandante Guevara: O senhor mencionou a Organização dos Estados Americanos. Anteontem o delegado colombiano falou “da órbita” da OEA. Isso é, de fato, uma órbita ao redor dos Estados Unidos. Uma inspeção por semelhantes delegados seria uma inspeção realizada pelos Estados Unidos. O senhor disse que os Estados Unidos não se sentem seguros, então nós perguntamos aos Estados Unidos: nós podemos nos sentir seguros de que não existem projéteis contra Cuba? Então, não podemos chegar a uma solução harmoniosa a menos que todos os países sejam iguais no mundo. Inspecionemos todas as bases, as bases atômicas dos Estados Unidos, e inspecionemos também o que temos em Cuba, se você o deseja, liquidemos todas as bases atômicas em Cuba e nos Estados Unidos e nós estaremos em completo acordo em relação a isso.
Sr. Niven: Comandante,você estão, na realidade, tratando de exportar sua Revolução? Vocês enviam armas todos os dias a outros países latino-americanos? Vocês estão trazendo revolucionários de outros países e os devolvendo à sua pátria?
Comandante Guevara: Também tive a oportunidade de dizer isso na Assembleia e posso repeti-lo enfaticamente agora: as revoluções não se exportam. As revoluções são criadas pelas condições de opressão que os governos latino-americanos exercem contra os povos e disso vem a rebelião e depois emergem as novas Cubas… Não somos nós os que criamos as revoluções, é o sistema imperialista e seus aliados, aliados internos, os que criam as revoluções.
Sr. Niven: Mas sua atitude em relação ao atual governo da Venezuela, considerado em muitos países como esquerdista e progressista, não sugere que vocês consideram qualquer governo como opressor se ele não for comunista?
Comandante Guevara: Absolutamente não. O que nós consideramos é que o governo da Venezuela não é um governo esquerdista, não tem nada de governo esquerdista. É um governo opressor. É criminoso. Assassinou os patriotas nas lutas camponesas na região de Falcón, onde há assessores militares dos Estados Unidos. O governo que hoje existe na Venezuela – apesar de que a imprensa norte-americana não o revela – não é um governo esquerdista.
Sr. Niven: Existe algum governo neste hemisfério que Cuba considere como progressista?
Comandante Guevara: A palavra “progressista” é uma palavra ambígua. Há governos com os quais mantemos relações diplomáticas: o governo do México, com o qual temos boas relações. Nossos sistemas são diferentes. Respeitamos seu sistema. Estamos em completa harmonia atualmente e espero que continuemos da mesma forma. Mas se você me pergunta meu conceito de América Latina, te direi que há alguns governos que oprimem seus povos, muito mais que outros, e entre os menos opressivos, entre aqueles com os quais poderíamos ter relações, sem dificuldade alguma, estão: Uruguai, Chile e talvez Costa Rica, mas os Estados Unidos não o permitem.
Sr. Hottelet: Mas todos esses países cancelaram relações diplomáticas com Cuba. Vocês não se sentem isolados por não terem amigos em todo o hemisfério?
Comandante Guevara: Temos grande quantidade de amigos, mas não entre os governos. Os amigos estão no povo, e, em última instância, os povos serão quem governarão esses Estados.
Sr. Szulc: Poderíamos mudar o cenário geográfico da amizade ou não amizade no mundo. O senhor fez uma visita a Moscou em novembro, no mês passado, após a mudança da dirigência máxima. Tivemos a impressão aqui de que o governo de Cuba havia adotado uma posição pouco definida sobre as dificuldades entre a União Soviética e a China, ideologicamente. O senhor poderia nos dizer se, como consequência de sua visita, está mais claro ou mais difícil para o governo de Cuba adotar uma posição definida em relação ao problema sino-soviético?
Comandante Guevara: Talvez vocês tenham a impressão de que não atitude não é clara, mas nós temos a impressão de que nossa atitude é muito clara. De fato, há um conflito, um conflito ideológico que todos conhecemos. Temos estabelecido nossa posição no sentido da unidade entre os Estados socialistas. A unidade é a primeira medida e sustentamos sempre que a unidade é necessária porque a desunião favorece os Estados Unidos, que é nosso inimigo, e tudo o que esteja a favor do inimigo deve ser eliminado. Aí o porquê de estarmos a favor da unidade. Acreditamos que existe a necessidade de fortalecer essa unidade e que ela será fortalecida e que o bloco monolítico dos países socialistas se formará outra vez.
Sr. Szulc: No início deste ano – creio que pela primeira vez em março e depois em junho – ,o Governo soviético, então encabeçado pelo Premier Kruschov, formulou convites a um número de partidos comunistas ou marxistas-leninistas do mundo, incluindo o Partido Socialista cubano, ou melhor, o Partido Cubano da Revolução Socialista, para que comparecessem a uma reunião preparatória de Partidos Comunistas, em Moscou. Pelo que me lembro, o Partido cubano é um dos poucos que não respondeu a este convite. Vemos hoje que o Governo soviético reiterou o convite para uma reunião preparatória de países comunistas ou marxistas-leninistas em março. O seu Governo, ou seu Partido, aceitaria agora o convite soviético?
Comandante Guevara: Isso será estudado no momento apropriado e daremos a resposta. Esse é um convite formulado não para o Governo, mas para o Partido, e é o Partido o que tem que responder. Eu estou aqui representando o Governo agora.
Sr. Hottelet: Comandante Guevara, o senhor é provavelmente o mais importante expoente da guerra de guerrilha no hemisfério ocidental e o senhor disse que os problemas da Revolução na América Latina serão resolvidos mais com balas do que com votos e, em geral, sua atitude dinâmica diante dessas coisas para estar mais próxima da linha comunista chinesa. Além disso, Cuba nunca assinou o tratado que proíbe os testes nucleares no espaço ultraterrestre, na atmosfera e no mar. Esta é também a posição comunista chinesa. Isso não o coloca, realmente, em termos de sua atitude prática e na política, do lado chinês da cerca comunista?
Comandante Guevara: Bem, há três ou quatro perguntas compreendidas em uma. Responderei uma por uma. Em primeiro lugar, há uma afirmação que eu gostaria de negar, ou talvez a tradução não tenha sido correta. Pelo que eu ouvi de você, o senhor disse que sou um expoente das guerrilhas neste hemisfério. Eu diria que este expoente seria Fidel Castro, líder de nossa Revolução e quem tem o papel mais importante na direção da luta revolucionária e na estratégia do governo cubano.
Com relação às outras duas questões específicas, não temos que participar da controvérsia porque existem problemas muito específicos. O problema da transição pacífica ao socialismo, nós o discutimos como uma questão teórica, mas na América é muito difícil e praticamente impossível. Por isso é que dizemos que, na América especificamente, o caminho para a libertação dos povos, que será o caminho do socialismo, marchará através das balas em quase todos os países, e posso prognosticar com toda a tranquilidade que o senhor será testemunha.
A respeito do problema de assinar o novo tratado que proíbe os testes nucleares, acolhemos com beneplácito esse passo como uma medida que tende a prevenir que se agravem as tensões, mas temos apontado muito claramente que nós, com uma base militar norte-americana em nosso território onde poderia haver todo o tipo de armas, onde temos que sofrer todo o tipo de provocações, temos que suportar – resistir – os voos sobre nosso território, nós não podemos assinar esse tratado porque seria uma traição ao nosso povo. Isso é independente do fato de que recebemos com beneplácito o tratato em seu termos internacionais como benéfico para o mundo, mas somente como um passo. Não podemos ficar aqui. Devemos continuar adiante se queremos prevenir uma guerra mundial.
Sr. Szulc: O senhor tem sido, em todas as ocasiões, segundo creio, um crítico claro e cândido, o senhor mesmo, do que tem ocorrido com a economia cubana. Li seus discursos em que criticou os erros na política e os erros de julgamentos. Agora que o senhor está chegando ao sétimo ano de sua revolução, poderia analisar para nós, brevemente, o que ocorreu com a economia de seu país? O senhor acredita que poderiam começar a crescer do ponto em que têm estado? Que prognóstico faria em relação à economia para 1965? O sétimo ano será fraco ou não será necessariamente?
Comandante Guevara: A pergunta é muito difícil para ser respondida em poucos instantes. Estou sendo bombardeado por perguntas que tenho que responder em poucos instantes. Estão me bombardeando com perguntas de todos os tipos. Serei muito conciso e tentarei explicar ao povo norte-americano. Cometemos um grande número de erros no campo econômico, naturalmente. Não sou eu o crítico, é Fidel Castro, ele é quem tem criticado repetidamente os erros que temos cometido e ele tem explicado por que os cometemos. Nós não contamos com preparação prévia. Incorremos em erros na agricultura e na indústria. Todos esses equívocos estão sendo resolvidos agora.
Na indústria estamos concentrando nosso melhor esforço em tratar de que as fábricas trabalhem a uma capacidade máxima; tratando de substituir o equipamento que está em más condições devido à falta de peças de reposição dos Estados Unidos, e que não podemos obter nos Estados Unidos; tratamos de estender nossa indústria sobre a base de nossos recursos primários e diminuir nossa dependência de mercados externos, e dedicar nossos esforços em 1965 ao aspecto da segurança e da higiene do trabalho, para fazer nossas fábricas melhores para o trabalhador; que o trabalhador possa sentir um homem pleno ali. Tomamos fábricas do sistema capitalista onde a questão mais importante era produzir, especialmente em Cuba. Não quero dizer que nos Estados Unidos as fábricas – as industriais – agora são lugares de exploração onde o homem está exprimido como uma laranja. Sei que há um grande número de vantagens aqui para o trabalhador norte-americano, mas essas vantagens em Cuba não haviam sido conquistadas e as condições eram péssimas, pouco saudáveis. Temos dedicado nossos esforços a melhorar a vida, o tempo que passa um trabalhador em uma planta industrial. Esse será um de nossos principais esforços durante o próximo ano.
Sr. Hottelet: Eu gostaria de voltar um pouco…
Sr. Niven: Teremos outras perguntas a respeito da situação interna de Cuba.
Sr. Hottelet: Doutor Guevara, o senhor protestou contra a presença da base naval norte-americana em Guantánamo e os contínuos voos de reconhecimento norte-americanos sobre Cuba. Adotariam vocês alguma ação militar contra a base ou contra os aviões?
Comandante Guevara: Bom, outro dia tivemos que explicar na Assembleia que não gostamos de ser pretensiosos. Sabemos do poderio dos Estados Unidos. Não nos enganamos a respeito desse poderio. Nós dissemos que esse governo dos Estados Unidos quer que paguemos um preço muito alto por esta coexistência não pacífica que gozamos hoje, e o preço que estamos em condições de pagar chega somente até as fronteiras da dignidade. Não vai mais além. Se temos de nos ajoelhar para viver em paz, terão que nos matar antes. Se não querem chegar até esse ponto, continuaremos vivendo da melhor maneira possível, que é esta coexistência não pacífica que temos atualmente com os Estados Unidos.
Sr. Niven: O que significa em termos de diplomacia prática, comandante? O que o senhor se propõe a fazer?
Comandante Guevara: Temos denunciado em todas as assembleias, em todos os lugares que tivemos a oportunidade de falar, a ilegalidade dos voos e o fato de que existe uma base contra a vontade do povo cubano.
Além disso, temos denunciado o grande número de violações, de provocações a partir dessa base, segundo as estatísticas, e temos pedido aos países Não-Alinhados e à Assembleia Geral das Nações Unidas que adotem medidas para evitar coisas como essas.
Sr. Szulc: Poderíamos voltar brevemente a alguns dos problemas políticos internos em Cuba acerca dos que temos sabido neste país de uma maneira muito indireta e pelos quais nos sentidos muito intrigados? Lemos recentemente que um membro destacado do antigo Partido Comunista de Cuba, o ex-senador Ordoqui, foi preso. Sabemos bastante sobre as tensões entre a chamada “velha guarda” do Partido Comunista e o grupo 26 de Julho. Soubemos na terça-feira que o comandante Augusto Martínez Sánchez, que era um amigo íntimo e companheiro seu e do doutor Castro, tentou se suicidar. O que acontece internamente em Cuba?
Comandante Guevara: Em Cuba não acontece nada que não possamos dizer publicamente. O fato da tentativa de suicídio de Augosto Martínez foi explicado de forma concisa e exata pelo nosso governo em um comunicado oficial. Não há nada que acrescentar. Entendo que o povo norte-americano, e especialmente a imprensa, que não é muito nossa amiga, tem o direito de fazer todas as especulações e ideias sobre este acontecimento, deste infeliz acontecimento. Sempre existe a possibilidade de todo o tipo de especulações sobre isso, mas o fato é como o expressamos. Augusto Martínez Sánchez foi afastado devido a problemas administrativos e sua reação foi tentar se suicidar. Deploramos isso porque se trata dele, e o deploramos pela Revolução, porque deu margem a essas especulações.
Enquanto a Ordoqui, afirmamos publicamente o que temos podido dizer neste momento, e temos expressado que na oportunidade adequada tudo estará explicado e Ordoqui receberá uma satisfação pública. Todos os nossos documentos públicos não refletem mais do que a verdade.
Sr. Niven: Comandante, posso perguntar qual a porcentagem do povo de Cuba que respalda a Revolução?
Comandante Guevara: Bom…
Sr. Niven: Temos dez segundos.
Comandante Guevara: É muito difícil em dez segundos. Neste momento não temos eleições, mas uma grande maioria do povo respalda este Governo.
Sr. Niven: Obrigado, comandante Guevara, por estar conosco em “Face to Nation”.
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