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domingo, 9 novembro, 2025

Entre  esperança e a necessária desconfiança – acordo entre Israel e Hamas

© AP Photo / Oded Balilty/Sputnik

Wellington Calasans – Direto de Estocolmo

O anúncio feito ontem, 8 de outubro, de um acordo entre Israel e Hamas — mediado por Donald Trump e baseado em seu plano de 20 pontos — trouxe um suspiro coletivo de alívio.

Após mais de dois anos de uma guerra descrita por organizações de direitos humanos e uma comissão da ONU como de caráter genocida, milhares de palestinos mortos, a perspectiva de cessar-fogo, retirada parcial de tropas israelenses e troca de prisioneiros parece um raio de luz no horizonte devastado de Gaza.

Contudo, esse otimismo é necessariamente temperado por um realismo histórico, político e moral que não pode ser ignorado. Longe de parecer pessimista, soaria ingênuo ignorar a necessária desconfiança quando uma das partes se considera “povo escolhido” e enxerga um país inventado pela ONU como “terra prometida”.

Há razões para esperança. O próprio Hamas, em comunicado, afirmou ter agido com responsabilidade, consultando outras facções da resistência antes de aceitar os termos.

A inclusão de figuras como Marwan Barghouti e Ahmed Saadat nas listas de prisioneiros a serem libertados sinaliza uma concessão significativa por parte de Israel — algo que, em fases anteriores do conflito, parecia inimaginável.

Além disso, a pressão interna israelense, vinda de famílias de reféns e de uma opinião pública cansada da guerra, combinada com o desejo de Trump de consolidar uma vitória diplomática, criou uma janela de oportunidade rara.

A Rússia, por meio de Lavrov, reconheceu o plano como “a melhor opção que existe” em termos de aceitabilidade regional e não rejeição formal por Israel. A China, através de analistas nas agências oficiais de notícias, viu o acordo como “um momento muito importante para a paz”.

Mas é justamente no interesse verdadeiro pela paz que reside o cerne do pessimismo. A história recente está repleta de acordos rompidos por Israel. Em 2023 e em janeiro de 2025, cessar-fogos foram seguidos por intensificações da ofensiva militar.

Um levantamento detalhado aponta que Israel cometeu mais de mil violações de acordos anteriores, incluindo incursões, ataques aéreos e obstrução de ajuda humanitária.

Netanyahu, cuja sobrevivência política tem sido alimentada pela perpetuação do conflito, tem um histórico explícito de sabotar negociações de paz.

Durante anos, sua política foi manter o Hamas no poder, inclusive facilitando o fluxo de dinheiro do Catar para Gaza, com o objetivo claro de dividir os palestinos e impedir a formação de um Estado palestino unificado.

Essa estratégia, como escreveu um analista, visava “preservar seu próprio domínio” — e o massacre de 7 de outubro, embora trágico, acabou servindo a esse fim, ao justificar uma campanha militar de proporções históricas, inclusive com provas robustas de que Israel atuou de maneira coordenada com o Hamas para o assassinato daquelas pessoas.

Mais perturbador ainda é o emaranhado de relações entre Israel e setores do Hamas. Embora o grupo seja retratado como inimigo absoluto, há evidências consistentes de que Israel infiltrou agentes em suas fileiras — e, inversamente, de que membros do Hamas operaram como informantes duplos.

Em maio de 2025, por exemplo, Israel prendeu uma fonte do Shin Bet em Gaza que se revelou agente duplo a serviço do Hamas. Por outro lado, o próprio Hamas já executou dezenas de supostos colaboradores israelenses em momentos críticos do conflito.

Esse jogo de espelhos sugere que, dentro do Hamas, há facções ou indivíduos cujos interesses pessoais, de sobrevivência ou de poder local se sobrepõem à causa coletiva do povo palestino — o que alimenta desconfianças legítimas sobre a representatividade e a integridade das negociações.

Além disso, o acordo atual deixa em aberto questões cruciais: o desarmamento do Hamas, a governança pós-guerra em Gaza e a retirada total das forças israelenses. Netanyahu já deixou claro que rejeita qualquer solução que leve à independência palestina, e seu gabinete inclui ministros de extrema-direita que ameaçam abandonar o governo caso haja “concessões excessivas”.

Tudo indica que o cessar-fogo pode ser, mais uma vez, uma pausa tática — uma forma de conter o desgaste internacional, apaziguar a pressão doméstica e reorganizar as forças para uma nova ofensiva, especialmente contra o que Israel chama de “infraestrutura residual” da resistência. Enquanto isso, alguma “false flag” é preparada.

Por isso, a cautela expressa pelas autoridades de Gaza — que pediram à população para não se mover livremente nas ruas principais, mesmo após o anúncio do acordo — é não apenas prudente, mas necessária.

A frase do dirigente do Hamas Izzat al-Rishq — “o que Israel não conseguiu alcançar por meio de genocídio, não conseguirá por meio de negociações” — ecoa como um lembrete: a resistência palestina não se rendeu; apenas aceitou uma trégua condicionada à implementação fiel do que foi acordado.

Em última análise, o acordo de 8 de outubro é menos um fim e mais um teste. Um teste de vontade política, de coerência ética e, sobretudo, de memória histórica. Se Israel repetir seus padrões de violação, o ciclo de violência se reiniciará, mais brutal ainda.

Se, por outro lado, as partes — e especialmente os garantidores internacionais — impuserem o cumprimento integral dos termos, talvez se abra um caminho, ainda que tortuoso, para algo além da mera sobrevivência: a dignidade. Até lá, o otimismo deve ser mantido, mas com os olhos bem abertos — e os pés firmes na lição que a história insiste em ensinar.

Por tudo isso, chamar este momento de “acordo de paz” é precipitado. A prudência e a conduta das partes apontam para uma “trégua”. A comunidade internacional tem a chance de provar que pode fazer mais pelo povo da Palestina do que emitir “notas de repúdio”.

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