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quinta-feira, 28 março, 2024

Em busca de uma ordem econômica mundial multipolar (1)

por Michael Hudson

entrevistado por Pepe Escobar

O texto aqui apresentado baseia-se numa entrevista que Michael Hudson deu a Pepe Escobar, sendo moderadora Alanna Hartzok co-foundadora de Earth Rights Institute e administradora do International Union for Land Value Taxation. O evento decorreu na Henry George School, com a sua diretora pedagógica Ibrahima Drame, sob o tema “Na busca de uma ordem mundial multipolar”.
Devido à extensão da entrevista (1h50) foram seleccionados apenas excertos considerados mais relevantes.   A importância desta entrevista é resumida na sua frase final:   “Você nunca lerá algo assim no Washington Post ou em The New York Times.   Eles nem sabem o que é a Organização de Cooperação de Xangai”. Claro, nem tão pouco em qualquer dos media corporativos na Europa.
O texto completo da entrevista está aqui ..

MH (00:04:00) – Os Estados Unidos abandonaram o padrão ouro em 1971, quando a isso os forçou a guerra do Vietnan – responsável pelo seu défice da balança de pagamentos. Todos naquela época temiam que o dólar fosse cair, que houvesse hiperinflação. O que aconteceu foi algo totalmente diferente. Como não havia ouro para liquidar os défices da balança de pagamentos dos EUA, convenceram os seus aliados a investir em Títulos do Tesouro dos EUA, porque bancos centrais não compram empresas. Não compram matérias-primas. Tudo o que podem comprar são outros Títulos de governo. Então, de repente, a única coisa que podiam comprar com todos os dólares que possuíssem eram Títulos do Tesouro dos Estados Unidos. Os títulos que compraram destinaram-se essencialmente a financiar ainda mais a guerra, o défice da balança de pagamentos e as 800 bases militares que os Estados Unidos têm por todo o mundo.

Pepe Escobar. Acho que o mundo mudou tanto nos últimos 50 anos que o que temos agora não é tanto um conflito entre a América e a China, ou a América e a Rússia, mas entre uma economia financeirizada, dirigida por planeadores financeiros que controlam a disponibilidade de recursos, despesas do governo e criação de dinheiro, e uma economia dirigida por governos democráticos, ou menos democráticos, mas certamente uma economia mista.

LIBERDADE SÓ PARA A WALL STREET

Wall Street - O que é, história da rua e influências na economia

Na América existe algo totalmente diferente desde 1980. Algo que não foi previsto por ninguém, porque parecia ser muito perturbador, ou seja, o sector financeiro a dizer: “Precisamos de liberdade – para nós mesmos, em relação ao governo”. Por “liberdade” eles queriam dizer retirar o planeamento, os subsídios, as políticas económicas e tributárias das mãos do governo e colocá-las nas mãos da Wall Street. O resultado foi um libertarianismo como “mercado livre”, na forma de uma economia centralizada que se concentra nas mãos dos centros financeiros – Wall Street, a City de Londres, a Bolsa de Paris. O que existe hoje é uma tentativa de o sector financeiro assumir o papel que a classe senhorial teve na Europa, desde os tempos feudais até o século XIX. É uma espécie de ressurgimento do feudalismo.

Se se olhar para os últimos 200 anos de teoria economica, de Adam Smith e Marx em diante, todos esperavam que uma economia mista se tornasse cada vez mais produtiva e se libertasse dos latifundiários – e também da atividade bancária.

Mas nos Estados Unidos e na Inglaterra, as finanças tornaram-se algo completamente diferente. Os bancos não emprestam dinheiro para construir fábricas. Eles não criam dinheiro para fazer meios de produção. Eles obtêm dinheiro para assumir os ativos existentes. Nos EUA cerca de 80% dos empréstimos bancários são empréstimos hipotecários para transferência de propriedade de bens imóveis.

Tal como os proprietários de terras no passado, que tentavam fazer tudo o que podiam através da Câmara dos Lordes na Inglaterra e das câmaras altas na Europa, eles tentam bloquear qualquer tipo de governo democrático. A luta é na realidade contra qualquer governo que faça algo que não seja controlado pelos 1% e pelos bancos. Essencialmente, trata-se da fusão entre Finanças, Seguros e Imobiliário – o sector FIRE. O que temos é um retrocesso do capitalismo no Ocidente de volta ao feudalismo, mas feudalismo com uma expressão financeira, muito mais do que nos tempos medievais.

A luta contra a China é pelo medo de não poderem fazer à China o que fizerem à Rússia. A América adoraria que houvesse uma figura como Yeltsin na China para dizer: vamos dar todas as ferrovias que construímos, a ferrovia de alta velocidade, vamos dar todas as fábricas a indivíduos e deixá-los administrar tudo. Então, os americanos vão emprestar-lhes o dinheiro ou comprá-los e, assim, controlá-los financeiramente. A China não está a deixar isso acontecer. E a Rússia impediu que isso acontecesse. A fúria no Ocidente é que o sistema financeiro americano não é capaz de assumir controlo sobre mais recursos estrangeiros e agricultura estrangeira. Restam apenas meios militares para se apoderarem desses recursos, como vimos no Próximo Oriente e agora se vê na Ucrânia.

MH (00:12:47) – Não vejo como possível nenhuma repetição de uma nova Bretton Woods porque, como descrevi em Super Imperialism, a conferência de Bretton Woods foi concebida para tornar total o controlo americano sobre a Grã-Bretanha, sobre a Europa. Bretton Woods era um sistema centrado nos Estados Unidos destinado impedir a Inglaterra de manter o seu império. Também evitaria que a França mantivesse seu império e que a América assumisse o controle da área da libra esterlina. O Banco Mundial deveria impedir que outros países se tornassem independentes e auto-suficientes do ponto de vista alimentar, para garantir que apoiassem a agricultura intensiva e não uma reforma agrária. A luta do Banco Mundial foi impedir a reforma agrária e assegurar que os Estados Unidos e outros investidores estrangeiros dominassem a agricultura desses países.

Esse tipo de Bretton Woods não pode ser feito novamente. Já que Bretton Woods foi uma ideia para centralizar o superávite económico mundial num único país, os Estados Unidos, isso nunca mais poderá ser feito.

Quando a América emite dólares, e estes acabam nos bancos centrais, o que podem esses bancos fazer com eles? Tudo o que realmente podem fazer é devolvê-los ao governo dos Estados Unidos. Portanto, a América tem um almoço financeiro grátis. Pode gastar com as suas forças armadas ou aumentar aquisições de empresas noutros países. Os dólares foram embora, mas os países estrangeiros não podem trocá-los por ouro. Eles não têm nada para trocá-los. Tudo o que eles podem fazer é financiar o défice orçamental dos EUA comprando cada vez mais Títulos do Tesouro. Estes são os passivos do balanço de bases militares estrangeiras e operações relacionadas.

O que é irónico é o que aconteceu nos últimos anos na luta contra a Rússia e a China. Os próprios EUA acabaram com os seus almoços grátis. Diziam, ok, agora teremos sanções contra a Rússia e a China. Vamos ficar todo o dinheiro que tiverem em bancos estrangeiros, como ficámos com o dinheiro da Venezuela.

Então a Rússia e a China verificaram que não podem mais lidar com dólares, porque os Estados Unidos recusam unilateralmente o seu uso a qualquer país que não siga a sua diplomacia militar e financeira. E agora a Rússia e a China estão a desdolarizar-se. Negociam nas moedas próprias. Eles fazem o oposto do que Bretton Woods tentou criar. Eles estão a sugerir (a outros países) a independência monetária em relação aos Estados Unidos.

O que está em causa é que tipo de economia precisamos para elevar padrões de vida, salários e auto-suficiência e preservar o meio ambiente. O que é necessário para o mundo ideal que desejamos? Bem, para começar, é necessária muita infraestrutura. Na América e na Grã-Bretanha, a infraestrutura foi privatizada. Tem que dar lucro. E ferrovias ou concessionárias de energia eléctrica, como se acabou de ver no Texas , são monopólios naturais. Durante 5 000 anos, as infraestruturas na Europa, Médio Oriente e Ásia foram mantidas no domínio público. Se são dadas a proprietários privados, eles vão cobrar uma renda de monopólio.

A ideia da China é proporcionar um sistema educacional gratuito e permitir que todos procurem ter uma educação. Na América, para obter educação, é necessário contrair dívidas entre 50 000 a 200 000 dólares. A maior parte de tudo o que vier a ganhar será pago ao credor. Mas na China, pode-se ter educação gratuita, o dinheiro que os alunos irão ganhar será gasto na economia, comprando os bens e serviços que eles produzem. Então a economia estará a expandir-se, não a encolher, não sendo sugada pelos bancos que financiam a educação. A mesma forma de evitar a procura de rendas por privatizações, pela finança ou por monopólios, se aplica às ferrovias e aos cuidados de saúde.

O capitalismo industrial estava a evoluir em direcção ao socialismo. Era a medicina socializada, infraestruturas socializadas, educação socializada. Portanto, a luta contra o socialismo é também uma luta contra o que tornou o capitalismo industrial bem-sucedido nos Estados Unidos e na Alemanha.

Os Estados Unidos acusam de serem comunistas ou socialistas, os países que tentam tornar a sua força de trabalho próspera, educada e saudável, em vez de doente e com expectativas de vida mais curtas. O que significa ser independente da economia de austeridade do “Mundo Livre” financeirizado dos EUA.

MH ( 00:25:51) – A Europa tinha uma escolha: ou poderia encolher e ser uma economia satélite dos EUA ou poderia juntar-se ao crescimento. A Europa decidiu renunciar ao crescimento e tornar-se um conjunto de oligarquias e cleptocracias clientes. Está disposta a permitir que o seu sector financeiro assuma o controlo de cada país, tal como nos EUA.

Trata-se de um “mercado livre”, as autoridades americanas contaram-me que podem simplesmente comprar os políticos europeus pois eles são subornáveis. Estar pronto para a venda é o que significa um mercado político livre. É por isso que quando o presidente Putin diz que a América e a Europa não são susceptíveis de realizar acordos, isso significa que eles estão na política apenas pelo dinheiro. Não há ideologia. Não há ideia de benefício social geral. O sistema é baseado em como ficar rico, e pode-se ficar rico sendo subornado. Por isso entram na política. Como nos EUA em que por decisão do Supremo Tribunal, os políticos podem ser pessoalmente financiados.

Então, temos dois sistemas incompatíveis. Eles estão em trajetórias diferentes. Há um sistema que está a encolher como no Ocidente e outro que está a crescer como no Oriente. Há uma força militar destrutiva no Ocidente e, basicamente, uma força de crescimento económico produtivo na Eurásia. O confronto agora está a ocorrer principalmente na Ucrânia. Com os EUA a apoiarem os neonazistas.

MH (00:30:41)?– Putin continua a lembrar aos russos o acontecido aos 22 milhões que morreram na Segunda Guerra Mundial. Ele disse que a Rússia não deixaria isso acontecer novamente.

Assim, quando a crise passar, pode recomeçar-se de uma posição normal. Mas não há normalização na América. Estará numa posição, ainda mais recuada financeiramente do que antes da crise. As economias como a da China e da Rússia não têm problemas com os défices. Portanto, o Ocidente estará a começar com 99% de sua população ainda mais endividada com os 1%. Essa polarização entre 1% e 99% não existe na China. E na Rússia, Putin está a tentar minimizá-la, dado o legado da cleptocracia que os neoliberais lá colocaram.

Pepe Escobar (00:36:27) questiona MH sobre o papel do super Mario “Goldman-Sachs” Draghi, agora primeiro ministro da Itália, afirmando que há mais ou menos um consenso entre analistas italianos independentes e bem informados de que Draghi pode ser o cavalo de Tróia perfeito para acelerar a destruição do Estado italiano. Isto irá acelerar o projeto globalista da União Europeia, que é absolutamente não centrado no Estado. Isso também faz parte da “grande reinicialização”.

MH (00:38:55) – Bem, a Itália é um exemplo muito bom para se olhar. Quando se tem um país que precisa de infraestruturas e gastos públicos social-democratas, é preciso um governo para criar o crédito. Mas quando os americanos – e especificamente os lobistas do mercado livre da Universidade de Chicago – criaram o sistema financeiro da zona do euro, a sua premissa era que os governos não deveriam criar dinheiro. Apenas os bancos deveriam ter permissão para fazer isso, para benefício dos detentores das suas ações e títulos. Portanto, nenhum governo europeu pode ter um défice orçamental suficientemente grande para lidar com o coronavírus ou com os problemas que assolam a Itália há uma década. Eles não podem criar o seu dinheiro para promover empregos, revitalizar as infraestruturas ou a economia.

O Banco Central Europeu só empresta a outros bancos centrais. São criados milhões de milhões de euros apenas para comprar ações e títulos, não para gastar na economia, não para contratar mão-de-obra, não para construir infraestruturas, mas apenas para salvar os detentores de ações e títulos de perderem dinheiro com a queda dos preços dos ativos. Isso torna 1% ou 5% da população ainda mais rica. Portanto, na prática, a função do Banco Central Europeu é criar dinheiro apenas com o propósito de poupar aos 5% mais ricos perdas nas suas ações e títulos.

SERVIDÃO PELA DÍVIDA

O custo dessa limitação é empobrecer a economia e basicamente torná-la parecida com a Grécia, que foi um ensaio geral de como a zona do euro iria reduzir os seus países à dependência da dívida. No feudalismo, todos tinham que se tornar servos para terem acesso à terra. Bem, agora está-se na moderna servidão pela dívida, a versão da servidão do capitalismo financeiro.

Os EUA não querem rivais. Querem satélites. O que temos basicamente são os EUA a dizerem: “Bem, nós sabemos qual é a resposta para o comunismo. É o fascismo”, e temo-los visto a comprarem políticos. Fizeram todos os truques sujos para lutar contra qualquer grupo de esquerda na Itália, assim como fizeram na Iugoslávia e da mesma forma que fizeram na Grécia.

Exterminaram os guerrilheiros, todos os principais grupos anti-nazistas, da Grécia, Itália e outros lugares. De repente, todos eles foram assassinados ou retirados dos seus cargos – e substituídos pelas mesmas pessoas contra as quais os Estados Unidos haviam lutado durante a Segunda Guerra Mundial.

Bem, agora a Itália está finalmente a ser confrontada com isso tentando contra-atacar. O que está a acontecer, entre a Itália do Norte a Itália do Sul, são as mesmas divisões que ocorrem noutros países.

 (continua)

A transcrição na íntegra encontra-se em thesaker.is/…

Esta entrevista encontra-se em https://resistir.info

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