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sábado, 14 junho, 2025

Em Cúpula Brasil-Caribe, Lula tocou no ‘calcanhar de aquiles’ da integração regional, diz professora

Sputnik – Transição energética, conectividade, mudança climática, segurança alimentar e gestão de riscos de desastres pautaram as discussões e acordos da Cúpula Brasil-Caribe, nesta sexta-feira (13), em Brasília, com líderes dos 16 países da região.

Ao receber presidentes e autoridades pela manhã, no Palácio Itamaraty, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmou que fortalecer o vínculo do Brasil com a região é “tarefa inadiável”.

“Não podemos mais abrir mão das oportunidades que serão geradas pela integração […]. Em um cenário de acirramento de disputas geopolíticas, a aproximação entre o Brasil e o Caribe reafirma a nossa busca pela autonomia frente às velhas e novas hegemonias”, defendeu ele.

Com o lema “Aproximar para unir”, o evento culminou com uma série de acordos e parcerias em diferentes áreas. Entre os anúncios feitos, o aporte brasileiro de US$ 5 milhões (R$ 28 milhões) aos países mais vulneráveis da região, por meio do Fundo Especial de Desenvolvimento do Banco de Desenvolvimento do Caribe, ao qual o Brasil aderiu em 2010.
Lula também citou o investimento que será feito pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em projetos em países sul-americanos, com destaque para Guiana e Suriname, que são, segundo ele, “nossas portas naturais para o Caribe”.
O presidente brasileiro anunciou ainda o Fórum “O Brasil abre as portas para o Caribe”, a ser realizado em Fortaleza, no estado do Ceará, para aumentar conexões aéreas e marítimas e promover novos negócios.
As discussões envolveram representantes de organizações regionais, como a Associação de Estados do Caribe e o Banco de Desenvolvimento do Caribe, além da presidência da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP30), do BID e do Fundo Verde para o Clima.
Para especialistas ouvidas pela Sputnik Brasil, o encontro sinalizou um esforço “genuíno” do Brasil de estreitar as relações com os vizinhos insulares a partir de investimentos palpáveis, como afirmou a pesquisadora de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e cientista política Beatriz Bandeira de Mello:

“O que o Brasil quer fazer é diminuir essa dependência e costurar uma aproximação por temas-chave, como o comércio, a partir da ativação de rotas marítimas e terrestres, principalmente por meio de uma ligação entre Roraima e Georgetown, capital da Guiana, e ambientais. Com isso, pode diminuir a dependência dos Estados Unidos para escoar produtos advindos do norte do Brasil, por exemplo.”

Ela citou dados oficiais sobre o intercâmbio entre a Comunidade do Caribe (Caricom) e o Brasil, de cerca de US$ 4 bilhões (R$ 22,25 bilhões) — valor semelhante ao comércio bilateral Brasil-Peru —, com balança positiva para o lado brasileiro.
Os temas prioritários do encontro “marcam o futuro”, na opinião da professora de relações internacionais Flavia Loss:

“Vários temas em que a gente está para trás aqui na América Latina e no Caribe no geral, […] que eles colocaram aqui que vão entrar, como desastres naturais, segurança alimentar… Todos esses temas precisam ser pensados regionalmente, e não individualmente por cada Estado”, disse ela.

A professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Regiane Bressan avaliou que o encontro foi positivo, ao focar questões de problemas reais.

“Falar de segurança alimentar, com o programa da Aliança Global contra a Fome; crise climática, já que os países caribenhos são super vulneráveis e nós teremos a COP30 aqui no Brasil. A própria conectividade com essa região é uma amostra de compromisso com soluções práticas, e não apenas retóricas, além de uma agenda mais colaborativa”, comentou.

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Conectividade física: ‘Calcanhar de aquiles’

No discurso de hoje, Lula afirmou que a escassez de conexões explica por que o Caribe importa mais dos Estados Unidos, da China e da Alemanha do que do Brasil. Apesar da proximidade de nações, como a Guiana, dos estados do norte do Brasil, a região representa apenas 5% das exportações totais para a Caricom.
“Os itens que abastecem a região vêm de lugares distantes, mesmo que os portos de Santana, no Amapá, e o de Pecém, no Ceará, sejam vizinhos”, disse Lula.
Lula já havia ressaltado esse problema no 46º Congresso do Caricom, em 2024, ao mencionar que Barbados tinha 27 voos semanais para o Reino Unido e os Estados Unidos e nenhum para o Brasil.
falta de conectividade física é o “calcanhar de aquiles” desse plano de integração comercial e turística, para a professora da UFSP, o que encarece o transporte das importações e exportações, que passam quase todas pelos EUA.

“Criar uma rota marítima ou aérea exige um volume de carga, passageiros que justifiquem esse movimento, e daí toda essa dificuldade. Além disso, temos custos elevados, burocracia e regulamentação, infraestrutura portuária e aeroportuária limitadas e falta de coordenação e cooperação conjunta”, comentou Bressan.

Os países caribenhos importam mais de 80% dos alimentos que consomem, um dos maiores percentuais do mundo. Porém a importação de alimentos brasileiros é ínfima, devido à falta de rotas eficazes para escoar os produtos.
programa brasileiro Rotas da Integração Sul-Americanalançado em 2023, para aprimorar a infraestrutura que liga o Brasil ao entorno regional, pretende mudar essa realidade. A Rota das Guianas, ligando Roraima ao novo porto de águas profundas de Georgetown, na Guiana, é uma das iniciativas. Entretanto, para Loss, os investimentos ainda são insuficientes para suprir esse déficit.

“Infelizmente, as economias da região não têm conseguido aportar muito dinheiro e falta vontade política também para esses projetos […] Esse é um gargalo que nós temos e que vai continuar ainda por algum tempo”, opinou ela.

O mesmo ocorre na área do turismo:
“O Brasil recebe cerca de 7 milhões de turistas por ano. Em 2024 foi o pico nesse número. O Caribe recebe mais de 34 milhões de turistas anualmente. Então é uma disparidade muito grande, a gente não consegue atrair turistas de outros continentes para cá e também não atraímos os caribenhos, latino-americanos para a gente”, lamentou a especialista.

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a 46ª Conferência de Chefes de Governo da Comunidade do Caribe (Caricom). Georgetown, Guiana, 28 de fevereiro de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 28.02.2024

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Outras barreiras

Bressan ponderou que as assimetrias econômicas, políticas e a falta de conhecimento mútuo representam outro tipo de barreira para o aprofundamento das relações com esses países que têm problemas internos intrínsecos, como burocracia e morosidade, assim como o Brasil.
Já a cientista política da UERJ destaca que existe certa desconfiança desses países em relação ao Brasil pela aproximação tardia com a região, que começou no final dos anos 1980, e que explicaria a falta de interesse de setores estratégicos em investimentos.
Além disso, em um comércio monopolizado pelos gigantes China, Estados Unidos e União Europeia, a disputa por espaço é desigual no mercado caribenho, altamente concentrado e pouco diversificado, segundo as entrevistadas. Nesse cenário, o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking de maiores fornecedores da região.

‘Água mole em pedra dura…’

Apesar dos muitos obstáculos, as especialistas ressaltaram que as oportunidades valem o esforço para essa aproximação comercial e econômica, em que o Brasil tem muito a ganhar e a oferecer:

“Tem que olhar muito para as questões de engenharia e construção que o Brasil pode ajudar, energias renováveis e gestão hídrica de saneamento […] sistemas de alerta precoce e gestão de risco e agricultura sustentável e resiliente”, elencou Bressan.

De produtos manufaturados, petróleo, maquinário, turismo, equipamentos de transporte a artigos manufaturados, o potencial comercial é vasto, segundo as especialistas, e o investimento no Caribe promete bons frutos.
Dados recentes apontam que as exportações do Brasil para a América Central e o Caribe aumentaram 7% no mês passado. Guiana, Trinidad e Tobago, Jamaica e Bahamas concentram mais de 50% das importações.

“Nesta semana, por exemplo, a ministra Simone Tebet [Ministério Planejamento e Orçamento] participou da 55ª Reunião Anual do Conselho de Governadores do Banco de Desenvolvimento do Caribe, presidido pelo Brasil no último ano, mostrando sinergia entre as agendas, e falou sobre a necessidade de construir mecanismos de financiamento comuns”, salientou Bandeira de Mello.

Mercosul e Caribe

As entrevistadas avaliaram ainda que a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) é um espaço alternativo ao Mercosul que pode ser muito positivo para construir uma ponte mais estável com o Brasil.
“Com a falta de alinhamento entre dois dos principais parceiros do Mercosul, Argentina e Brasil, creio que o governo brasileiro terá que buscar alternativas que não passem pelo crivo argentino”, disse a pesquisadora da UERJ.
Bressan também apontou que o Brasil tem condições diplomáticas de aproximar Mercosul e Caricom, ao ampliar esse mercado e fortalecendo sua voz regionalmente.

Haiti

Hoje também Lula anunciou parcerias com o Haiti na área de segurança alimentar e combate ao crime organizado.
A República Dominicana e o Haiti foram os países selecionados para receber os primeiros projetos da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza do governo Brasileiro.
Para além de uma iniciativa altruísta e solidária, a colaboração para a estabilidade e o desenvolvimento de países caribenhos beneficia toda a região e pode favorecer as transações comerciais e políticas com o Brasil no longo prazo.
No entanto, por se tratar de dinheiro público, Loss observou que é importante o governo informar a população brasileira sobre a importância desses investimentos em outros países.

“[…] e que haja mais participação das pessoas, que elas compreendam por que você faz uma obra, por exemplo, como várias da rota de integração sul-americana, porque isso vai facilitar o comércio, vai facilitar, vai trazer dinheiro. É um investimento para que o dinheiro volte aqui para o país”.

Além disso, alertou, essa verba tem que ser monitorada, “tem que ter uma prestação desse dinheiro público mais de perto. Isso até existe, mas precisa ser feito com mais cuidado e delicadeza quando o dinheiro público é gasto fora do seu país”.
Com o caminho sendo pavimentado, resta que o caminhar seja coletivo, frisou Loss:
“Ou a gente pensa em conjunto, em estratégias para esse novo mundo que está surgindo, ou, mais uma vez, a gente vai perder espaço aí no diálogo global, no comércio global, que é pior ainda”.

O que é a Caricom?

Criada em 1973, a Comunidade do Caribe (CARICOM) é um agrupamento de vinte e um países: 15 Estados-Membros e seis membros associados, e congrega 16 milhões de habitantes, sendo 60% com menos de 30 anos.
O PIB [Produto Interno Bruto] combinado de seus 15 membros é de US$120 bilhões [R$596 bilhões], maior do que o de alguns países sul-americanos.
Em 2005, Lula foi o primeiro presidente brasileiro convidado a participar de uma Cúpula da Caricom. Na sequência, em 2010, o Brasil organizou a Cúpula Brasil-Caricom.

Sobre o peso político, a Caricom detém 7% dos votos da Organização das Nações Unidas (ONU) e 44% dos votos da Organização dos Estados Americanos (OEA).

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