“Não se chega nesse nível de barbárie à toa.”
por Rosana Pinheiro Machado* — Carta Capital
Foram-se as regras, a segurança do voto, os direitos garantidos. Entramos em um limbo histórico, descompasso do tempo
Nada mais perturbador do que o sentimento de perda dos parâmetros: de verdade, de justiça, de bom senso, de autoridade, de tempo e direção. Não há mais regra, ou segurança, de que o voto e os direitos sejam garantidos.
É um desmonte dos direitos e da segurança que traziam. É como
se todas as peças do sistema estivessem frouxas. Hannah Arendt lembra-nos que as crises republicanas (o abalo da tradição, da verdade e da autoridade) deixam uma lacuna desconcertante entre o passado e o futuro. É limbo histórico, descompasso do tempo.
Crises econômicas tornam-se também políticas e morais. O colapso é multidimensional e ocorre em múltiplos níveis e contextos.
Perdemos alguns modelos de projeção. Os países que possuíam uma
agenda mais consolidada de direitos humanos dão um passo atrás. As declarações do futuro presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em tempos de parâmetros de justiça razoáveis, seriam criminosas.
Ele não apenas permanece impune, como é gratificado. Nessa mesma lógica, não surpreende se Jair Bolsonaro, que, criminosa e impunemente, fez apologia do estupro e da tortura, chegue ao segundo turno nas eleições presidenciais de 2018. É o colapso do que achávamos conquistado.
-
-
Resta o ódio. Hannah Arendt investigou a crise republicana: o abalo da tradição, da verdade e da autoridade
Passamos por um processo de impeachment que deixou dúvidas sobre sua integridade ética. Para saciar a raiva de muitos em tempos confusos, a veracidade das provas não era uma questão. Aliás, em tempos de perda de parâmetros, a verdade é apenas um detalhe.
Corrupção, pedaladas e crise econômica misturavam-se em uma narrativa embrulhada pelo rancor e misoginia. Um adesivo de carros estampava a presidenta da República, de pernas abertas, a ser violada por uma nação de insatisfeitos. Perdeu-se qualquer senso de autoridade.
O Brasil volta a ser governado por homens velhos e brancos, que atuam por meio de um discurso retrógrado. A autoridade máxima da nação alega que a composição dos ministérios se dá pela capacidade intelectual dos seus homens.
Esse argumento continua a ser sustentado, apesar de seis ministros terem caído em seis meses por motivos de corrupção (quatro denunciados e dois denunciantes). É o tempo dos absurdos.
As investigações da Operação Lava Jato ignoraram regras éticas de investigação. Escutas ilegais são celebradas. Irrelevante discutir os meios para se chegar a um fim maior. Essa tem sido a justificativa de todos os regimes autoritários da história da humanidade.
Desse modo, nada mais protege o cidadão (nada que um morador pobre e negro da periferia não tenha sentido na pele). O desamparo nos leva
a uma sociedade com tendências bárbaras que, cada vez mais, tolera diversas formas de linchamento. Uma população que clama pelo imediatismo dos fins, por mudança a qualquer custo, quando os meios estão desacreditados.
Não se chega a esse nível de barbárie à toa. Há camadas estruturais que levaram à descrença profunda do establishment no mundo todo. O Brexit na Inglaterra e Trump nos EUA captam essa sede por mudança em meio a um cenário crítico de crise econômica que o mundo atravessa no século XXI.
No Brasil, o juiz Sergio
Moro encarna e canaliza essa raiva com discurso do combate à corrupção, mesmo se seus atos de investigação forem controversos. O PMDB e o PSDB articularam o golpe.
Tiveram o oportunismo político e sabem se aproveitar do governo Temer para aprovar tudo o que não passaria com facilidade em um momento de normalidade, como a PEC 241/55. A bem da verdade, esses homens do poder de hoje apenas pegaram carona na insatisfação profunda contra o establishment. E estes, mais cedo ou mais tarde, podem também cair.
Não houve reestruturação da estabilidade com o impeachment. Basta ver as manifestações mais recentes. Existe uma raiva difusa contra “tudo o que está aí”. Não apenas o ódio ao PT levou à situação atual. A restauração conservadora não é privilégio brasileiro. O classismo, o racismo e o sexismo pesaram, claro, nessa empreitada.
As bandeiras populares, humanistas e democráticas são as primeiras a cair em momentos de crise. O ódio é dirigido aos mais fracos, mas é fruto de um descontentamento mais profundo, e de mais difícil compreensão, contra toda e qualquer forma de establishment.
-
-
O Reino Unido preferiu deixar a Comunidade Europeia e lidar com os imigrantes à sua maneira (Luke Macgregor/Reuters/Latinstock)
A convulsão não é nova na história. Na antropologia, ela é compreendida como liminaridade, as fases de transição, confusão, inversão e sofrimento. É um limbo demorado, verdade, que começou em 2013 e tende a se encerrar em 2018.
Globalmente, à direita e
à esquerda, voltamos, ou nunca saímos, ao que Arendt descrevia como “o desprezo da autoridade estabelecida (…) as leis perderam o seu poder (…) não se pode imaginar evidência mais exposta, nem sinais mais explícitos de instabilidade e vulnerabilidade dos governos e sistemas legais”.
Ao retomar o marxismo, Arendt entendia que esses momentos se configuram “situações revolucionárias”, marcadas pela desintegração da legitimidade dos governos. Há desobediência civil por todos os lados, até entre quem clama pela intervenção militar.
Canalizando a insatisfação
Quem tem sido capaz de organizar e canalizar a insatisfação no Brasil?
A esquerda mais tradicional tornou-se não apenas o establishment, mas se desgastou em escândalos consecutivos de corrupção.
Após conquistas históricas, como a redução da pobreza e da desigualdade social e o acesso ao ensino superior, uma parte do establishment político e intelectual à esquerda passou a negar a crise econômica que fortemente afetou a classe trabalhadora e o “precariado”.
Enquanto batiam na tecla de que o País nunca esteve tão bem e de que os descontentes eram “fascistas” e “analfabetos políticos”, novos movimentos surgiam para capturar essa angústia. O golpe, oportunisticamente, aproveitou-se desse momento.
Perdemos essa batalha ideológica. Enquanto isso, muitos intelectuais de esquerda continuam elaborando
seus all-white-male-panel (painéis somente com homens brancos) – do alto da universidade – para digerir o que aconteceu e prospectar “a reorganização da esquerda”. Talvez tenhamos perdido o senso de base e realidade.
Enquanto
isso, parte gigantesca da população mexe-se à deriva, inquietada. Grupos mais organizados aproveitam-se desse momento de raiva pulverizada e canalizam a insatisfação.
A retrospectiva de 2016 do Movimento do Brasil Livre (MBL) é exemplar desses tempos de inversão. Eles se apropriam da linguagem do campo progressista.
Descrevem a si próprios como mobilizadores das massas, alegam que as mídias e o poder estabelecido são manipuladores, os magistrados, infames, e os políticos, corruptos.
Dizem que as manifestações organizadas pelo movimento foram as maiores da história do Ocidente, pois catalisou um povo em fúria que não aceita o discurso criminoso e os jatinhos de políticos.
Para eles, as ruas reagiram, o movimento continuou resistindo e, finalmente, o establishment foi derrotado. As elites midiáticas tiveram de se curvar. Por fim, o movimento diz: “Se você quiser o sonho dourado, nós não podemos te dar. Te chamarão de louco e ultrapassado, mas esse é o preço da verdade que eu te trago”.
-
-
Por ora, os eleitores austríacos conseguiram barrar o avanço do partido neonazista. Mas o risco não desapareceu (Citizenside/Martin Juen/AFP)