Orlando Calheiro*
Passado um ano da tentativa de golpe, o antropólogo Orlando Calheiros reflete sobre o que os terroristas realmente queriam.
Já faz um ano que assistimos à barbárie causada por apoiadores de Jair Bolsonaro em Brasília. Mas o que esses golpistas realmente desejavam?
Vou dizer algo contraintuitivo: não há nada historicamente excepcional no 8 de Janeiro. E compreendo seu estranhamento lendo isso e lembrando da quebradeira. Afinal, quando vimos algo semelhante?
Esse é nosso primeiro ponto crucial: o que assistimos no 8 de Janeiro foi “apenas” o aspecto mais superficial de um evento cujas raízes estão plantadas no centro da nossa ideia de nação. Apesar de toda a selvageria, não havia nada de novo ali.
Bolsonaro e seus apoiadores não representam um desvio sombrio na marcha civilizacional brasileira. Uma marcha que supostamente se reinicia com o fim da ditadura, se consolida com a eleição de Fernando Henrique Cardoso e atinge o seu ápice durante os primeiros governos Lula.
Tratá-los assim reforça as paixões que mobilizam os movimentos de extrema direita no país. Afinal, eles próprios se imaginam como uma resposta à suposta marcha progressista, tida como um projeto de destruição.
Quando olhamos para o contexto político que antecede o golpe de 1964 e para o que antecede o 8 de Janeiro, vemos que os movimentos conservadores se imaginavam como os últimos defensores de uma nação em declínio moral.
Houve nos dois momentos, também, uma campanha de terror promovida por veículos de comunicação (e hoje por meio das redes) sobre o que poderia acontecer se o que consideravam como “esquerda” continuasse no poder.
Não por coincidência, João Goulart foi deposto antes mesmo de poder implementar as reformas de base que prometiam revolucionar as estruturas sociais. “Prometiam”, pois Jango não tinha apoio político para implementá-las.
O apoio popular ao golpe de 1964 se constrói pelo medo do que imaginavam que ele poderia fazer, e não pelo que fazia. Afinal, os grupos políticos que se sentiam ameaçados estavam e permaneceram no poder.
Há algo semelhante no contexto que antecede o 8 de Janeiro. A despeito de bons avanços em algumas áreas cruciais, como a distribuição de renda e o acesso à saúde e à educação, a marcha que supostamente se reinicia com a redemocratização nunca foi capaz de cumprir as promessas de transformar o país em uma democracia.
Seguimos com dispositivos herdados da ditadura e do próprio período colonial, como a estrutura racista da sociedade e as questões fundiárias.
Não por acidente, alguns dos avanços desse período, como a citada melhora na distribuição de renda, acabaram sendo rapidamente fagocitados pela estrutura conservadora da sociedade brasileira, terminando por reforçá-la.
Digo isso mirando o posicionamento político de boa parte da classe média que se formou durante os primeiros anos do governo do PT, especialmente no Sul e no Sudeste.
Na política institucional, a situação é ainda pior. Grupos políticos conservadores e/ou oriundos da ditadura nunca estiveram longe do poder. Diria, inclusive, o contrário.
Os movimentos conservadores vêm aumentando consideravelmente a sua presença no Parlamento, tornando-se base de governos progressistas, como o próprio PT.
O golpe em 2016 é um sintoma desse movimento: a forma como o impeachment de Dilma Rousseff é aprovado sem grande resistência, inclusive com o apoio de ministros do próprio governo, demonstra como o país jamais se libertou da ordem conservadora.
A emergência do bolsonarismo e a eleição de Jair Bolsonaro são apenas uma consequência natural da permanência dessa estrutura. O 8 de Janeiro também.
Concebê-los como movimentos extraordinários seria uma postura negacionista, que ignora a permanência dessa estrutura e seu fortalecimento.
Isso porque a tal ordem que eles defendiam nunca esteve de fato ameaçada. Ela apenas cresce e se fortalece no país.
Até políticos e grupos que se consideram progressistas ou de esquerda defendem abertamente alguns de seus valores – especialmente em áreas como a segurança pública ou a defesa dos interesses do agronegócio.
A tal ameaça à “ordem” que mobilizou os golpistas do 8 de Janeiro não passa de uma realidade alternativa, um pânico moral alimentado constantemente pela propaganda de setores que se beneficiam dessa mesma ordem, como os militares.
Setores que nunca foram de fato ameaçados. Por isso, repito: o que os golpistas realmente desejavam? O Brasil de sempre.
E isso nos ensina que, enquanto não houver uma ruptura efetiva com essa “ordem”, uma política que busque fugir dessa lógica antiga que rege o Brasil, veremos outros 8 de Janeiro se repetindo.
*Autor convidado do Intercept Brasil