(foto de João Risi, PR)
Felipe Maruf Quintas (*) e Pedro Augusto Pinho (**)
Entre 19 de dezembro de 2023 e 19 de março de 2024, o Monitor Mercantil publicou a série de 13 Ensaios sobre as Governanças,
na perspectiva histórico política, aqui reproduzida.
I – REFLEXÕES FUNDAMENTAIS
O que significa governar? Impor? Respeitar um poder? Agradar a maioria?Ser “o primeiro servo do Estado” (Frederico II)? Ou “ser escravo do povo”Getúlio Vargas)? O pensamento neoliberal, que domina o mundo euro-estadunidense e suas colônias no século 21, ao desestruturar os Estados Nacionais, tirou-lhes o modo mais natural da sociedade construir sua governança: unir-se em torno do Estado que as unifica e as distingue dos demais.
Na série de artigos que se inicia com estas Reflexões Fundamentais,pretende-se percorrer os instantes mais significativos, na história do mundo,ocidental e oriental, da governança das sociedades.
Não será uma antropologia do poder, pois não se trata da formação das sociedades, que já se encontram construídas. Também não se trata de estabelecer uma cratologia, uma vez que se cuidará da forma de gestão, embora muitas vezes seja necessário apresentar a força motriz daquela governança.
Este trabalho busca uma saída para o impasse governamental em que o Brasil se enfiou quando colocou a saída dos militares do poder como a condição mais necessária para a continuidade do Estado Nacional. E, não satisfeito,buscou demolir sua mais importante herança, a soberania do Estado Nacional.
Tem-se, daí, a primeira reflexão fundamental: a soberania como condição de governança.
É comum ouvir-se, nos tempos que correm, que a democracia é um bem do qual não se pode abrir mão. Mas qual democracia? A ateniense, que estava restrito aos homens, excluía mulheres e escravos e condenou à morte Sócrates,um dos homens mais sábios que já existiram? A construída pelas desinformações que a mídia tradicional, hegemônica, difunde em forma impressa, televisiva,radiofônica, e, ainda mais intensamente, chegam a quase todas as pessoas pelos canais virtuais, acessíveis pelos aparelhos celulares?
E quem for a estes veículos de comunicação para defender a soberania da Nação, sem a qual nada é possível: nem democracia, nem cidadania, nem qualquer garantia de direitos, sofre imediata censura e perseguições, como um criminoso,um inimigo do povo.
Outra reflexão fundamental para se compreender a governança é a participação; tanto mais numerosa, mais representativa; tanto mais intensa,mais democrática.
Observe-se a questão da economia, que os atuais detentores da governança ocidental colocam como o mais relevante e difícil desafio de seus governos. A economia privada não é a que conduz a Nação, como propagam os arautos liberais desde o século 18.
Ao contrário, não existe economia privada sem o ordenamento público da moeda, das leis, das instituições, das infraestruturas que são, por definição,coletivas. Como pode a economia privada ser soberana se ela é derivada dos modos de organização política e social constitutivos da Nação?
Mesmo para aquele que se apresenta como líder da democracia ocidental,com projeto de ser a única liderança do mundo globalizado, os Estados Unidos da América (EUA), é o Estado, principalmente pelo permanente estado de guerras que mantêm e assim justifica jorrar recursos públicos para as empresas e outras instituições privadas. E disso resulta a impagável dívida de sua moeda, que desaba nesta terceira década do século 21.
As governanças se distinguem pelas culturas das sociedades. Tem-se,portanto, que não existe um modelo geral de governança, mas os diversos arranjos entre as condições materiais, geológicas e geográficas dos países e acultura que a dialética dessa relação do homem com seu meio ambiente formaram.A esta resultante denominar-se-á nacionalismo. Portanto, as governanças representam um resultado das construções dos nacionalismos.
Porém, a sociedade humana não se constitui de ilhas isoladas. Ao contrário, elas interagem permanentemente pelo caminho do comércio ou da colonização.
Ambas vertentes conduzem a modelos de governança. Uns nacionalistas e soberanos, outros, como se referia o genial pensador brasileiro Darcy Ribeiro,como mera projeção de pensamentos e modos de vida estrangeiros.
O comércio deve ser entendido como sistema de trocas. Estas trocas nãose limitam a produtos que sejam necessários para um País e produzidos em abundância por outros. Elas envolvem contatos culturais, tecnológicos, de serviços em todas as necessidades, porém, sempre respeitando a soberania e a cultura de cada nação envolvida.
Já Montesquieu se referia ao “doux commerce”, que suavizava o trato dos povos e fazia prevalecer a diplomacia sobre a guerra.
Este iluminista francês, contudo, não era um apóstolo do livre-comérciomanchesteriano, ideologia colonialista da Grã-Bretanha, primeira potência industrial. Por isso, defendia restrições ao comércio seja para desenvolver o país, seja para impedir os comerciantes de exercer poder indevido. O comércio seria um instrumento, não um fim em si mesmo.
Na medida em que cada Estado busca utilizar o comércio para alcançar seus próprios fins, ele deixa de ser um instrumento pacificador e se torna de conflito; o jogo de soma positiva cede lugar ao de soma zero. O comércio nunca existe em si, em alguma medida sempre se relaciona a interesses estratégicos nacionais, nem sempre convergentes.
Daí que os acordos entre diversas nações são sempre difíceis, pois, para encontrar um denominador comum, haverá de ser aceita alguma restrição pelas nações formadoras do pacto. O modelo de negociação de pares de nações será sempre mais respeitoso.
Os grandes acordos só poderão tratar de condições de grande homogeneidade, como da repressão ao tráfico de pessoas e outras disfunções sociais amplamente consideradas nefastas e legalmente reprimíveis. Em outra ponta,quase oposta, na ajuda ao combate a epidemias que grassam pelo mundo, na minimização das consequências de tragédias naturais, vulcânicas, tsunamis e semelhantes.
A paz é condição fundamental, e o comércio, não criando qualquer tipo de dominação, de sujeição a imposições alienígenas, foi, historicamente, o grande fator de progresso humano. Mas a paz não tem sido o caminho da humanidade.
O Ocidente, entendido como a Europa, sempre se utilizou da força para obter seus ganhos fora do âmbito geográfico europeu. As guerras, ocorridas na África, na Ásia e nas Américas pré-colombianas, resultavam de disputa pelo poder e mesmo como uma demonstração de prestígio. Foi a Europa, sucessora das culturas do Oriente Próximo, que buscou o ganho material, apossar-se de bens,de obter rendas de outros povos para o conforto de suas elites.
A paz é a condição indispensável para a existência e o desenvolvimento humano, principalmente quando a energia nuclear for a única possível para manter e promover o crescimento da humanidade.
O mundo, nestes últimos três mil anos de existência, conheceu experiências bem sucedidas e malogradas.
Alguns insucessos foram ocasionados pelos meios que o ser humano condena desde a aurora da civilização. Porém nem toda governança segue padrões éticos,como se constata na história.
Os momentos significativos da governança e suas fontes, na história mundial, compõem os conteúdos destes ensaios. Contemplam, assim, os grandes temas da ciência política e os elementos que deixaram para as reflexões que se encontram nestes ensaios.
II – A CHINA CONFUCIANA
Anne Cheng, em “História do Pensamento Chinês” (1997), escreve: “O pensamento chinês não procede tanto de maneira linear ou dialética e sim em espiral. Ele delimita seu objetivo, não de uma vez por todas mediante um conjunto de definições, mas descrevendo ao redor dele círculos cada vez mais estreitos. Isso não é sinal de um pensamento indeciso ou impreciso, mas antes da vontade de aprofundar um sentido mais que de esclarecer um conceito ou um objeto de pensamento.”
Cheng ainda explica que falta no pensamento chinês a teorização, como encontrada no pensamento ocidental à maneira grega ou escolástica ou em qualquer elaboração decorrente de doutrina religiosa. “Não há verdade absoluta e eterna, mas dosagens. Daí resulta que as contradições não são percebidas como irredutíveis, mas como alternativas”. Em vez de termos que se excluem, veem-se oposições complementares que admitem passar do indiferenciado ao diferenciado,numa transição imperceptível.
Neste sentido, a dialética ocidental, arquitetada por Hegel, é a única que possui característica semelhante, e, por isso mesmo, jamais foi sistematizada enquanto organização do poder no Ocidente, sequer compreendida,seja pelos seus supostos adeptos, os marxistas, seja pelos seus antagonistas,os popperianos da “sociedade aberta”.
Esta característica de aprofundamento do conhecimento se transfere para a complexidade das decisões da governança, que envolvem questões externas à capacidade do que decide (individual ou coletivamente), tais como as relativas aos fenômenos da natureza, as implicações políticas, sociais, econômicas nomeio e fora do âmbito da governança.
Muito importante é a capacidade de usar as manifestações contrárias para enriquecer a alternativa decisória. Este é o sucesso do mundo multipolar, onde são descartadas as decisões impositivas, colonizadoras, pelas consensuais, harmônicas.
Antes de tratar da governança chinesa no século 21, é necessária breve síntese do que legaram Lao Zi e Confúcio, na designação chinesa Kong Fu Zi(Mestre Kong), 500 anos antes da era cristã.
No milênio que antecedeu a Era Cristã, surgiram quatro caminhos que deram origem ao pensamento humano. Formados, grosso modo, no mundo grego, no monoteísmo hebraico, no hinduísmo e no confucionismo.
A grande diferença do confucionismo dos demais é a origem humana,diferente da divina, extraterrena, dos demais. E por ser também o único que,pela primeira vez na história do pensamento humano, propõe uma concepção ética para o ser humano, pelo próprio homem.
Duas palavras sintetizam este pensamento: “tao”, que significa caminho,e “te”, a virtude. Se no caminho o homem constrói o conhecimento, a soma das verdades, ela só terá sentido se o homem tiver o sentido moral da existência.
No confucionismo não se esperam recompensas, neste nem em qualquer outro mundo. Um milenar conceito taoísta vem da enigmática figura de Tzu Lu que indaga: como os espíritos devem ser servidos? Ao que Confúcio responde: se não sou apto para servir os homens, como posso servir aos espíritos.
Inicie-se com esta questão a governança na China. Trata-se de servir seu povo. “A posição do povo como dono do país é uma característica inerente à política democrática socialista” (Relatório do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCCh), 2017).
Para que se torne efetiva esta conclusão, diversas medidas devem ser adotadas.E elas começam a se formar a partir de 1919.
O Tratado de Versalhes, confirmando ter sido a 1ª Grande Guerra um conflito europeu, não mundial, e pela expansão colonial, principalmente com a entrada tardia da Alemanha e da Itália, cujas unificações se deram em 1871,obrigou a China a transferir territórios para o Japão. Fato que, em 04 de maio de 1919, levou professores e estudantes de Beijing a saírem às ruas para protestar. Rapidamente tomou o país, atingindo Xangai, Cantão e outras cidades importantes, prolongando-se durante um ano e meio. Com este movimento, o proletariado chinês passou a aparecer no movimento político do país.
Que se atente ao fato de já existir na China um proletariado suficientemente numeroso para se fazer presente na história. O que desmente a visão, condescendente, mas ainda assim imperialista, de que a China, no início do século 20, era um país “atrasado”. Não era atrasado, era subjugado, que são contextos diferentes.
Um país com grandes centros industriais e toda uma integração territorial que remontava há milênios jamais poderia ser “arcaico”. Subjugado,sim, pela força das armas estrangeiras, mas disposto a tomar de volta o que lhe é de direito pela afirmação nacionalista do seu existir, o que efetivamente era o objetivo dos trabalhadores e de outros setores sociais chineses naquele momento.
O Movimento de 4 de Maio constituiu a mudança da revolução democrática do velho tipo para a revolução de nova democracia e possibilitou a propagação do marxismo-leninismo, preparando a fundação do Partido Comunista da China(julho de 1921).
Vê-se a entrada do ocidente, pelas próprias mãos chinesas, com o marxismo, mesmo com a sinização promovida por Mao Tse Tung, líder da Revolução Chinesa de 1949 e seu primeiro dirigente.
Na verdade, desde o fim do século 18/início de 19, o pensamento chinês foi mais intensamente confrontado com o ocidental.
Coincide com a expansão do capitalismo europeu não mais pela “mão divina” – jesuítas em 1582 – mas pela industrialização e pela abertura na sociedade de classes, consequência da Revolução Francesa (1789).
Episódio aparentemente sem importância – a arrogância do embaixador Lord McCartney perante o imperador Qianlong – deu início a animosidades que levam à Guerra do Ópio (1839), e marcam a derrocada do Império e dos reinados manchus:Qianlong (1736-1796), Jiaqing (1796-1820), Daoguang (1820-1850), Xianfeng(1850-1861), Tongzhi (1861-1875), Tzu Hsi (1875-1908), e Xuantong (1908-1912).
A tradição chinesa dos letrados, assessores filósofos dos dirigentes,sofre com o contato ocidental. Surge a corrupção e o imobilismo burocrático que marcam o início do século 19, na governança de Jiaqing.
Ao término da I Guerra do Ópio (1842), as potências ocidentais obrigamos chineses à abertura dos portos aos produtos estrangeiros e a conceder numerosos privilégios e direitos. Neste momento Wei Yuan (1794-1857) conclui seu “Memorial” (“Sheng wuji”), que propõe renovação de armas, “reprimir os bárbaros usando os meios dos bárbaros”, ter como alvo potencial chinês a conquista da Índia britânica, e a reforma institucional. Em 1856 começa a II Guerra do Ópio, envolvendo a Grã-Bretanha e a França, que durou quatro anos.
O período que vai das guerras do ópio até 1919 é conhecido como o século das humilhações.
O confucionismo passa a ser alvo de severas críticas por deixar o país sem defesa em face das agressões ocidentais e nipônicas. Surge a Rebelião Taiping (1851-1864), ao sul, e dos Nien (1851-1868), ao norte, incêndio no Palácio de Verão (Jardins da Perfeita Claridade), revolta da minoria muçulmana,dos Boxers (1899-1901), e, por força do Tratado de Nanquim, que pôs fim a 1ªGuerra do Ópio, é criada a Bolsa de Valores de Xangai, Shanghai Stock Exchange(SSE).
Na passagem do século 19 para o século 20 surgem duas iniciativas queprocuram absorver o ocidente no pensamento de Confúcio, a de Liang Qi Chao(1873-1929) e de Tan Si Tong (1865-1898).
Liang busca o regime parlamentar, os direitos sociais e, sobretudo, aigualdade dos sexos, que lhe pareciam o caminho para o reerguimento chinês. Tanse volta para as religiões, a soma de elementos do budismo, da espiritualidadecristã, com um novo confucionismo. “Para mim é o conhecimento e não a ação que têm mais valor. O conhecimento está da alma, a ação no corpo” (Estudo sobre a humanidade, 1896).
Na China vivem 56 grupos étnicos, mas os “han” constituem 91% da população. Portanto o nacionalismo chinês, de algum modo, está associado à etnia, e guarda certo ressentimento dos manchus, o segundo mais populoso entre as minorias e que governou a China, e, sobretudo, a desconfiança dos estrangeiros.
Nesta transição do século 19 para o século 20, encontram-se os letrado sem tal estado de perplexidade que propõe até a compreensão de que a herança intelectual não se dirige aos “han”, mas ao mundo.
“Os Anais das Primaveras e Outonos não estavam destinados a um só país,mas ao mundo inteiro; não valiam para uma só época, mas para a eternidade”(Liang).
Pode-se entender o marxismo como resposta a estas perplexidades, o que explicaria sua ampla e geral aceitação pelos chineses, a partir da Longa Marcha de Mao Tse Tung, 12 mil e 500 quilômetros, entre 16 de outubro de 1934 e 20 deoutubro de 1935, em condições extremamente difíceis.
A governança sob o Partido Comunista Chinês, dirigido por Mao, pouco diferia dos países comunistas após a 2ª Grande Guerra. E a liderança da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), malgrado os inegáveis êxitos nos campos da tecnologia e das melhores condições de vida, sem distinção para todos cidadãos, acomodava-se na burocracia partidária.
Os dez anos – 1966 a 1976 – da Revolução Cultural Chinesa ainda não encontraram análise abrangente. Chama a atenção o desrespeito com que tratou o passado e as instituições, e até mesmo os dirigentes chineses reconhecem prejuízos à educação, à produção, à cultura, enfim, ao país. Porém, pode-se avaliar como a tentativa bem sucedida de impedir a acomodação e corrupção burocrática, como ocorreram em outros países comunistas e os levaram ao retorno da governança capitalista.
De todo modo, as críticas internas à Revolução Cultural possibilitaram a abertura econômica da China nas últimas décadas do século 20.
Anne Cheng coloca a questão: “Se modernização significa necessariamente ocidentalização, há um risco real de alienação e de perda da identidade cultural?”.
Xi Jinping dá a resposta no discurso “Concretizar uma sociedade moderadamente próspera e realizar o sonho chinês”, antes do 19º Congresso Nacional do PCCh.
“O socialismo com características chinesas é o tema de todas as teorias e práticas do nosso partido desde o início da reforma e abertura em 1978. Todo partido deve erguer bem alto a grande bandeira do socialismo com características chinesas e ter firmes convicções no caminho, nas teorias, no sistema e na cultura do nosso socialismo para garantir o avanço vitorioso das causas do Partido e do Estado por caminho correto”.
Devemos ter em mente as características das diferentes fases do desenvolvimento do nosso país e o desejo do povo por uma vida melhor, formular novos delineamentos, estratégias e medidas e continuar promovendo o desenvolvimento coordenado da economia, política, cultura, sociedade e eco civilização e as ‘quatros disposições estratégicas integrais’ – a conclusão da construção integral de uma sociedade moderadamente próspera, o aprofundamento integral da reforma, a administração integral do país conforme a lei e a administração integral e rigorosa do Partido – para conquistar a vitória decisiva na construção da sociedade que desejamos e a grande vitória do socialismo chinês, bem como lutar incansavelmente para concretizar o sonho chinês da grande revitalização da nação (26/07/2017)”.
A China confuciana vai além do “tao” e do “te”, claramente referidos neste pequeno trecho de Jinping, também se curva aos ritos e às regras que têm de estar de acordo com o tempo.
“Quando o Caminho prevalece no reino, fale e aja destemidamente e com altivez; quando o Caminho não prevalece, aja destemidamente e com altivez, mas fale com reserva e de modo suave” (Confúcio, Analectos, 14, 3).
Daí o “socialismo de mercado”, fórmula confuciano dialética que exprime a utilização dos mecanismos de concorrência em favor do planejamento estatal e vice-versa. O desenvolvimentismo chinês, assim, supera a dicotomia mercado x Estado, em voga no Ocidente neoliberal, e resgata a noção da economia como economia política, a serviço dos interesses maiores do soberano. Uma vez que a China não é Estado-nação e sim Estado civilização, o socialismo de mercado desponta como afirmação da tradição histórica no contexto das novas tecnologias e requisitos geoeconômicos e geopolíticos da soberania.
A democracia chinesa, da mesma forma, não tem a mesma estrutura eleitoral das ocidentais. A ênfase está na participação. O Relatório do 19ºCongresso do PCCh reiterou que o sistema de assembleias populares constitui o arranjo político fundamental que integra, organicamente, a posição do povo como dono do país com as lideranças partidárias e a administração da República Popular da China.
É preciso estar seguro que o povo exerce seu poder pelo sistema das assembleias, espalhadas por todo território do país, e que seus comitês permanentes exerçam de modo correto e democrático suas funções e aperfeiçoem os sistemas organizacionais e executivos.
O Partido Comunista da China recebe anualmente milhares de candidatos a seus quadros, que passam por criteriosa seleção para serem admitidos. Em 2020,os membros do PCCh representavam o dobro de pessoas das cinco maiores etnias na China (zhuang, manchu, hui, miao e uigur), e dez vezes dos mongóis e tibetanos residentes no território chinês.
Não existe partido político no mundo, exceto na Índia, que tenha cerca de 10% da população de filiados, como no PCCh. É a democracia participativa que sustenta a governança da China.
III – EGITO, MESOPOTÂMIA E GRÉCIA
O moderno Estado-nação não existia durante a Antiguidade. As formas estatais então predominantes eram as da cidade-estado, restrito a um povo, e do império, que organizava em pletora de povos a partir de uma autoridade central.
Naturalmente, houve múltiplas constituições e governanças, como analisadas por Aristóteles, no Livro II de “A Política”. Coexistiram democracias, oligarquias, monarquias, aristocracias e vários tipos de formas mistas, bem como impérios marítimos e telúricos.
Em todas elas, a economia não ocupava a posição central que as atuais governanças lhe conferem. Ainda que a produção e a distribuição dos bens materiais e financeiros constituíssem questão estratégica dos soberanos, tanto mais porque serviam de suporte material para o exercício do poder, elas não eram entendidas à parte dos aspectos políticos e religiosos, que se manifestavam de forma invariavelmente unificada, já que não se concebia a separação entre a polis e os deuses, entre os assuntos de Estado e os assuntos divinos.
Não existiam as noções correlacionadas de economia, de mercado e de sociedade civil, enquanto instâncias apolíticas e seculares definidas pela interação dos interesses utilitários privados. No máximo, havia a ideia grega de “economia doméstica” para designar os assuntos do lar, inclusive os de ordem comportamental e sentimental, de pouca ou nenhuma valia até mesmo para o que hoje chamamos de economia doméstica, quanto mais de economia.
Os aspectos hoje chamados de econômicos faziam parte da administração pública e das artes religiosas, não como domínios separados, mas como técnicas do poder e da religião.
Desse modo, as governanças não tinham por objetivo último elevar o produto interno e ampliar a capacidade média de consumo, mas equilibrar as forças sociais em torno do poder central e zelar pela vivência coletiva do sagrado. A administração dos recursos materiais e financeiros era entendida como instrumento de realização de valores extraeconômicos.
Abordemos sucintamente três das grandes civilizações: a egípcia, a mesopotâmica e a grega.
Egito
A civilização egípcia desenvolveu-se ao longo do curso do rio Nilo.Definiu-se em sucessivas etapas históricas – o Antigo Reino, o Médio Reino e o Novo Reino -, entremeadas por períodos de crise e indefinição que preparavam novos arranjos sociais e culturais que atualizavam as características civilizatórias básicas.
O principal fator de estabilidade da civilização egípcia foi idealização do faraó como divindade, como filho de Horus. O faraó representavao elo do divino com o mundano, do cósmico com o histórico, e assim mantinha coeso
todo o sistema social em sua cadeia hierárquica.
A ordem política refletia a ordem cósmica e conferia caráter sagrado àsrelações de mando e obediência, inscritas em ordenamento superior etranscendente. O sentido de imutabilidade se associou à concepção cíclica dahistória, na qual as mudanças eram apenas o movimento circular e perpétuo de umtodo, que jamais se transformava.
Em torno do faraó se estabeleceu um corpo administrativo bastantesofisticado, composto de funcionários especializados. Havia quatro grandesdepartamentos administrativos: o Tesouro, a Agricultura, a Justiça e o ArquivoReal. O vizir, espécie de superministério, supervisionava os departamentos, o Exércitoe as administrações das províncias, chamadas “nomes”.
Toda a economia imperial estava subordinada ao faraó e, portanto, àordem cósmica sagrada. Segundo Darcy Ribeiro, nos tempos de Ramsés III(1198-1167 a.C.), “o poder estatal atuou como vastíssima empresa financiadora eadministradora de enorme patrimônio produtivo. Contava com 750 mil acres deterras cultiváveis, 107 mil cativos engajados no trabalho, 500 mil cabeças degado e uma frota de 88 navios, além de 53 fábricas e estaleiros” (“O ProcessoCivilizatório”, 1972).
O peso da escravidão, contudo, foi exagerado pelo relato hebraico, pois,na realidade, não teve tanta importância como outras modalidades de trabalho, aexemplo da servidão e do recrutamento de camponeses livres, além de que osescravos contavam com proteções legais e podiam ser libertados. A sociedadeegípcia era relativamente complexa, apresentando classes superiores, médias einferiores.
As pirâmides evidenciam como a capacidade criadora dos egípcios foisocial, política e econômica, uma vez que tudo que existia era sagrado.
Ainda assim, houve momentos de instabilidade, sobretudo em relação àdistribuição do poder. Intercalavam-se períodos de centralização, quando ofaraó fortalecia sua posição de comando e subordinava o funcionalismo público,e de descentralização, quando a debilidade do faraó permitia aos funcionáriospúblicos converterem-se em nobreza hereditária e dividirem o seu poder, o quevulnerabilizava o império frente a ameaças estrangeiras.
Os sucessivos assaltos externos e usurpações dinásticas enfraqueceram aconsciência do caráter divino do faraó, o que fraturou a ordem política e a fezperder sua coerência. O sistema egípcio, calcado na crença do faraó como deus,não resistiu à secularização e ao relativismo conseguintes às vicissitudeshistóricas. Desprovida da solidez do sagrado, a governança imperial egípciaruiu.
Mesopotâmia
A civilização mesopotâmica, que ocupava área equivalente, em linhasgerais, ao atual Iraque, inicia-se com os sumérios, a primeira civilização quese tem registro. Os sumérios desenvolveram a escrita e, consequentemente,religião e cultura unificadas e próprias, assumindo identidade específica ediferenciada.
A integração de diversas aldeias em cidades-estados organizadas em tornodo templo principal, por sua vez, permitiu aos sumérios criar e administrararrojados sistemas de irrigação e plantio, sustentando materialmente acivilização.
Cada cidade-estado pertencia a uma divindade e por ela era governada.Toda a organização social fazia parte de um complexo cósmico; a ordem,informada pela religião, era uma necessidade sagrada. O Estado políticorefletia a hierarquia cósmica regida pelo deus Anu. Como afirmou HélioJaguaribe, “O Estado como um todo estava a serviço político de seu deus, naqualidade de membro oficial do Estado cósmico” (“Um Estudo Crítico da História”,I, 2002).
A administração da economia e da sociedade era voltada a cumprir osdesígnios religiosos, de modo que a governança se revestia de sentido teológicoe absoluto. A sacralização da cidade também era a do governo. O mando e aobediência inscreviam-se no domínio cósmico, de modo que a rebeldia e adesobediência eram não apenas faltas morais e civis, mas a negação do ser.
A partir dessa configuração, os sumérios forneceram a estrutura básicade toda a civilização mesopotâmica. A eles se fundiriam os acadianos, gerando acivilização sumério-acadiana, que, por sua vez, se desdobrou em duas, ababilônica e a assíria.
Enquanto a Babilônia obteve protagonismo econômico e cultural,tornando-se o maior centro cosmopolita da época, a Assíria destacou-se noâmbito militar, buscando subjugar pelas armas os demais povos. Não se podeignorar a força militar da Babilônia e a pujança econômica e cultural daAssíria, porém esses não foram seus fatores determinantes.
Embora bastante avançadas em seu tempo, nem a Babilônia e a Assíriaconseguiram firmar seus impérios, pois não conseguiram alcançar o sentidouniversal de ordem política, próprio do império, limitando-se àscaracterísticas e realidades das suas respectivas cidades-estados. Enquanto adominação assíria degenerou em brutalidade e extermínio, a Babilônia sedesorganizou internamente, com as recorrentes tentativas de usurpação do tronoe com a crescente separação entre o governo e as classes influentes,consequência da modernização e secularização políticas experimentadas pelaBabilônia ao longo do tempo.
Enquanto a Assíria foi derrotada militarmente por uma coalizão lideradapelos babilônios, esses, posteriormente, foram conquistados pelos persas,dotados de sentido verdadeiramente universal de política e sociedade,consistindo em império no sentido profundo do termo.
Grécia
A Grécia Clássica, a seu turno, constituía uma constelação políticadentro de uma unidade etnocultural. As diversas cidades-estados, caracterizadaspor sistemas de governanças bastante díspares, eram manifestações diversas domesmo povo, na ação político-administrativa, formado pela ancestralidadesemelhante e comungante das mesmas crenças e deuses, ainda que cada cidade tivesseseu próprio deus protetor.
A polarização entre Atenas e Esparta tornou-se arquetípica e encontraecos até a atualidade. A dicotomia entre sociedade aberta e sociedade fechadatraduz, para a linguagem contemporânea, a dualidade de sistemas sociopolíticosentre Atenas e Esparta, respectivamente.
De um lado, a democrática Atenas, a “sociedade aberta”, fundada naigualdade dos cidadãos, coexistente com grandes desigualdades econômicas e noregime escravista privado.
A governança ateniense, calcada no livre debate público entre oscidadãos – entre os quais não se incluíam mulheres, crianças, escravos eestrangeiros -, logo se corrompeu com a sofística, levando Atenas ao declínio.A condenação capital de Sócrates, que se bateu contra os ardis e a manipulaçãoreinantes, mostra o quão a democracia ateniense estava afastada da excelênciaética e política.
De ouro, a timocrática Esparta, a “sociedade fechada”, fundada namilitarização social e na insignificância da propriedade particular, o queassegurou relativo nível de igualdade econômica, contrabalançada apenas peloescravismo, de todo modo estatal, sem possibilidade de enriquecimentoindividual.
A governança espartana orientava-se sobremaneira para a guerra, que, porisso, ocupava posição de relevo no sistema educacional estatal. O idealespartano era o da coragem militar, o que inibia os anseios individualistas porenriquecimento e autopromoção, comuns em Atenas. Serviu, pois, de modelo adistintos pensadores críticos dos modos mercantilistas de organização coletiva,a exemplo de Platão e Jean-Jacques Rousseau.
A Guerra do Peloponeso opôs Atenas e Esparta, com o triunfo da segundasobre o mundo grego. A hegemonia espartana, contudo, fora precária e instável.A unificação política do mundo helênico se deu no século 4 a.C, com Filipe IIda Macedônia, que conquistou as cidades-estados gregas com vista a preparar oataque contra a Pérsia, que seria derrotada por seu filho Alexandre.
A Macedônia contava com sistema administrativo de alto nível, operadopor aristocracia refinada e culturalmente elevada. O esplendor macedônico dostempos de Filipe II ganhou alcance universal no reinado de Alexandre, queestendeu o helenismo ao oriente, levando-o até a Índia. Alexandre herdou do paio respeito à autonomia e aos modos de vida dos povos conquistados, de modo aincorporá-los e não subjugá-los, em muitos casos até os ajudando a recuperar aidentidade perdida. Não eram os povos, mas príncipes que ele submetia.
A grande inovação alexandrina consistiu em promover decididamente amiscigenação étnica e cultural dentro do império, de modo a fortificar euniversalizar o helenismo em sua marcha orientalizante. Como afirmou umhistoriador, “Alexandre fundiu, em suas formas supremas, a ardente vitalidadeda Grécia, que aspirava a encontrar um corpo, e as massas inertes da Ásia, queaspiravam a encontrar uma alma” (Johann Gustav Droysen, “Alexandre o Grande”,2010).
Não seria o Brasil, império igualmente mestiço, continental e jovial, aMacedônia da modernidade? Não seríamos nós os herdeiros da missão deuniversalidade e integração dos povos outrora planteada por Alexandre
IV – A ESPADA E A LEI ROMANAS
Impondo-se inicialmente pela espada, Roma deixou para o mundo ocidentala lei como base da governança. Das vertentes com as quais se construiu agovernança no Ocidente, assim entendido os povos do Atlântico, uma está odireito, formalmente estabelecido pela sociedade, outra está na sujeição dohomem a um Deus, mas, sempre, o uso da força.
A história de Roma agrega mitos, obras literárias e realidadesarqueológicas, mas é o fratricídio que dá início à construção da civilizaçãoromana, e é um indício que a espada representará a primeira força do poder.Porém o realismo dos governantes imporá, pela construção da lei, a governançapara abrigar a diversidade de povos que habitavam, no século 8 a.C., o espaçoentre os rios Pó, Reno e Volturno, os falares: etrusco, úmbrico, sabino,volsco, marso, peligno, falisto e latino.
Esta incorporação de povos e sua miscigenação, que está na própriaorigem de Roma, será das principais forças para a manutenção do Império comonenhum outro até então conseguira construir.
Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.), autor da célebre História de Roma (“AbUrbe condita”) assinala que os etruscos, ao conquistarem um território,regularizavam o curso dos rios, construíam aquedutos e esgotos, davamprosperidade aos locais e se misturavam com os nativos. Esta herança serádeixada aos romanos em suas ações conquistadoras: a força, a lei e a interaçãosocial.
A expansão das tropas romanas, seus deslocamentos, suas estratégias etáticas de luta são por demais conhecidos, para que se detenha na governançapela espada. Poderíamos acentuar a questão da integração, com as cavalariasnúmidas, os guerreiros hispânicos, germanos e trácios. Também as reformasintroduzidas pelo general e político Caio Mário (157-86 a.C.), na República,que permitiram a incorporação dos “proletários” nas legiões e a uniformizaçãodos armamentos. São demonstrações do entrosamento dos latinos com demais povos.
Mário também deu ao exército função permanente; até então ele eraorganizado no mês de março (primavera) e desmobilizado no outono.
Os romanos não eram apreciadores do mar, embora fizessem comércio efossem obrigados ao deslocamento pelo Mediterrâneo. Catão, o Velho, sepenitenciava de haver viajado por mar quando poderia tê-lo feito por terra. LeoBloch (“Les institutions romaines”, 1898) assinala: “Os romanos não equiparavamo serviço na frota ao serviço militar” e “somente em casos excepcionais eramorganizadas grandes frotas ao serviço do exército e para proteção do litoral”.
Após a República, no Império, Roma já dispensava a frota, o Mediterrâneose transforma no “Mare Nostrum” e a marinha estava dividida em oito esquadraspara luta contra piratas.
IUS CIVILES
Importante elemento da governança romana é o direito. Foi o que maisinfluenciou o Ocidente mesmo quando Roma era apenas uma página da história dospovos. Lévy-Bruhl (1857-1939), sociólogo e pensador francês, distingue três característicasno Direito Romano, assim discorridas por Vandick Londres da Nóbrega (“Compêndiode Direito Romano”, 1970, 6ª edição revista e aumentada).
“O positivismo do direito romano manifesta-se através do seu laicismo,de sua inspiração mercantilista e da predominância dada à expressão davontade”. Nóbrega assinala que “o povo romano era supersticioso, nãoreligioso”, daí seu direito ser laico. Neste direito, a questão econômica semanifesta na mercancia, nas trocas, nas transações, e na precisa definição dascoisas, mas não na construção de fortunas ou acúmulo de bens. E, por fim, édada importância à manifestação, à expressão da vontade ao invés de inferi-la,de buscar intenções, limitando assim a esfera dos julgadores.
A legislação tinha também o título de “Ius Civile”, pois nela seencontravam os direitos das pessoas, sua família, seus negócios, e não o quedenominamos público, ou seja, de interesse do Estado. Os aspectosmercantilistas, que aparecem na propriedade e nas obrigações, dizem respeito aoindivíduo não à coletividade. O direito romano não é um direito de cidadania, éum direito liberal, de direitos e deveres individuais, onde se encontram asdisposições sobre os ritos dos processos.
Os capítulos do direito romano são: direito das pessoas, direito dafamília, direito das sucessões, direito das coisas, direito das obrigações edireito processual.
A permanência do Direito Civil Romano pode ser vista, por exemplo, noCódigo Napoleônico, ou Código Civil dos Franceses, de 1804, que trata das pessoas(livro I), dos bens e das diferentes modificações da propriedade (livro II),dos diferentes modos pelos quais se adquire a propriedade (livro III, ondeestão o casamento, a sucessão, a doação, os contratos e as diferentes espéciesde obrigações, com disposições processuais).
Comparando com o Código Civil Brasileiro, de 2002, vê-se que apenas nãotrata dos processos, que constituem código brasileiro específico, existem neledois grandes grupos: Parte Geral e Parte Especial. A primeira comporta trêsdivisões, designadas por Livros: (a) das pessoas; (b) dos bens; (c) dos fatosjurídicos. A parte especial é composta dos Livros sobre: (a) do direito dasobrigações; (b) do direito da empresa; (c) do direito das coisas; (d) dodireito da família; e (e) do direito das sucessões.
“Lex societatis vinculum est”, a lei é o laço que envolve todasociedade, afirmava o político, escritor, orador e filósofo romano Cícero (106a 43 a.C.). Para Montesquieu (1689-1755), a lei objetiva estabelecer regraspara governar a sociedade, com suas diferentes instituições, mas que devem terpor objetivo o bem comum.
A formação do direito romano foi o longo processo que acompanhou ahistória daqueles povos autóctones da península italiana, por mais de 800 anos.Patrícios e plebeus uniram suas cúrias, pelo ano 753 a.C. para organizar aMonarquia, sua primeira governança. Organizaram um poder que conversava com osdeuses, dos Sacerdotes, outro com os homens, o Senado, e ambos assessoravam oRei, que falava ao povo, fundamentalmente latinos e sabinos, nas colinaspróximas ao rio Tibre, com eventuais participações etruscas, que por lá faziamincursões periódicas. Mas foram os etruscos quem deram a estrutura que formou acidade de Roma.
Os reis etruscos passaram a governar Roma a partir de 640 a.C. até 509a.C., quando foi deposto Tarquínio, o Soberbo, e tem início a República, comoutra e mais complexa estrutura de governo.
O período da República de 509 a 27 a.C. foi dos mais férteis para opoder romano. Nele se deu a origem da Lei como poder, com a revolta de 445a.C., a Lei das 12 Tábuas (Lex Duodecim Tabularum), e a repartição do poder.
A sociedade continuava dividida, apenas os patrícios gozavam de todosdireitos civis: ius suffragii – direito de votar, ius honorem – direito deexercer cargo público, e ius occupandi – direito de ocupar as terrasconquistadas.
Os comícios das centúrias e das cúrias elegiam os censores, cônsules,pretores, edis, tribunos e questores, que escolheriam os 300 (depois 600)senadores que nomeavam o ditador. Em 471 a.C., a plebe constitui sua própriaAssembleia que elegerá tribunos e edis, e deterá o poder de veto nas cúrias.
A Lei das 12 Tábuas veio reduzir o direito consuetudinário epossibilitou criminalizar patrícios e reduzir seu poder, como o loteamento domonte Aventino, em 454 a.C. e o envio de comissão a Atenas, para estudar oscostumes, usos e leis das cidades gregas.
As guerras púnicas, a expansão romana pela Ibéria, Numídia, penínsulabalcânica, por todo entorno do Mar Mediterrâneo, obrigou a organizar asprovíncias e a constituir, ao lado do “ius civiles” o direito dos entãonumerosos estrangeiros que existiam sob o poder romano, o “ius gentium”.
Se o Império foi o ponto alto do poder, também significou a incorporaçãode inúmeros usos, costumes, muitas vezes contraditórios entre si, e umareligião, surgida na Galileia, que conduziu Roma ao fim.
A GOVERNANÇA NO IMPÉRIO
Sálvio Juliano (circa 100-170 d.C.) “nem todos os artigos podem sercompreendidos detalhadamente pelas leis ou pelas consultas ao Senado; masquando, em determinado caso, a manifestação for clara, o direito evidente,inquestionável, aquele encarregado da aplicação jurisprudencial procederá comojá estabelecido e, assim, pronunciar-se-á o direito”.
No período entre 133 e 27 a.C. a República se desintegra e surgemdiversas reformas na governança de Roma até que César, pela espada, juntapoderes que obriga o Senado a lhe conceder os títulos de Sumo Pontífice, deDitador Perpétuo, de Censor Vitalício, de Cônsul Vitalício, e do PoderTribunício, que o torna sagrado. E César ainda pretende que estes poderes sejamhereditários. É óbvio que nenhum patrício e mesmo muitos homens do povo nãoqueriam um faraó em Roma. Por mais notáveis que fossem sua capacidade,conhecimento, forte personalidade, e realmente era um homem como poucos, adivinização em vida estava fora das expectativas de um Imperador no estágiosócio-político que já atingira a sociedade e a governança romanas.
Augusto, Imperador pela espada, teve a compreensão política ou ahipocrisia que faltou a César, e foi efetivamente quem inicia o Império Romano.
Estava num ápice de expansão: Mauritânia, Cirenaica, Egito, Arábia,Judeia, Síria, Armênia, Capadócia, Trácia, Macedônia, Creta, Nórica, Récia,Bélgica, Aquitânia, Lionesa, Lusitânia, Bética entre numerosas outras regiõesestavam subordinadas diretamente ao Imperador, ou ao Sendo ou eram protetoradosromanos. O governo de Augusto vai de 27 a.C. a 14 d.C.
Reformou os poderes e atribuições. Os magistrados tinham agora somentefunções civis. Os senadores tinham o controle administrativo de Roma e napenínsula italiana, estavam encarregados do Tesouro e da emissão de moedas decobre. As de ouro e prata eram atribuições do Imperador. Augusto criou umConselho, para seus amigos, que chegou a ser mais importante do que o Senado.Nas províncias, separou o poder militar do poder civil, sendo que o primeirorespondia diretamente ao Imperador.
Fez dividir a sociedade plutocraticamente em três ordens: senatorial,para os que possuíam mais de 1 milhão de sestércios; equestre, para os de maisde 400 mil sestércios; e inferior, com menos de 400 mil e sem qualquer direito.Apenas os primeiros possuíam todos direitos políticos, e aos equestres estavamreservados alguns cargos no exército e na administração civil.
Muito explorada pelos analistas da queda de Roma é o relaxamento doscostumes, que fica evidente nas distinções pela riqueza e pelo poder militarque garantia a paz. Buscou restaurar os antigos deuses, que tinham as ambiçõese comportamentos humanos, favorecendo práticas pouco austeras de vida.
Pode-se entender que esta lassidão, aliada à segurança e à riqueza,fizeram com que no Império surgissem os Calígulas, Cômodos, Neros e estivesseRoma apta a receber a palavra de humanidade e igualdade trazida pela religiãocatólica.
Outros fatores, tão ou mais importantes quanto, foram o atrasotecnológico-industrial de Roma, que a levou a ter crescentes déficitscomerciais com a China, então principal potência manufatureira, e o exacerbadomunicipalismo, que, a pretexto de conferir autonomia aos diferentes povos doimpério, dificultou o exercício do poder central, como, por exemplo, na coletade impostos.
Apesar da imagem de Roma brutal e sanguinária, consagrada pelapropaganda anglo-saxã, muito mais afeita ao império financeiro-comercial deCartago, o Império Romano foi o mais pacífico e benfazejo já existente. Suaposição militar era basicamente defensiva, e a consequente paz duradoura foiutilizada em favor de obras públicas, como as majestosas estradas e suntuosasutilidades urbanas (aquedutos, termas, estádios etc.) e políticas sociais, comoleis do máximo e distribuição de víveres, que garantiram a todos padrão de vidasuficiente e relativamente próspero. A cidadania universal dos romanos uniu umamiríade de povos sob os auspícios generosos dos imperadores, que, se seautoproclamavam divinos, também permitiam a liberdade de culto às centenas dereligiões existentes no perímetro imperial.
Porém a estagnação econômica e o arranjo descentralizado logo se fizerampesar, debilitando a posição estrutural do Império, cuja grandeza territorialdemandava largos recursos, cada vez mais inacessíveis. As províncias foram asprimeiras a sofrer as consequências, com o patriciado rural inaugurandopráticas proto-feudais de domínio, subtraindo-se aos comandos de Roma.
Esta situação nas províncias, a partir do século 4, facilitou apenetração dos povos vizinhos (saxões, francos, alamanos e outros germânicos,os vândalos, visigodos e ostrogodos) e insurreições na península ibérica eoutras províncias, que não teriam provocado tantos estragos na governançaromana, fosse outro o espírito da época que encontramos no Império.
V – O TOMISMO MEDIEVAL
Como se observa em diversos momentos da história das sociedades humanas,há progressos e retrocessos, momentos de grandeza e momentos de decadência.Confúcio (552 a.C.), no declínio da realeza Zhou, ganhou seu lugar na históriapela reflexão do homem sobre o homem, na aposta no homem. Mais de 1800 anosdepois, com o doutor da Igreja, Tomás de Aquino (1225-1274), é colocada aquestão dos efeitos do governo divino. O homem passa a ser um servo de Deus.
Na Suma Teológica, a questão 103 trata do governo das coisas em geral,onde encontramos a lógica aristotélica “quando se entra numa casa bem arrumada,esta arrumação ordenada permite perceber a presença orientadora do senhor dacasa”.
Mas quem é o senhor da casa, senão aquele que é o princípio e o fim detodas as coisas?
Os deuses que os homens adoravam, reverenciavam nos primórdios daHistória, eram seres vivos e mortos que faziam parte do seu cotidiano, de reisque eram divinizados, até que surgiu o monoteísmo hebraico.
Lá pelo ano 2000 antes da Era Cristã, grupo semita, cercado de reinos epoderosos vizinhos, ricos, habilidosos e/ou guerreiros – egípcios, caldeus,hititas, sumérios, fenícios, babilônios – que há muito não mais existem, parase considerar igualmente importante, criou um Deus só para eles: Javé ou Jeová.Foi o primeiro povo monoteísta da História e sua religião e as diversas que delasurgiram influenciaram profundamente as governanças da sociedade, e ainda hojeo fazem.
Pode-se entender que o catolicismo, com o Novo Testamento e a IgrejaCatólica, de São Pedro, foi de enorme influência na governança europeia edifundida como religião dos colonizadores, pelo mundo.
O catolicismo proporcionou unidade espiritual à constelação política daEuropa medieval. Mais do que isso, operou como elemento de transcendência,dotando os governantes e governados da época de sentido superior de vida e desociedade, o que, se não impediu a injustiça e a tirania, ao menos as mitigou,atribuindo-lhes o selo da ilegitimidade e estabelecendo os fundamentos éticosde justiça pelos quais até hoje se luta, de forma mais ou menos secularizadamas, de todo modo, cristãmente originada.
Na “Suma Teológica” três questões da 1ª Parte (103,104 e 105) tratam do“Governo Divino”.
O governo das coisas em geral.
Do artigo I, da Questão 103: “Dessa forma, a necessidade natural dascriaturas demonstra o governo da divina providência”.
A ideia que se impõe é que Deus não age como um fator externo, mas “dedentro” dos homens. Faz parte de sua natureza, cabendo ao Divino assegurar oauxílio que o homem necessita para bem realizar o seu papel de agente, cujaexistência se deve a Deus, para cumprir aquilo para o qual foi criado: agir emnome do Criador.
Pode-se considerar até que ponto esta governança divina limita acapacidade do homem e o faz cometer os maiores horrores como as guerras santas,cruzadas, morte aos infiéis, pecadores, ignorar outras culturas nas catequesese as inquisições.
Tal é a leitura feita pelos iluministas. Porém, a própria críticahumanista por eles estabelecida às governanças medievais era mais cristã do quesupunham, pois se baseava na dignidade intrínseca do ser humano, ideia quesomente ganha foro universal com a mensagem de Cristo, dirigida a todosindistintamente.
Se o pecado ou o crime não deriva das relações na sociedade, mas documprimento e da obediência aos desígnios celestes, a possibilidade de salvaçãoou de condenação não está neste mundo. Facínoras em nome de Cristo e da Igrejanunca faltaram, porém eles nunca foram legitimados pelo conteúdo profundo dosagrado vigente.
Ao discorrer sobre esta questão: o fim do governo do mundo é algoexterior ao mundo, Tomás de Aquino afirma que a resposta está no livro dosProvérbios – “o Senhor fez tudo para si próprio”. E conclui: “Deus é exterior atoda ordem do universo. Por conseguinte, o fim das coisas é um bem extrínseco”.Porém, como existe a hierarquia, a ordem que se impõe na sociedade, énecessário separar pelo critério finalista o que obter e sua governança.
É evidente que o bem tem uma razão finalista. O fim particular de umacoisa é um bem particular, enquanto um bem universal de todas as coisas é umbem universal.
Assim, Tomás de Aquino introduz um novo questionamento: há um únicogoverno no mundo? E a resposta introduz a dialética.
Se existe conflito e desacordo entre as criaturas é prova da existênciade contrários e cita o livro do Eclesiástico: “É sempre melhor estarem doisjuntos do que um só”. Logo o mundo estaria governado por vários.
Mas o governo do mundo nada mais é do que a condução dos governados parao fim, que é um bem. Assim, a intenção daquele que governa a multidão é aunidade e a paz. E o governo do que é melhor só pode ser obra de apenas umgovernante.
Esta ideia do mundo unificado e hierarquizado coloca a visão tomista naorganização da sociedade. O mundo das naturezas prossegue para um fim único aolongo de conflitos – que são conduzidos para fins imediatos. Mas todosconvergem para o fim universal, único, de Deus.
O efeito do governo leva à resposta de Tomás de Aquino, quetranscrevemos da Suma Teológica, Questão 103, artigo 4:
“O efeito de uma ação pode ser considerado a partir de seu fim, pois épela execução que se consegue alcançar o fim. O fim do governo do mundo é o bemessencial, e todas as coisas tendem a assimilá-lo e dele participar”.
Porém o efeito do governo pode ser aceito ou compreendido de trêsmaneiras: a partir do próprio fim, a partir das coisas que levam as criaturas àassimilação divina, e pelos efeitos do governo divino, que podem ser tomadoscaso a caso e são, portanto, inumeráveis.
E Tomás de Aquino já se precavia contra acusação de imobilismo aoafirmar que dois eventos eram estabelecidos por Deus: da conservação e datransformação, “na medida em que uma coisa é movida para outra melhor”.
Pode acontecer algo fora do governo divino ou oposto a ele?
Paulo, na Carta aos Coríntios dispõe: “Deus não se ocupa de bois”. ETomás de Aquino adiciona: “Cada um tem de cuidar das coisas confiadas a seugoverno”.
Deus é causa universal, não particular de todo ente. E, prossegueargumentando: “Sob o Sol estão as coisas que, conforme o movimento do Sol, sãogeradas ou se corrompem. Em todas elas se encontra o acaso; o que não significaque tudo o que nelas acontece seja casual, mas que em cada uma delas pode-seencontrar algo casual. O próprio fato de que se encontre em tais coisas algocasual demonstra que estão sujeitas ao governo de alguém”.
De quem mais estão sujeitas as coisas? “Fora da ordem de alguma causaparticular é possível que aconteça algum efeito, não fora da ordem de uma causauniversal”.
Aqueles que pensam, falam ou agem contra Deus não se opõem totalmente aogoverno divino, porque mesmo os pecadores tendem para algum bem. Mas se opõem aum bem determinado que lhes é conveniente por natureza ou por estado. E, porisso, são punidos por Deus com a justiça.
O mundo medieval europeu.
Paul Vignaux (1904-1987), filósofo e medievalista francês, em “La Penséeau Moyen Âge”, 1938, escreve: “Ao lado do Sacerdócio e do Império, aUniversidade surge aos contemporâneos como uma das três forças da IgrejaUniversal”.
A Universidade compreendia quatro “faculdades”: direito, medicina, artese teologia.
Conforme Tomás de Aquino, a teologia considerava as coisas e asignificação das palavras, porque para que se alcançasse a salvação; não senecessitava apenas da fé, mas relacioná-la à verdade das coisas, que estava naspalavras, nos nomes. Era o pensamento aristotélico que mais duradouro influenciouo pensamento ocidental.
Recordemos que o pensamento chinês não procede tanto de maneira linearou dialética e sim em espiral. Ou seja, não trata do significado das coisas,das palavras, mas de todos os relacionamentos que ela permite, das variedadesde situações em que encontramos um pictograma, e que alteram seu significado.Numa concepção existencialista, pode-se dizer que não há essências, háexistências, diferentemente de Aristóteles e Tomás de Aquino.
Aristóteles e sua revisão tomista serão tão importantes para agovernança ocidental quanto Lao Zi e Confúcio para a oriental.
Vignaux afirma que os medievais não conheceram Platão como se debruçaramsobre Aristóteles (“o homem é um animal de linguagem”), a quem denominavam “OFilósofo”. “Liam seus livros nas escolas não apenas para aprender a arte dediscutir como para compreender a natureza das coisas”.
Aristóteles e seus seguidores, que tratam mais dos textos do que dascoisas aos quais se referem, tiveram muitas traduções, que levou seu pensamentoa influenciar tanto os pensadores árabes quanto judeus.
Porém é no século 13, em Tomás de Aquino, que o homem adquire consciênciada herança dos antigos, da filosofia aristotélica, e surge o conflito entre ohumano e o divino, a natureza e a graça, que não conduz necessariamente aoconflito, mas leva, também, ao equilíbrio, à acomodação, à harmonia que seráfundamental para manutenção das hierarquias, das governanças com astransformações que ocorrerão com o descobrimento do Novo Mundo.
A sociedade medieval se transforma entre os séculos 12 e 15. Estasociedade é melhor designada como estamental, ou seja, cada pessoa estava presaà sua condição que compreendia o senhor, que possuía a terra, detinha omonopólio dos poderes político, militar e “judiciário”, e mantinha servos.
Havia, ainda, os “vilões”, homens livres que deviam obrigações aossenhores, embora pudessem transitar pelas propriedades, os escravos, empregadosdomésticos, que não podiam ser cristãos, e os ministeriais, que exerciam aadministração a serviço dos senhores, e se classificavam, dependendo daextensão das propriedades, em bailios, as menores, e senescais, vários domíniosde um mesmo senhor.
Os mosteiros tinham a mesma estrutura de domínio dos senhores feudais,ao que se agregava o monopólio da cultura e, principalmente, da interpretaçãoda realidade social, sempre numa perspectiva religiosa, como da compreensãotomista, aristotélica. E era a única capaz de conduzir o homem à salvaçãoeterna.
O catolicismo ensina que todos são irmãos, ainda que, na prática social,sempre imperfeita do ponto de vista do Absoluto, aceita que uns poucos sejam“mais irmãos” do que outros (!).
No século 13 começa a transformação da Idade Média, que Vignaux, na obracitada, denomina da “Diversidade do Século 13”.
Além da mística especulativa, do provável na metafísica, das crises dafísica aristotélica, surge um voluntarismo que domina tanto a vontade de Deusquanto a dos homens. Para os franciscanos Escoto (Irlanda, 815 a 877) e Occam(Londres, 1285-1347, Munique), a união de Deus com os homens se opera por umato de vontade.
Os sucessivos embates entre o poder temporal dos reis, príncipes eimperadores e o poder secular dos sacerdotes e do Papa, bem como a proliferaçãode seitas e cismas dissidentes do papado, resultaram no declínio da hegemoniados Papas.
A modernidade inicia-se com o esvaziamento da unidade espiritualeuropeia e a transformação dos reinos estatais em unidades territoriaisautossuficientes do ponto de vista até mesmo religioso, haja vista o poderespiritual concedido pela reforma protestante aos reis que a ela aderiram, coma criação de igrejas estatais na Inglaterra e na Escandinávia.
Ao que se adicionam as transformações sociais e econômicas pelasimportações asiáticas e pela emergência política e econômica dos burgueses, quese tornaram aliados e financiadores dos reis e príncipes na busca deles pelaexpansão do poder territorial e pela centralização administrativa.
Um exemplo foi o conflito entre Felipe, o Belo, rei de França, e o PapaBonifácio 8º. Bonifácio exigia não pagar impostos ao poder temporal e exigia oreconhecimento da supremacia do poder religioso sobre os reis. Em 1303, edita abula “Unam Sanctam” que resulta na prisão e morte, no mesmo ano, de Bonifácio8º. Em 1305, Clemente 5º inicia uma série de papas sob tutela dos reis deFrança, os “Papas de Avignon”.
Se com o fim da Idade Média a unidade do cristianismo chega ao fim, ainfluência do pensamento religioso, do misticismo se entranha nas governançasocidentais.
Com a Reforma de Lutero (1517) e uma sequência de interpretações e deinteresses, por vezes meramente econômicos, que acompanham as religiões e asgovernanças, as relações igreja-poder permanecem até o século 21.
Contudo, tais relações sofrem paulatino processo de secularização que,ao fazer do homem fim em si mesmo, se de um lado ampliou seus poderes deintervenção política, de outro fechou as portas à transcendência e enfraqueceuas bases éticas do poder, facilitando o trabalho dos totalitários de todo tipo,inclusive dos econômico-financeiros, cujo governo é tão absoluto quanto não-declarado,oculto por trás de governos de fachada.
VI – ILUMINISMO CONSTRUTOR DE ESTADOS
Longo foi o processo de formação dos Estados nacionais europeus, movidopelos conflitos de poder entre os reis e o papado desde a Idade Média. Oimpério católico que unificou espiritual e culturalmente a constelação políticada Europa feudal foi crescentemente contestado pelas autoridades temporais,que, aliadas à emergente burguesia, centralizaram seus respectivos territóriose passaram a dispor de recursos cada vez mais volumosos para a efetivação dasua vontade de poder.
A Igreja jamais deixou de acalentar a pretensão de reviver o ImpérioCarolíngio, sobretudo no reinado de Carlos Magno (800-814), quando a bandaocidental do antigo Império Romano foi politicamente enfeixada pela autoridadecentral do rei cristão servo da Igreja.
Porém, a eclosão da Reforma Protestante, com vários reis anglos,germânicos e nórdicos se declarando autoridades não apenas políticas mas,igualmente, religiosas, cindiu de vez a unidade espiritual europeia efortaleceu o nacionalismo. Obrigando, assim, a Igreja a se associar maisfortemente ao expansionismo colonial das Coroas ibéricas a fim de compensar,com a ocupação da América, a perda de fiéis no Velho Mundo. Federico GonzalezSuarez (“Defensa de mi critério histórico”, Ed. Municipal, Quito, 1937),defendendo a Moralidade Católica – “melhor será servida a Pátria, quanto maioros esforços para garantir que a moral católica permanece pura, sem engano ousuperstições” – computa mais de 400 religiosos na cidade de Quito (Equador), em1640.
Com a Paz de Vestfália, em 1648, chega ao fim qualquer possibilidade dereviver a unidade imperial cristã tal como exercida por Carlos Magno. Em seulugar, se aceitou a soberania das nações dentro da civilização cristã cindidapela Reforma Protestante. A Paz de Vestfália, efetuada pela liderança daHolanda, potência capitalista e financeira de então, consagrou o sistemaacéfalo de equilíbrio internacional de poder, baseado nas soberanias dosnascentes Estados nacionais, sem um centro de poder capaz de impor sua pax.
Ao mesmo tempo, possibilitou ao setor financeiro holandês tirar proveitodas disputas interestatais resultantes – ainda na década de 1760, praticamentetodos os governantes europeus procuravam os prestamistas batavos –, alimentou,nos demais países, políticas econômicas nacionalistas, erroneamente chamadasmercantilistas, com o objetivo de estimular as manufaturas e as armas para,assim, sobrepujar comercial e militarmente a Holanda.
O sistema europeu de Estado, caracterizado por uma “anarquiainternacional” entremeada de confrontamentos militares e bélicos, foi acondição e a base do desenvolvimento do moderno Estado-nação. O climapermanente de guerra estimulou a organização centralizada dos recursosadministrativos e econômicos em prol dos interesses bélicos dos países,enquanto o capitalismo transnacional das finanças holandesas se relacionava comtodos.
Estados, finanças e razão iluminista.
O caso mais flagrante foi a França de Luís XIV (1643-1715), na qual oministro Richelieu consagrou, como princípio de governança, a ideia de “raisond’état” (razão de Estado), isto é, a prevalência do interesse nacional sobrequalquer moralidade universal. O Estado nacional deveria ser erguido sobrebases essencialmente mundanas, para que sobrevivesse em um contexto internacionalaltamente fragmentado e competitivo. Assim, ele deveria prevalecer tantointernamente, com a repressão a oligarquias dissidentes ou insubordinadas,quanto externamente, pela superioridade dos meios técnicos e materiais noâmbito do comércio e da guerra, as principais formas de relaçõesinternacionais.
Nesse contexto, o processo correlato de pacificação interna edesenvolvimento técnico-científico-industrial endógeno, inclusive peloestabelecimento de empreendimentos empresariais, despontou como a questãoestratégica de Estado para proteger o seu respectivo país do poderioestrangeiro, sobretudo o holandês, e assegurar as bases materiais da autonomianacional, o que fortaleceu o desenvolvimento capitalista.
Há, assim, estreita vinculação histórica entre a expansão do capitalismofinanceiro e comercial, pois o industrial estava por surgir, e a consolidaçãodo Estado moderno.
Naturalmente, a busca política pelo enriquecimento econômico valorizou arazão instrumental e a ciência de forma nunca antes vista. Paulatinamente, associedades europeias mais estatizadas passaram por processo de modernização,isto é, de substituição das cosmovisões tradicionais, fundadas em princípiosreligiosos e transcendentais sacramentados pelo costume, pelo racionalismo utilitárioe individualista, mais voltado a transformar a realidade empírica do que agarantir espaço no Céu, no além-mundo.
A valorização da razão e da ciência encontrou seu apogeu no século 18,durante o Iluminismo. A concepção iluminista não se limitava a enxergá-las comoatributos e exercícios individuais, mas como princípios morais para areorganização das instituições sociais. O progresso histórico das sociedadesdependeria do quanto de razão e ciência elas incorporassem. O Iluminismo eraotimista em relação à capacidade humana de estabelecer formas sociais epolíticas que encarnassem o progresso racional e científico.
O Iluminismo representou o progresso de forma sobremaneira (mas nãoexclusivamente) econômica. O desenvolvimento da riqueza das nações se tornouobjetivo cada vez mais presente nas governanças reais europeias, pois somente aampliação da riqueza, da tecnologia, da produção e do comércio asseguraria aposição e as pretensões de poder dos governantes.
O desenvolvimento econômico constituía a realidade material do período,caracterizada pelo aperfeiçoamento dos conhecimentos e da sua aplicação aosprocessos produtivos, assim como pela ascensão política da burguesia comercial,industrial e financeira e pela modernização da estrutura social.
O otimismo característico da época considerava que a expansão econômicaaprimoraria a ordem política ao ampliar o leque de possibilidades de exercíciodos “calmos” interesses aquisitivos individuais e refrear as “violentas”paixões dos governantes.
A depuração da arte de governar dos elementos despóticos acarretadospela busca desastrosa e sôfrega pela glória e pelo poder permitiria areorganização das instituições políticas no sentido favorável à contínuaexpansão econômica.
O desenvolvimento econômico assumiu posição central na construçãoestatal iluminista. A “política baseada em ciência” do Iluminismo era a gestãobiopolítica e territorial voltada para o fortalecimento dos instrumentos deexercício do poder nacional, como a economia.
O “despotismo esclarecido”, termo com que a tradição liberal viria adepreciar o reformismo levado a cabo pelos monarcas do século 18, nada maisconsistiu senão na modernização das estruturas políticas para ampliar acapacidade de direção e controle estatais da expansão das manufaturas e docomércio, no interesse político-militar dos reis.
Várias reformas foram empreendidas no sentido de aplicar os preceitos emétodos científicos aos mais diversos âmbitos da vida social, com o objetivo depromover a grandeza nacional e consolidar a robustez dos Estados num momentohistórico de acentuação da complexidade geopolítica e, portanto, de necessidadeda sofisticação dos recursos de poder.
Em Portugal, ao qual na época ainda pertencíamos, Sebastião José deCarvalho e Melo, o Marquês de Pombal (1756 -1777), fortaleceu a autoridadepolítica da Coroa combatendo o “Estado dentro do Estado”, isto é, asoligarquias religiosas e nobiliárquicas que tomavam como propriedade particularas funções e atribuições públicas. Pombal adotou uma política francamenteindustrialista com o fito de reduzir a subjugação econômica de Portugal emrelação à Inglaterra , assim, fortalecer o Estado nacional.
Criaram-se várias manufaturas e companhias reais de comércio, aboliu-sea escravidão em Portugal, baniram-se os jesuítas, reformaram-se os currículosuniversitários para substituir a antiquada escolástica pelas modernas ciênciasnaturais e estimulou-se a ocupação das colônias, inclusive com o estímulo aoscasamentos interétnicos no Brasil.
Na Rússia, Catarina II (1762-1796) aprofundou a obra modernizadora dePedro, o Grande (1682-1721) e consolidou a Rússia como grande Estado imperial.A anexação da Criméia e de outras regiões manifestou a pujança do ImpérioRusso, engrandecido com as políticas desenvolvimentistas de Catarina II.
Tais políticas foram codificadas na chamada Instrução, conjunto dediretrizes legislativas acerca de questões jurídicas, demográficas, sociais eeconômicas. Com base na “Instrução”, foram concedidos monopólios e privilégiosa fabricantes estrangeiros, procurando importar tecnologia em vez de capitalexterno, procurando desenvolver internamente a primeira para que o país nãodependesse do segundo.
Também se determinou a criação de escolas primárias e secundárias emtodas as províncias, entre elas a primeira escola russa para meninas, oInstituto Smol’nyi, criado em 1764, contribuindo para formar quadros técnicos enova mentalidade, mais aberta ao desenvolvimento econômico em marcha na maiorparte da Europa.
Consequentemente, a Rússia conheceu forte desenvolvimento industrial. Em1725, havia 233 manufaturas na Rússia; em 1796, no último ano de reinado deCatarina II, somavam 3.360, sem contar minas e siderúrgicas. A Rússia não eraatrasada em relação à Europa, como, aliás, jamais foi.
Na Prússia, Frederico II (1740-1782) considerava-se o “primeiro servidordo Estado”, colocando-se, portanto, abaixo do Estado nacional. Voltaire era oseu conselheiro pessoal. Frederico II tinha clara a noção de que a forçapolítico-institucional e militar do Estado dependiam, sobremaneira, do nível dedesenvolvimento industrial do país.
Por isso, ele adotou políticas protecionistas e industrialistas em largaescala, e, neste processo, criou novas instituições que se tornaramvigas-mestras do poderoso Estado prussiano, como a “Seehandlung”, misto deagência comercial, banco de desenvolvimento e holding industrial. Frederico II,assim, construiu grande parte do poderio econômico, administrativo e militarprussiano, que, no século 19, viria a unificar a Alemanha sob a sua égide.