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terça-feira, 10 setembro, 2024

Elza Soares, A Voz da carne negra no mercado das sangrias desatadas

“A carne mais barata do mercado é a carne negra (…)//
Que vai de graça pro presídio//E para debaixo de plástico//
Que vai de graça pro subemprego//E pros hospitais psiquiátricos//
(A Carne, Letra Seu Jorge, Gravação Elza Soares
Silas Corrêa Leite

Falar de Elza Soares e suas cantações em banzos e correntes de raízes, é só tentar contar uma história que não tem tamanho, de enorme e brilhante, a voz do morro sim senhor, a voz de credos e raças, de pobres e bendições, de negros e degredos, daquela voz que parece mesmo soar dentro da alma-estúdio da gente, pois traz nela o fuzuê todo musical dessa terra afrobrasilis com seus vagidos, rebenques, de tantos navios negreiros e suas cantárias historiais.

Tudo que nos esparramos jazzísticos dos cantares dela espalha lágrimas sobre nosso chão entintando de sangue de índios, de negros, de mestiços, de mulatos, mamelucos, cafuzos, entre os capitães do mato, sinhozinhos, e os inaceitáveis troncos de uma era de submissão inumana, desde os bastidores da história oficial (os ‘vencedores’ a escrevem) e seus derramamentos e perguntações.
A menina prodígio pobre de dar dó, com voz talentosa, o dom no frigor de si, precoce, o fugir do barraco e do morro para ganhar as emissoras de rádio, com sua vox-orquestra, com sua pinta brava, com sua iluminura chocolate que traz cantos de todos os cântaros e moinhos, de engenhos e moendas, de cicatrizes e marcas na alma, desde cisternas, chorumes e achadouros, lanternas e andaimes, tudo nela mesmo uma soma desses brasilis gerais, com suas mordaças, lonjuras, garrotes, cativeiros, grotões, senzalas, e  ela no suingue de uma premissa artística e humana muito acima de todas as vozes, o que referenda todos nós, nos move de nós, nosotros estripados em tantos matadouros, no açougue das carnes dilaceradas, e que soa pelos poros e panos e cantanças as dores de nosotros em uma ameríndia terra brasilis em que se plantado dor tudo dá escravatura, de muito ouro e pouco pão, em que os pobres são chagas e os feudos de todos os vieses renegam uma divida social histórica, mas cantam, dançam, saracoteiam, mamam, babam, e bebem a ancestral banzo-musicalidade negra que é loa de toda loucura santa, toda sonoridade coragem, toda bruteza em harmonia e ritmo. Saravá canto das raças.
Elza Soares personagem marcante de uma das melhores músicas do mundo, a brasileirinha e brasileiríssima MPB, ela se levando pelo balanço como se todo seu corpo-terra cantasse, como se seu espírito coroasse a sonoridade, como se sua garganta de ouro trouxesse os lírios do canto, feito ela mesma a vox do Brasil de tantos credos, de impagas injustiças sociais, a carne negra que ela representa dando o tom, o timbre, a cor e a sonoridade de seu dom e talento, abençoada pela própria natureza, como uma luz no fim de tudo, num feudo do novo mundo.
Traz o canto das lavadeiras, das aias, das cunhatãs, das servas, das escravas, da empregada doméstica, das diaristas, da moleca que soca o pilão, sangra a máquina Singer, mói o milho, toca a ferida da humilhação, da submissão, do negro tratado como leva de gado, mas ela grita a música enfebrada pela voz a dor de todos os santos desses brasis amalgamados, de tantos quintais e terreiros, já que dos filhos deste solo é  a voz mais belamente negra, a voz mais ácid jazz, a voz universalmente reconhecida e admirada, nossa estrela-lume com tez chã e dando nome à nossa dor de oprimidos pela música, pela letra, pelo próprio maravilhoso jazz improviso que destila, reverbera no sítio-estúdio da pátria amada, como se uma foz muito além de nascentes, cisternas, lamentos e lundus.
Elza Soares, vox matrix, the vox, a cara e a coragem de ser ela mesma, a voz e o ritmo de ser sua magna releitura da vida, num magma colorê que nos representa, fala por nós, berra por nós, ora pro nobilis, chora por nós, tocando o coração dos que amam a arte como libertação, num vagido que regurgita todas as cores dessa terra as vezes madrasta, mas que ainda assim vinga seus talentos tirados do seio dos oprimidos, dos favelados, dos miseráveis, dos excluídos sociais, feito uma bendição superior.
Eis Elza Soares, na voz inigualável, no palco a estrela bailarina, na vida de lutas e sonhos, e determinada Elza Star de perdas e ganhos, de injustiçadas lágrimas. Cantou no rádio, no teatro, em shows internacionais, admirada por Louis Armstrong, a voz do morro sim senhor, nos estúdios o melhor som, como um brilho todo especial de encantamento na sua feitura de interpretações maviosas ou rebeldes, cândidas ou insurgentes, suingadas ou com o compasso que verga o estertor da dor pelas letras e músicas que dá seu encordoamento todo próprio e muito acima da média. Um vulcão que canta.

Elza na cerimonia de abertura da Rop 2016

Para muitos considerada a nossa melhor cantora de todos os tempos historiais, foi musa do maior jogador de futebol do Brasil e do mundo (muito melhor do que Pelé e Eusébio), o carlito-chaplin-cantinflas tupiquinim Mané Garrincha, de quem Elza foi filha, amiga, irmã, esposa, amante, psicóloga, mãe e cuidadora, ele com os picarescos olés das pernas tortas em vareios de dribles mirabolantes, simples-geniais, ela com a voz entortada tirando o máximo de si, dando dribles na vida, fintando crises e perdas; sua voz cada vez mais rica e linda, como se a dor de ter sobrevivido afinasse o seu melhor de criar, dar-se de si, soar, ferir a pele do silêncio com seu banzo todo próprio de se dizer mulher, ser e estrela no palco iluminado da vida.

Por essas  e outras, Elza Soares única, inigualável, com seu lado Caubi (madeira nobre nativa também), seu portentoso lado Elis Regina (pimentinha bugrenta), e ainda seu latino lado Mercedes Sosa tocando os tambores de sacrifícios tantos da vida eivada, da vida privada, das arrebentações, das marés baixas, de mares de sargaços, em tudo se encantando em si mesma, dando-nos seu palco-lux, sua vida estúdio, seu canto que de uma forma ou de outra, por assim dizer, é a sangria desatada de todos os nossos terreiros, fogueiras, somas e sacrifícios de.
A benção, Elza Soares.
Bendito é o canto-pássaro de vossa garganta e seio que nos enleva, e traduz todo nosso multi-pan Brasil para nós mesmos, numa soma de todas as vozes, todos os cantos, todas as raças, todas as sofrências.
Cantai por nós.

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