Para psicóloga autora de livro sobre jovens que entraram para o tráfico, Estado deve se responsabilizar pelos efeitos da cultura punitivista
Os massacres ocorridos em presídios do Amazonas e de Roraima são resultado de uma lógica punitivista, que produz encarceramento em massa. O Brasil, que caminha para ter a terceira maior população carcerária do mundo em termos absolutos, precisa de uma reforma estrutural que seja capaz de prevenir o caos no sistema.
A conclusão é da psicóloga Marisa Feffermann, autora do livro Vidas Arriscadas: o cotidiano dos jovens trabalhadores do tráfico. Para ela, a construção de novos presídios, anunciada pelo presidente Michel Temer, não resolve o problema. “Se existem grupos organizados dentro dos presídios, a responsabilidade é do Estado, que deixou isso acontecer. E se o Estado acha que a solução é essa [encarceramento], ele precisa se responsabilizar”, afirma.
Pesquisadora da Faculdade Latino Americana de Sociologia (Flacso) e do Instituto de Saúde do Estado de São Paulo, Feffermann afirma que, diante da ausência do Estado, cada um age por si, conforme sua própria ética. “E as soluções encontradas são quase medievais: olho por olho, dente por dente.”
CartaCapital: Tivemos dois massacres em menos de uma semana. O que isso representa?
Marisa Feffermann: É um sintoma. Estamos vivendo uma lógica punitivista, uma realidade na qual o Estado se exime da responsabilidade frente a um problema que ele criou, que é o encarceramento em massa. Por razões mínimas, se encarcera.
O encarceramento em massa é resultado de um Judiciário lento e punitivo. Ao mesmo tempo, a mídia reproduz a lógica do medo, da insegurança. Temos uma política neoliberal, não há trabalho para todos, e estamos cada vez mais em busca de culpados. Nós sabemos que a violência está ligada à desigualdade, mas, nessa busca por culpados, o responsável nunca é a política, nunca é a economia. Então vai se construindo um imaginário social de medo. E, diante do medo, qual é a resposta? Recrudescimento de leis: redução da idade penal, encarceramento em massa…
CC: Quais as consequências do encarceramento em massa?
MF: Se existem grupos organizados dentro dos presídios, a responsabilidade é do Estado, que deixou isso acontecer. E se o Estado acha que a solução é essa, ele precisa se responsabilizar. Mas ele não se responsabiliza.
CC: As más condições dos presídios estão na raiz do surgimento das facções…
MF: O Estado não garante as mínimas condições. Este é o ponto. Existem facções, mas não é esta a discussão que a gente precisa ter agora. Nesses episódios, se a gente tiver essa discussão, a gente vai recrudescer cada vez mais a nossa política. Vamos simplesmente arrumar mais formas punitivas, que só vão acirrar a violência, e não vamos, de novo, resolver o problema.
CC: Qual deve ser o foco da discussão neste momento?
MF: Existe uma ausência do Estado. Com essa ausência, as soluções encontradas são quase medievais: olho por olho, dente por dente. Não há mais qualquer possibilidade de diálogo, de convivência. São milhares de pessoas convivendo o tempo inteiro em um ambiente superlotado, com falta de higiene. Isso enlouquece qualquer um.
Se você não pode, neste momento, desencarcerar todo mundo e pensar em penas alternativas, o primeiro passo é olhar o que tem. O Estado precisa começar a se responsabilizar. Por que terceirizar? Adiantou? O Amazonas é um dos Estados que mais gasta com presídios (o custo que o Amazonas tem com seus presos em unidades privadas é quase o dobro da média nacional do gasto em unidades do Estado).
CC: Por que essas mortes são tão violentas, com decapitações e esquartejamentos?
MF: Quando não há mais diálogo, a lógica é a violência. Quando não existe uma lei e uma ética que organize e possibilite a existência de uma sociedade, cada um age por si. E cada um pode considerar o certo e o errado a partir da sua lógica. É importante pensar que este não é o primeiro. Já tivemos (o massacre) Pedrinhas, por exemplo. E se a lógica se mantiver, não vai ser o último.
É uma demonstração de força. É a violência que está presente em toda a nossa sociedade, exacerbada. É o endurecimento. Eles não são diferentes de nós. É importante também que as pessoas saibam que eles não estão tão dissociados de nós, ainda mais neste momento do País.
Não é nem ódio, é indiferença. A violência passou a ser uma forma de sociabilidade, que é o que a gente chama de cultura da violência. Você não consegue mais se identificar com o outro. É o medo, e você já não sabe mais o que é o medo real e o medo imaginário. Todo mundo torna-se inimigo. A violência está onde não existe diálogo, onde não há palavra. Essa é uma grande definição de violência.
Motim na Cadeia Pública de Manaus deixou quatro mortos no domingo 8 (Foto: Raphael Alves/AFP)
CC: Qual o papel da guerra às drogas no caos carcerário?
MF: Uma das grandes questões é a Lei de Drogas, que não diferencia claramente quem é traficante e quem não é. Hoje, 28% dos 622 mil presos do Brasil são enquadrados pela Lei de Drogas. É preciso descriminalizar. Outra coisa: nós, pesquisadores, temos que ter muito cuidado para não chamar de crime organizado, por exemplo, esses meninos que são pequenos traficantes. Porque, se a gente fizer isso, vamos ter políticas públicas de segurança como se eles fossem, de fato, do crime organizado.
Na sociedade sempre existiu droga, droga legal e ilegal. A Polícia Militar pega dinheiro para a ‘boca’ continuar andando, e a Polícia Civil, os delegados, todo mundo sabe onde está cada ‘boca’. É tudo tão complicado que colocar um menino como responsável por isso é uma barbárie.
CC: Por que a nossa sociedade vê no Direito Penal a solução dos problemas estruturais?
MF: Não é esta sociedade, é a sociedade moderna. Como disse (Michel) Foucault, é uma sociedade que busca o controle, quer o controle dos corpos. Quem é marxista vai dizer que a prisão é uma forma de excluir a pessoa do trabalho, de não produzir mais-valia. Os foucaultianos já trabalham de outra forma e vão dizer que a prisão é uma forma de disciplinar. Mas, para quem conhece, é óbvio que isso não tem sentido nenhum.
Não sei quem ainda acredita na ressocialização. Não conheço ninguém que tenha saído bem da prisão, que tenha tido um aprendizado. Mas o problema não é a ressocialização, o problema é a punição.
CC: A senhora quer dizer que o objetivo é punir?
MF: Sim, é punir. E se pudessem matar, matavam. Mas não podem. Nós chegamos a um ponto (da situação dos presídios) em que não há mais por onde caminhar. E aí as pessoas vão disputar o poder. Esses grupos organizados buscam o poder.
E se a gente não olhar para isso de outra forma, só vai piorar. Enquanto o mundo inteiro está descriminalizando a maconha, o ministro Alexandre de Moraes vai até o Paraguai e faz um teatro (foi filmado cortando pés de cannabis).
Foi a ausência do Estado que produziu essa violência cruel. Então, o que o Estado precisa fazer? Precisa pegar o lugar dele, tomar a rédea do que fez. É preciso pensar em penas alternativas, em como a Lei de Drogas pode minimizar essa situação. As audiências de custódia também têm se mostrado um instrumento importante. Não adianta construir mais presídios e deixar para os presos coordenarem.
CC: Há algum ponto do Plano Nacional de Segurança que pode ser bom, que pode dar certo? A secretária de Direitos Humanos do governo Temer disse que a construção de novos presídios é uma solução paliativa, de curto prazo.
MF: Atitudes paliativas não vão resolver. Isso só vai se resolver com uma reforma estrutural. É o que estou dizendo: se a lógica continuar sendo a do encarceramento em massa, a da punição, a situação não vai se resolver. É como enxugar gelo.
Nós vamos aumentar o número dessas prisões para encarcerar pessoas por razões mínimas? Porque cada vez mais nós estamos criminalizando as condutas. É a lei da tolerância zero, todo comportamento não adequado, principalmente de quem é pobre, é criminalizado. E o presídio é um símbolo dessa sociedade penal, é a lata de lixo de toda essa lógica.
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